A Different Man; Marcello Mio; All We Imagine As Light; Queer; Kraven
Cinediário XXII - lançamentos vistos na última quinzena
“Eu respondo sempre que, no mais simples, o trabalho da crítica é deixar um testemunho. Um testemunho de que este objecto existe, passou por aqui, foi visto, foi pensado. E com isso criar um pequeno, quase irrelevante, atrito no fluxo produção/consumo. A partir daqui pode, conforme as circunstâncias, ser muito mais do que isto; mas penso que, sejam lá quais forem as circunstâncias e o género de crítica (jornalística, académica, etc), o trabalho da crítica deve ser uma tentativa de compreensão, mais extensa ou mais abreviada, de um objecto. E essa é a sua importância”.
(o crítico português Luís Miguel Oliveira em entrevista ao Estado da Arte)
Marcello Mio
de Christophe Honoré (França/Itália, 2024)
Partindo de dados e conexões reais de Chiara Mastroianni, Marcello Mio tenciona ser um filme dedicado às suas capacidades performativas. Afinal, representar a si mesma atuando como o pai sob a mimese da sua própria vida é um desafio hercúleo.
Essa construção em abismo não deixa de ser pertinente à própria filmografia de Honoré, onde a representação busca enxergar algo lírico no cotidiano sem se desprender do aspecto realista. Diante de um roteiro que se desenvolve basicamente por encontros, o diretor estabelece uma atmosfera capaz de beneficiar o célebre elenco responsável por uma dupla tarefa: desempenhar o mesmo papel que cada artista tem na vida de Chiara e recordar as memórias junto ao pai da atriz.
Na prática, Marcello Mio é também uma reverência pop ao ator italiano repleta de piscadelas referenciais; um deboche à nostalgia; um comentário social sobre a vivência transgênero; e uma fantasia familiar sobre o acerto de contas com o passado. Ao revezar tais prioridades, o filme forja um sistema de compensações meio capcioso. Honoré não só traça comentários acerca dessas possibilidades, detendo-se às aparências, como recorre a eles para movimentar a engrenagem. Por mais que o tom íntimo da narrativa nunca desapegue da ironia, a autoconsciência, por vezes, soa esnobe.
Cambaleando entre vícios e virtudes, nos seus melhores momentos a imagem de Marcello Mio concretiza, ao mesmo tempo, criação e documento, capturando uma descoberta da própria identidade a partir do confronto com as origens. Além de assumir os trejeitos e a dicção de Marcello, oferecendo a emulação ideal de sua imagem pública, Chiara adota também a moderação característica de Catherine Deneuve (o segundo método é perceptível quando a mãe não está em cena). O resultado desta equação entre gesto e afeto não leva ao apagamento da protagonista; antes, Chiara se revela através da capacidade de promover a fusão entre as influências e o distanciamento da própria personalidade. Onde as memórias são inalcançáveis recorre-se à experiência sensível, deixando-se levar pelo ato de “confundir a filmagem com uma lembrança real” (parafraseando Fabrice Luchini).
Nunca é tarde demais para (re)afirmar a si mesmo e, dentre todas as possibilidades, esta é aquela na qual Honoré aposta sem o menor receio.
A Different Man/ Um homem diferente
de Aaron Schimberg (EUA, 2024)
Um exercício concentrado no dilema da representação da interioridade, onde a aparência insólita do protagonista não torna necessariamente o intuito mais vulnerável.
O filme de Aaron Schimberg assume um distanciamento ao se defrontar com as complexidades do retrato, visando não objetificar o excêntrico ao mesmo tempo que o liberta das molduras mais previsíveis. Há ironia quando, na cena de sexo, a figura de Sebastian Stan vestindo apenas a máscara da sua antiga deformação sintetiza esse desígnio no nível da aparência física. O estabelecimento do anormal desloca imediatamente a atenção para a constituição individual. Mas há um desdobramento dessa intenção pitoresca, mais essencial, alocada no périplo do personagem central. É na angústia da auto-expressão onde A Different Man encontra as suas limitações.
Satisfazendo-se com os seus artifícios sem produzir um sentido próprio, Schimberg salta entre modelos de representação - parte do humor misântropo passivo-agressivo (Woody Allen); recorre à absorção psicológica do grotesco (David Cronenberg); e procura resoluções através de especulações metalinguísticas (Charlie Kaufman). Adotando planos fixos e longos, a arquitetura da encenação propõe fluidez ao abrir espaço para a representação enquanto conceito. Schimberg, entretanto, não operacionaliza as possibilidades de planificação com rigor, tornando a dramaturgia “teatralizada” (postiça) ao invés de “teatral” (imediata). A Different Man não só está a salvo de qualquer possibilidade surreal verdadeiramente desestabilizadora como recorre a diversos cacoetes estilísticos do cinema norte-americano dos anos 1970. São momentos de uma autoconsciência rasteira, onde o projeto soa como uma cópia desidratada de John Cassavetes.
Faltou a Schimberg sacar que, também no nível formal, a representação do surreal está vinculada à interioridade. Ou seja, não se trata só de uma engenharia exemplar mas também de sensibilidade. Em meio à confusão entre a imitação das aparências e a expressão do caráter, A Different Man está mais interessado em mobilizar um teatro de disfarces para manifestar as influências cinematográficas. Na conclusão, quando a questão passa a ser os riscos representacionais da expressão, o saldo é amorfo.
Apesar da temática similar, este é o oposto de “A Substância”: enquanto aquele se deixa corromper pelos próprios apelos, A Different Man permanece inócuo em sua indiferença.
Queer
de Luca Guadagnino (Itália/EUA, 2024)
Sem menosprezar as possibilidades arrebatadoras da representação, Luca Guadagnino está cada vez mais atento à articulação das cenas. O resultado desta adaptação do livro do beatnik William S. Burroughs é inebriante: a densidade lírica de Queer é uma mistura de percepção apurada e sensações acentuadas.
Ao propor um universo de reciprocidades, elos e ressonâncias plásticas e semânticas, Guadagnino provoca uma interdependência das formas. Essa escrita poética tão palpável insinua-se nos contornos dos personagens, na textura de suas sensações e nos traços da representação. Capaz de explorar a tensão entre as revelações íntimas de uma alma conturbada e as manifestações explosivas provocadas no exterior, o realizador estabelece uma comunhão por meio da estética.
Queer pode ser reconhecido como o outro lado de “Challengers”, longa-metragem de Guadagnino lançado há sete meses: lá, a libido não flui devido às prioridades que os personagens estabelecem sobre as suas paixões; aqui, apesar da difusão carnal, o desdobramento afetivo é inviabilizado por conta do meio onde se vive. Embora situados em épocas distintas, nos dois longas o desejo de vínculo permanece frustrado na diegese, sendo canalizado por meio da estrutura fílmica. O triângulo amoroso de “Challengers” move-se através de um intrincado jogo de pontos-de-vista. Em Queer, Guadagnino o articula para além da denotação, redirecionando a representação e provocando a sensação-limite de um abismo entre as sequências - ou ainda, trazendo a tendência kamikaze do americano expatriado vivido por Daniel Craig para o âmago do filme.
O aproveitamento de Craig faz com que cada cena se alimente das oportunidades sensíveis que a sua atuação oferece. É uma estratégia de Guadagnino já utilizada em longas anteriores, favorecendo os atores a disponibilizar uma energia menos padronizada. O olhar do diretor prioriza a busca dos fins, registrando os momentos antes que se percam e captando o desenvolvimento do personagem nesse percurso. A partir disso, o filme modula uma viagem para dentro de si com destinos surpreendentes - ora irrompe num paraíso artificial, ora num inferno sintético. Em ambos os casos, a lógica onírica de Queer precipita-nos numa experiência hipnótica lancinante.
Nem Rainer Werner Fassbinder, nem o autocitado Jean Cocteau; é de Raúl Ruiz que mais se aproxima a meditação de Luca Guadagnino.
Kraven - The Hunter/ Kraven - O Caçador
de J.C. Chandor (EUA, 2024)
Em mais um capítulo da saga Sony-Marvel vs. “a reputação de um(a) recém-consolidado(a) ator/atriz hollywoodiano(a) em busca de uma franquia para chamar de sua”, quem sai ganhando é o protagonista. Depois de Venom (Tom Hardy), Madame Teia (Dakota Johnson) e Morbius (Jared Leto), a metamorfose do supervilão Kraven em anti-herói é o mote da vez neste interminável empreendimento de produzir spin-off’s a partir do universo do Homem-Aranha.
Embora pautado pelo acumulo desordenado, Kraven possui duas qualidades. A primeira: o roteiro inchado e a montagem automatizada tornam a inexpressividade de J.C. Chandor evidente até para aqueles que já a negaram um dia. A outra: o laconismo de Aaron Taylor-Johnson, elemento que interrompe o fluxo anódino de cenas caindo no esquecimento à medida que a projeção avança.
Seguindo o método do Stallone de “Rambo” e do Schwarzenegger de “Conan”, suas reações instintivas nivelam a percepção total ao nível material - cabe lembrar, o próprio filme define Kraven como “o predador perfeito para a natureza”. Taylor-Johnson não só compreende seu papel com exatidão como tem a consciência de disponibilizar o artifício necessário dentro deste modo de produção industrializado. Afinal, seu eufemismo não afeta a linha hiperbólica do espetáculo, pelo contrário, permite-a fluir com maior voltagem (como comprovam as sequências da tentativa de resgate pelas ruas londrinas e do duelo metafísico com Christopher Abbott, os verdadeiros grandes eventos do filme).
Dá para imaginar o que Taylor-Johnson faria num filme dirigido por um artesão com o mínimo de acuidade narrativa e noção de ritmo, onde os demais atores não se recusassem a abdicar do psicologismo em prol da tragédia. E, por ventura, fosse um estúdio que reduzisse o orçamento e as expectativas dando a oportunidade de se trabalhar a dimensão interior do enredo através das figuras, Kraven poderia ser um drama épico de forte pragmatismo. Até o modo operante de Russell Crowe como pai do protagonista se converteria em benefício.
All We Imagine As Light/ Tudo que imaginamos como luz
de Payal Kapadia (India/França/Itália/Luxemburgo/Países Baixos, 2024)
No intuito de partir do universal para alcançar o micro, All We Imagine as Light não escapa da armadilha de um certo cinema das boas intenções orientado pela “expressão da simplicidade” premeditada, que tenta provocar a complacência através da contemplação. Sob esse aspecto, a cidade de Mumbai seria apenas um pano de fundo à trajetória das três personagens sobre as quais o roteiro se debruça: a resignada Prabha (aguardando por notícias do marido que migrou para a Alemanha após o casamento), a extrovertida Anu (ansiando por escapar da tradição do matrimônio arranjado pela família) e a viúva Parvaty (que busca por meios de assegurar legalmente sua moradia após a morte do marido). O filme de Payal Kapadia, contudo, não se limita às trevas da banalidade simplificadora.
Quando o interesse psicológico predomina sobre a análise social, o viés moral acerca das limitações das personagens se torna mais sensível. Ao concentrar-se no desenvolvimento dramático de cada uma das três narrativas e na maneira como elas se entrecruzam através da protagonista Prabha, All We Imagine as Light se desvia das sombras do panfleto sociológico e é capaz de revelar algo substancial sobre a restrição da mulher na sociedade indiana, como um eco da sensação de solidão individual numa grande metrópole. As características particulares tornam-se estados de uma situação em comum.
Uma vez que passado, presente e futuro das prospecções femininas no estrato social indiano se equilibram em cena sem uniformizar os traços das personagens (um feito e tanto!), a solução para o escape das limitações estruturais é retornar às origens. Buscando por uma amplidão para além da claustrofobia urbana de Mumbai, All We Imagine as Light recai numa proto-sideração fluídica na natureza a la Apichatpong Weerasethakul, sem a mesma profundidade deste diretor.
Apesar da mudança de chave, a delicadeza de Payal Kapadia distingue sensação de emoção e se concentra na identificação junto ao interior das personagens sem maiores subterfúgios. Com isso, extrai beleza ao transformar seus desfechos em recomeços.