"Apocalipse nos Trópicos", "O Aprendiz", "Baby", "A Garota da Vez", "Na Terra de Irmãos", "Dormir de Olhos Abertos", "Andrea Divorciada" e "Matem o Jóquei!"
transitando entre produções nacionais e internacionais no término da cobertura do Festival do Rio 2024
Um pouco atrasado considerando o encerramento do evento, ocorrido na última quarta-feira, encerro aqui os trabalhos em torno do Festival do Rio 2024. Reconheço a dificuldade em lidar com a organização da cobertura de tantos filmes em pouco tempo. Mesmo burlando o ritmo imediatista do algoritmo virtual, ainda assim tudo é uma grande diversão.
Foi, ao mesmo tempo, um dos Festivais mais tranquilos que já frequentei e aquele onde assisti a maior quantidade de títulos. Boa parte disso se deve à própria curadoria do evento e à atual conjuntura da minha rotina mas, principalmente, sou grato a dois apoios essenciais para que os prazeres do cinema e da escrita pudessem se mesclar sem prejuízos: a cumplicidade infalível do meu marido e as considerações dos feedbacks de minha mãe, a mais fiel leitora deste Substack.
Para quem curte listas, fiz um ranking no Letterboxd categorizando os 43 filmes vistos nesses 14 dias por ordem de preferência.
Há duas preocupações em Apocalipse nos Trópicos (Brasil, 2024), novo documentário ensaístico de Petra Costa. Mesmo entrecruzando-se, elas parecem mais revezar entre si.
A primeira é o efeito circular entre a política (democracia) e a religião (poder de influência) na sociedade brasileira, onde Silas Malafaia é a figura-chave. A outra é o estabelecimento de um resumo do cenário político pós-“Democracia em Vertigem” (2019), seu longa anterior sobre o impeachment de Dilma Rousseff.
Ambas as linhas narrativas são prejudicadas pelas limitações investigativas, propondo menos uma análise dessas forças abstratas localizadas na retroalimentação entre a ignorância e o oportunismo do que um reconhecimento do estado das coisas, satisfazendo-se na crônica dos acontecimentos.
É um apontamento equilibrado de deuses-políticos que, apesar dos intuitos declarados de Costa, mal ultrapassa as barreiras do narcisismo laico, nem oferece algo além de um gostinho agridoce pela vitória esquerdista.
Apesar de um certo receio de boa parcela do público no Festival do Rio, é óbvio que este filme nada tem a ver com um retrato enaltecedor de Donald Trump (Abi Abbasi, Sebastian Stan, Jeremy Strong e Maria Bakalova não matariam suas carreiras com um projeto do tipo).
O Aprendiz (“The Apprentice”, Canadá/Dinamarca/Irlanda, 2024) é, sobretudo, um apontamento crítico ao capitalismo a partir do personagem vivido por Jeremy Strong. O advogado Roy Cohn é a pura personificação deste modelo sócio-econômico e o método seco de Jeremy Strong apenas fortalece o tom alegórico, sem características sensivelmente humanas. Sebastian Stan, por sua vez, assume uma receptividade capaz de tornar sua performance em algo moldável, pronto para absorver o automatismo ganancioso de Strong. Seu Donald Trump, canaliza o típico espírito empreendedor norte-americano, ávido pela conquista. Quando o capitalismo serve de mentoria à impetuosa sede de sucesso, a bomba está preparada.
Sendo impossível burlar o discurso conservador presente no material-base (a composição dos personagens), a saída de Abbasi para propor um atrito à tal contingência está na forma fílmica, mais precisamente na textura do registro que alterna entre a granulação da película 16mm (na primeira parte da narrativa, situada no fim dos anos 1970) e o aspecto ruidoso da câmera de vídeo (na parte final, já nos anos 1980). Ao dispensar o requisito atual da ultradefinição, o diretor propõe uma certa estranheza à representação daquele passado. Algo nada relacionado à nostalgia, pelo contrário: o incômodo está em perceber que o discurso conservador de outrora não se tornou um objeto de museu.
Quanto à linguagem, Abbasi articula uma tensão entre o olhar perscrutador do formato mockumentary (estratégia beneficiada pela utilização do material de arquivo) e a idealização catártica do capitalismo neoliberal predatório, na linha de Martin Scorsese. O tom de ironia nesta relação atípica se faz notar pelas pontuações incisivas da trilha musical.
Se o mentor de Trump é um mito econômico, sua família funciona como uma corporação. É a partir da entrada de Ivana que a narrativa revela como Trump absorveu os ensinamentos de Roy Cohn. A típica disciplina americana pelo sucesso o faz superar o mestre. Chega um ponto em O Aprendiz onde se assume a ausência de heróis num cenário impregnado pela ambição desmedida. O ritmo do filme, contudo, permanece o mesmo. A diferença está na relação paralela entre o aumento de poder de Trump e o nosso senso de incômodo pela total falta de humanidade.
O que parecia uma disposição nata para o sucesso colapsa num vampirismo cáustico. O filme de Abbasi reconhece então o conservadorismo não como um posicionamento estático mas um estado consequente da máquina de produção estadunidense. É nisto que O Aprendiz revela suas intenções de alcançar uma compreensão política sobre a hegemonia econômica mundial, excedendo o raso nível panfletário da guerra ideológica.
Não se trata de um filme sobre o presente, mas como chegamos até aqui.
Um dos efeitos do deslocamento social é a busca implacável pelo senso de pertencimento, uma vez que esta mesma procura colide com o ímpeto de fuga, reação causada pela intolerância do meio.
Essa consequência recheada de contradições permeia cada sequência de Baby (Brasil/França/Países Baixos, 2024): ela não só atravessa existencialmente os personagens como é refratada a partir do ambiente onde eles sobrevivem (o underground da metrópole paulistana). Tal equilíbrio dinâmico é replicado em vários níveis, como se a representação do entorno ecoasse na composição das psicologias e das relações. O elemento que melhor calibra essa instabilidade é a performance de Ricardo Teodoro (premiado em Cannes na Semana da Crítica), capaz de acumular as sensibilidades da confusão afetiva entre a proteção e o egoísmo, conforme experienciada pelo personagem Ronaldo.
É justo que sentimentos se manifestem de maneira violenta, contribuindo para a incerteza contínua que assombra os destinos e o progresso da narrativa. O diretor Marcelo Caetano busca trazer essa contradição para o ritmo de Baby, mas os episódios atenuantes soam menos naturais que os intensos. Ainda assim, o movimento duplo de reconhecimento de velhas lembranças e novas descobertas do mundo vivido pelo personagem-título (recém-libertado de um centro de detenção) tem momentos inebriantes e pungentes.
Baby dividiu com “Malu” (de Pedro Freire) o Troféu Redentor de Melhor Longa-Metragem de Ficção, maior honraria do Festival do Rio.
Ao adquirir uma nova função e passar para detrás das câmeras, Anna Kendrick propõe um ensaio sobre as restritivas possibilidades dos papéis sociais femininos. Diante de um mundo cerceado pela autoridade masculina, a fuga e o apagamento de si mesma são as únicas alternativas aos moldes pré-estabelecidos. Daí, as mulheres seriam vítimas não por inocência, mas pela esperança de uma compreensão genuína.
Na direção, Anna Kendrick é muito atenta às armadilhas do male gaze, impedindo que a câmera assuma o ponto-de-vista do serial killer durante os assassinatos, sem deixar essa estratégia enfraquecer as evidências da escopofilia e a arquitetura do suspense. Já como atriz, ela recupera uma inteligência capaz de discretas variações psicológicas, algo que não se via desde o seu desempenho memorável em “Amor Sem Escalas” (2009). Pensando nisso, talvez A Garota da Vez (“Woman of the hour”, EUA, 2024) trate também sobre as limitações encontradas por Kendrick durante a sua carreira em Hollywood.
Pena que a estrutura das sequências se perca entre as intenções de paralelismo e analogia, prejudicando o ritmo da narrativa. Bastava dar à montagem a mesma atenção recebida pela decupagem.
O comediante Josef Haden dirige, roteiriza e atua no tragicômico Andrea Divorciada (Andrea Lässt Sich Scheinden, Áustria, 2024), protagonizado por Birgit Minichmayr (conhecida por seus trabalhos junto a Michael Haneke, Maren Ade e Tom Tykwer).
Se a ideia é eliminar a estagnação, não basta fugir. Até para recomeçar é preciso assumir responsabilidades. Numa comunidade alienada pela bebida alcoólica, a guarda de trânsito Andrea se sente sozinha em sua lucidez. Contudo, ficar ou partir são só soluções imediatas. O desafio principal da personagem passa a ser não o mistério do novo mas como se libertar de uma vez por todas das raízes anteriormente cultivadas. Curiosamente, isso implica em assumi-las.
Se Josef Haden fosse sutil (além de econômico) nas trocas entre os vícios e as virtudes, Andrea Divorciada poderia ilustrar os efeitos redentores com a mesma eficácia em que apresenta o cenário fastidioso do qual a protagonista deseja se libertar. Há uma busca pelo equilíbrio entre a ironia social e a fé nos pequenos milagres da vida, mas a balança do humor sarcástico pesa bem mais para o primeiro lado.
No arco de trinta anos, três refugiados afegãos compartilham a vivência na atmosfera opressiva do Irã, onde a hostilidade é integrada ao aspecto mundano do cotidiano.
Neste cenário tenso, o filme de Raha Amirfazli e Alireza Ghasemi (premiado no Festival de Sundance como Melhor Direção) evidencia um esforço solidário em zelar pela tranquilidade no cenário familiar, mesmo que isso implique num auto-sacrifício tácito - cada um dos três protagonistas assume, neste sentido, a figura mártir. Trata-se de um solitário expediente próprio em busca da normalidade possível, representado de maneira sensível ao mesclar convenções do drama e do suspense. O sofrimento, contudo, assume um viés acumulativo: não há alternativa possível diante da dor humana.
A forma como o longa reforça esse peso acaba atenuando a gravidade das situações onde os personagens se veem inseridos, graças aos recursos duvidosos adotados como contrapeso na estrutura tripartite da narrativa: na primeira parte, os filtros coloridos; na segunda, o som dos fogos de artifício durante a festa; na terceira, a oração de fidelização à República Iraniana. É como se a perspectiva da direção desapegasse do ponto de vista da narrativa.
Em sua silente via-crúcis do martírio, Na Terra de Irmãos (“In The Land of Brothers”, Irã/França/Países Baixos/EUA, 2024) não chega a cometer extorsões emocionais, mas sua lógica psicológica é menos circunspecta do que a sensatez exigida pelo discurso.
O alcance do presente sob o aspecto orgânico do cotidiano, conforme anunciado pelo canto de Gal Costa nos créditos finais, é o resultado de uma poética de sobreposições de experiências (as personagens Kai, Fu Ag e Xiaoxin em território brasileiro) onde a imigração e o turismo dialogam em seu viés mais delicado: o deslocamento existencial.
A partir das questões identitárias, a trajetória narrativa ganha um tom interiorizado. Desenvolvendo-se por meio de blocos situacionais, a decupagem em longos planos fixos é centrada na alegoria espacial do aquário - onde a circunscrição e a transparência convivem, intensificando o isolamento e o senso de não-pertencimento, paradoxalmente alimentando a auto-defesa perante o cenário de incertezas - enquanto o devir do tempo passa a se acumular. O interesse do presente pela recuperação do passado alcança, por meio de respostas íntimas, a supressão de uma dúvida interna.
Dirigido por Nele Wohlaz, Dormir de Olhos Abertos (Brasil/Alemanha/Taiwan/Argentina, 2024) é um retrato lírico sobre o anseio pela comunicação. Neste exercício de compreensão mútua, a partir do reconhecimento das diferenças, a tradução ganha uma sobrecamada afetiva. O desejo de fuga e o anseio pelo retorno se estabilizam na transitoriedade em comum.
O novo longa de Luis Ortega propõe uma redefinição de identidade no nível mitopoético das construções. Na primeira parte de Matem o Jóquei! (“El Jockey”, Argentina/México/Espanha/Dinamarca/EUA, 2024), os espaços controlados são voltados para a expressividade corpórea de Nahuel Pérez Biscayart. Após o acidente com sequelas cognitivas, a firmeza dessa grade minimalista passa a ser estabelecida pelas reações de seu protagonista.
Deliberadamente articulando transformações através das superfícies estéticas, Ortega arregimenta um balé de possibilidades arquetípicas cuja representação varia entre Buster Keaton e Luis Buñuel. A fotografia de Timo Salminen, colaborador frequente de Aki Kaurismaki, estabelece uma estilização anti-psicológica propícia à relevância das ações individuais em meio à indeterminação dos eventos surreais. O humor irreverente pode até não ser original mas é, sem dúvida, estimulante.