“Pensamentos são as sombras dos nossos sentimentos – sempre mais obscuros, mais vazios, mais simples do que estes”.
(Friedrich Nietzsche em “A Gaia Ciência”)
Adaptação bastarda do “Drácula” de Bram Stoker - o longa chegou a ser interditado pela viúva herdeira dos direitos do autor - Nosferatu (sinônimo de origem húngaro-românico para “vampiro”) é um dos principais ícones do horror.
Dirigido pelo alemão Friedrich Wilhelm Murnau, o filme de 1922 é considerado um marco do cinema expressionista. No papel do vampiro Conde Orlok, que teve seu nome alterado para tentar burlar a inspiração no romance gótico, o ator Max Schreck alcançou o ápice da carreira. Há uma certa mítica em torno de sua performance memorável: por muitos anos, achou-se que Schreck não passava de um pseudônimo de Alfred Abel, ator famoso da época. Já o curioso “A sombra do vampiro” (2000), filme de E. Elias Merhige, ficcionaliza a rodagem de Nosferatu. Na narrativa metalinguística, Schreck (interpretado por Willem Dafoe) seria um vampiro de verdade.
A influência do filme de F. W. Murnau, cineasta ainda responsável por outras preciosidades do período silencioso como “Fausto” (1926) e “Aurora” (1927), foi construída aos poucos. Nosferatu não foi um imediato sucesso de bilheteria. O único longa produzido pela Prana Film, que se viu obrigada a declarar falência após a vitória da viúva de Bram Stoker no litígio de plágio, teve a maioria de suas cópias destruída por exigência judicial. Apenas a partir da morte da detentora, em 1937, que uma cópia remanescente localizada nos Estados Unidos começou a circular novamente, chamando atenção sobre o filme do já então falecido Murnau. Assim, a história do vampiro que caça a esposa de seu agente imobiliário e instaura uma praga pela cidade se estabeleceu como um dos primeiros exemplares cult do Cinema.
A obra de Murnau é permeada por um senso de perda, sacrifício e solidão. Há quem aponte isso como uma consequência da morte prematura de seu amante, o poeta alemão Hans Ehrenbaum-Degele, em meio à Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a imigração da Alemanha para os Estados Unidos em 1926 para burlar a atmosfera paranóica trazida pela insurgência do nazismo, também pode ser vista como um indutor desse traço artístico.
A riqueza da expressão visual de Murnau diante das convenções e restrições técnicas características dos anos 1920 - o tingimento uniforme da película em preto-e-branco para distinguir atmosferas entre ambientes interiores e exteriores; os longos planos consequentes da disponibilidade de uma única câmera; a ausência de diálogos pela inevitabilidade de gravação (inclusive, o silêncio é suprido pela inebriante trilha de acompanhamento composta por Hans Erdmann) - garante: seu Nosferatu é absolute cinema.
Contudo, para além do jogo de sombras, será este realmente (ou somente) um exemplar do expressionismo como a História do Cinema proclama? Afinal, há nele diversos fatores capazes de sugerir um direcionamento voltado à estética impressionista: a importância dada ao aspecto real das paisagens; a onipresente noção de movimento (contida no título original “Uma sinfonia de terror”, na estrutura do roteiro, no registro das locações, na orientação dos corpos e na intriga da narrativa); e o poder de influência do vampiro, sempre manipulando suas vítimas através do extraquadro.
Em Nosferatu, a atmosfera sobrenatural é consequência da fusão entre o mundo natural e os mistérios fantásticos, tornando-os indissociáveis em nítidas manifestações. Na conclusão, o sacrifício de Ellen (esposa do agente imobiliário Thomas) e a volúpia do Conde Orlok se equiparam à intensidade das forças sublimes prezadas por Murnau, traçando o equilíbrio capaz de pacificar a situação. Há um certo fascínio pelo caráter inevitável da tragédia, reposicionando a inspiração em Bram Stoker no romantismo alemão.
Sobretudo, o tom fantasmagórico se dá pela condição do cinema como um meio de expressão em si mesmo, superando os elementos da história e os intuitos criacionais. A própria imagem vibra ao assumir o papel de catalisador primordial das sensações acentuadas. Nisto reside a genialidade de Murnau.
57 anos depois, o diretor Werner Herzog, um dos pioneiros do Novo Cinema Alemão, realizou uma homenagem àquele que considerava ser o maior filme germânico de todos os tempos. Uma vez que “Drácula” havia caído em domínio público, Herzog pôde incluir em seu Nosferatu os nomes originais dos personagens. Coube a Klaus Kinski o papel principal, numa interpretação menos sombria que taciturna. Já Isabelle Adjani, como o objeto de desejo do vampiro, recorre à uma expressiva performance de gestos e fisionomias baseadas no cinema mudo.
Já na abertura, as caveiras na “Caverna de Platão” dão o tom sobre a relação de Herzog com o longa original. A contribuição de Murnau na edificação da fantasmagoria cinematográfica detém um inabalável poder de fascínio sobre a visão. Contudo, o Nosferatu de 1979 não é uma mimetização subserviente ao de 1922. As garras do inexorável abdica do determinismo trágico para se ater à insanidade das mentes.
Como prevê o manual místico, “A maldição de Nosferatu durará até o fim dos tempos”. Contaminados pela letargia, os corpos são magnetizados, por inocência ou ignorância, pela influência da atmosfera sinistra de Murnau. É uma relação de estranheza, um tanto hipnótica, tragando os personagens como um torvelinho. Mesmo onipresente, essa outra realidade fílmica jamais se impõe ao ponto de desintegrar o presente. A aclimatação alucinatória gera um misterioso efeito abissal.
Ainda em comparação com o filme seminal, o movimento natural das paisagens deixa de ser o elemento caracterizador das imagens. Na visão antropológica de Herzog, as formas da natureza promovem recortes na superfície imagética através de horizontes, beiras, escombros, vales e istmos. A cor vem oferecer gradações ao conflito entre luz e sombra, propiciando espectros capazes de amplificar a temporalidade dos fenômenos.
Esse diálogo junto a Murnau não deixa de ser um exercício metafísico, no qual Herzog se debruça sob um viés existencial. As raias do romantismo retornam ao tom gótico de Bram Stoker, mas o reconhecem de modo dessaturado. Já consolidado nas raízes do cinema, o horror de Nosferatu dispensa atualizações. Herzog, então, propõe outra perspectiva: o vislumbre de uma melancolia contida no fardo da imortalidade. É característico em sua obra o conflito entre o homem e as forças da natureza. Uma vez alocada na figura do vampiro, a reflexão filosófica se defronta com as consequências místicas do anseio pela eternidade.
O confronto com o original apenas revigora esta refilmagem. Isto porque a autoconsciência não se esgota em si mesma, sendo antes atravessada por uma sensibilidade cristalina. Diante da infinitude de um pesadelo febril, cuja naturalidade das representações torna-o ainda mais letal, não há outra saída além se render. O sacrifício deixa de ser restrito ao alvo feminino do vampiro. É compartilhado conosco.

Um século depois do Nosferatu original, Robert Eggers lança a sua versão. O diretor norte-americano, famoso por alguns dos mais celebrados exemplares de “terror elevado”, demorou dez anos para tirar o projeto do papel. Assim como Herzog, o filme de Murnau exerceu um fascínio sobre Eggers ao longo de sua formação artística. A postura inventiva de ambos os diretores perante a inspiração, contudo, é bem distinta.
A progressão do Nosferatu by Eggers se dá a partir de uma série de projeções (da subjetividade de cada personagem; das temáticas subjacentes à narrativa; das emoções trilhadas pela escritura fílmica), no sentido de “apontar para fora” dos planos e até da diegese. Literalidade é a palavra de ordem: no Nosferatu do novo milênio, a importância de ver sobrepõe-se à crença. Os espectros emocionais do medo e do desejo, supostamente tão próximos na relação entre Ellen e o vampiro, não incitam à apropriação de seus efeitos ilusórios. Assim, deixam de alcançar a almejada imersão sensorial.
É a esse sistema limitado de projeções para o qual se prestam a violência gráfica, o alto valor de produção e o elenco estelar (Bill Skarsgard, Nicholas Hoult, Lily-Rose Depp, Aaron Taylor-Johnson, Willem Dafoe, Emma Corrin). Toda a pompa de uma ostentação a apostar na indução de atmosferas através de uma representação fidedigna e verossímil, cujo maior sintoma é - vejam só! - a ausência de uma essência mediúnica nas manifestações do horror. O mal, se é que existe, não habita nem a matéria do mundo nem a esfera sobrenatural. Está alocado na maquinação cerebral.
Curiosamente, pouco resta de concreto nesta estética de aparências ultracalculadas, algumas difusas (nas mãos de Eggers, a película serve melhor à cintilação evanescente das velas do que ao efeito sfumato) e outras inconsistentes (a relação da câmera com a figura do Conde Orlok chega a ser embaraçosa, tornando o vampiro numa vedete performando um strip-tease camuflado por sombras).
O ponto de partida é dar protagonismo àquela enfeitiçada pelo vampiro. Depois de traçar um movimento de retorno às origens góticas (Herzog) como resposta ao flerte com o romantismo alemão (Murnau), o mito cinematográfico de Nosferatu se transforma numa fábula vitoriana sobre a incompreensão do desejo feminino, onde a histeria é um diagnóstico consumado. A impotência, por sua vez, não caracteriza o drama dos personagens. Essa pusilanimidade é a própria dificuldade de Eggers em fundir a potência do sobrenatural ao poder de crença na imagem, de modo a encarnar o sentido simbólico que orienta a fábula.
Em vez de alcançar as formas somáticas do horror, o Nosferatu pós-pós-moderno se satisfaz com uma noção publicitária do gênero - a máxima das projeções, a recair sobre o espectador.
O filme de Eggers, inclusive, convoca outras citações para além do longa de 1922. Há referências visuais à “Os Inocentes” (1961), “O Exorcista” (1973), “Possessão” (1981) e “Drácula de Bram Stoker” (1992), adaptação de Francis Ford Coppola. Considerando as possibilidades relacionais mais básicas de homenagem e pastiche, o Nosferatu Herzoguiano seria um exemplo da primeira enquanto o recém-lançado estaria mais próximo da segunda. Uma vez assumida a influência, o remake de 1979 propõe um diálogo capaz de elevar o original à uma nova apreciação. Ou até mesmo renovar o olhar perante um cânone. Já o de Eggers se satisfaz com mimetizações e piscadelas, pondo em funcionamento uma engrenagem onde sugerir a ideia de pavor é mais importante do que de fato articulá-la.