Quatro lançamentos em alta na temporada de premiações compõem o primeiro Cinediário de 2025.
Escrevi também sobre outras estreias dessa última quinzena durante a cobertura do Festival do Rio 2024: “Baby” (de Marcelo Caetano), “A Semente do Fruto Sagrado” (de Mohammad Rasoulof) e “Meu Bolo Favorito” (de Maryam Moqadam e Behtash Sanaeeha).
Anora
de Sean Baker (EUA, 2024)
Diante de sua protagonista, o filme de Sean Baker reflete a psicologia dos dois rapazes que atravessam o seu destino. Ambos representam faces opostas de uma mesma moeda: a subserviência perante um regime econômico onde a autoridade é exercida por meio do poder de compra.
Na metade inicial de Anora, a aceleração dos planos prioriza o comércio do êxtase instantâneo. Através de suas performances eróticas, Anora (Mikey Madison) proporciona aos clientes uma breve fuga da rotina protocolar. Ao apostar em Ivan (Mark Eydelshteyn), rapaz que lhe oferece um atalho para o tão idealizado modo de vida milionário, a jovem se desaponta. Não há amor, da mesma forma que não há gozo junto aos frequentadores da boate HQ. As sensações se limitam à superficialidade (do olhar e das palavras) e a cumplicidade é, no fundo, um acordo mútuo na produção de fantasias. A antecipada quebra da transação frustra a todos os envolvidos naquela montanha-russa de prazeres artificiais.
O surgimento de Igor (Yura Borisov) provoca o desaparecimento de Ivan. Através da decupagem, Sean Baker gradativamente aproxima Anora e o novo personagem. Os ambientes, outrora maximizadores do prazer, são violados e destruídos. Nesse processo de desintegração, os espaços levam consigo as ilusões. O diretor ralenta os planos para promover o contato humano à nível semântico e visual, até torná-lo emocionalmente íntimo na vigorosa conclusão da trama. Ou seja, a transfiguração rítmica e cênica abre espaço para que os vetores emocionais superem os processos primários e alcancem os sentimentos. Baker propicia assim a conversão da matéria dramática em fílmica.
Dos flares brilhantes a dispersar o olhar até os flocos de neve capazes de camuflar os corpos, o cineasta mantém o imediatismo do registro enquanto explora as possibilidades de textura (através da luz) e composição (cênica). Ao contrário de outros diretores adeptos da excitação sensorial constante, o caos não é provocado pela câmera em si, nem é desmembrado com condescendência pela edição excessiva. O caos é a cena e é nela onde está a atenção de Baker: ele viabiliza uma visão privilegiada daquela realidade, inserindo-nos ali. Na vivacidade de suas imagens há beleza e horror, euforia e dor.
Os longas de Sean Baker dão forma à dificuldade de amadurecimento no mundo ultracapitalista, pautado pela continuidade lógica entre mercadoria e prazer. Em meio à miríade de monopólios, suas narrativas apostam nos protagonistas para detectar a existência de algo inestimável. A permuta disso não se dá pelas leis do comércio, mas por uma afeição silenciosa, cujos sinais esparsos vão resistindo e tornando-se mais fortes até ganharem corpo no enquadramento final. Essa epifania íntima da afinidade entre os seres é a verdadeira compensação de um sistema inescapável, recheado de distrações, efemeridades e falsas promessas. A conclusão é o que dá sentido à existência desses personagens, deslocando o arco narrativo para uma solução mais tangível.
Vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, Anora promete uma fábula e termina como uma odisseia de formação, abdicando da redenção em prol do acolhimento. Um não seria, afinal, a variação mais propícia do outro?
Maria Callas
de Pablo Larraín (Alemanha/Itália/EUA, 2024)
O filme de Larraín até poderia ser a transformação de um retrato biográfico num relato em foco duplo. Todavia, Maria Callas se detém na indecisão entre a fidelidade ao imaginário particular da soprano e a romantização de sua vida. O diretor se apega ao nível mais rasteiro das fabulações para revelar como a vida pública pode se confundir à privada, tornando a realidade indistinta.
Os artifícios servem para reforçar o ícone e vasculhar o interior das idealizações sem corromper seus contornos, artimanha bastante confortável nessa superficialidade deslumbrada consigo mesma. Há quem possa apostar que Larraín busca emular o “discurso indireto livre” de Pasolini, método poético de estender a psicologia do personagem à estrutura fílmica. No saldo final, os sentimentos e os conflitos internos, alheios à emoção, esbarram numa refinada rede de proteção capaz de estimular somente os olhos.
Superior à apatia plástica do retrato de Jackie O. (“Jackie”, 2016) mas de atmosfera menos cristalina do que o onírico filme sobre Lady Di (“Spencer”, 2021), esta terceira adição de Larraín ao subgênero do “hysterical in a floral dress” é a única onde o aspecto de veículo para a performance da protagonista ultrapassa o olhar fascinado pela biografada. A intensidade disponibilizada por Angelina Jolie é menos visceral do que passional, atribuindo à Callas o verniz trágico com o qual a cosmética do diretor tanto se apraz. Sem desintegrar a aparência mítica, Jolie canaliza uma oscilação emocional crível e faz do seu olhar o nervo da cena. Não chega a ser o grande momento de sua carreira (este status ainda é de “Changeling”, 2008), mas é um comeback mais competente do que o de Judy Zellweger anos atrás.
Babygirl
de Halina Reijn (EUA, 2024)
Babygirl não concretiza suas promissoras intenções porque lhe falta pulso.
Momento isolado de perspicácia cinematográfica, o orgasmo ilusionista da abertura serve como convite para uma realidade onde a vivência é pautada pela dimensão performática dos papeis sociais. O ritmo ansioso da narrativa (as sequências chegam a se sobrepor) implica no acumulo de uma demanda externa pelos diferentes tipos de performances inerentes a cada indivíduo: conjugal, profissional, familiar, etc.
Contudo, é no intervalo desses desempenhos programados que a protagonista detecta brechas para uma reação mais espontânea. Trata-se da válvula de escape para a fraqueza humana - neste caso, um instinto auto-destrutivo latente. O desejo em Babygirl, no fundo, não é da ordem sexual. O fetiche é mera mediação; a tentação vibra numa zona onde o role playing é instável. É isso que o jovem estagiário vivido por Harris Dickinson oferece à CEO de reputação irretocável e status invejável.
A sorte de Babygirl é contar com a eficiência de Nicole Kidman, intérprete capaz de atuar com os gestos e os sentidos - especialmente no modo como atrela a psicologia da personagem ao seu tom de voz -, confidenciando-nos a breve expressão desses momentos de respiro no teatro social das aparências. Ao vestir a alegoria e portar a máscara do real, seu corpo proporciona a matéria da ficção.
Kidman luta contra as distrações de um roteiro que, por diversas vezes, assume a incumbência de nos certificar sobre aquilo que a história não é. A atriz também ultrapassa uma direção banal, resguardada no registro uniforme dos acontecimentos. Babygirl é carregado por uma simulação de realismo castradora, com dificuldades de estabelecer um modo de representação ou até mesmo calibrar o ritmo interno das sequências. Ressabiada demais perante os riscos do abjeto ou da objetificação, a câmera de Halina Reijn recai na alienação. Com isso, afasta-se das possibilidades de evocar a esfera volátil onde é possível performar o papel que quiser, sem se apegar a ele.
Babygirl falha em sustentar a tensão do thriller sustentado pela farsa e é, ao mesmo tempo, flácido demais para manter uma voltagem erótica. Pois é, a instabilidade pode facilmente recair no frívolo. Mas Kidman sabe que a ausência de regras não é sinônimo de aleatoriedade. É pelo seu esforço diligente diante da câmera titubeante que mantém-se os olhos ávidos por Babygirl; capaz de ultrapassar a inépcia da direção, a atriz se torna um espelhamento da própria personagem à procura de um alívio impulsivo no meio de tantas expectativas controladoras.
De fato, é impossível penetrar a mente de uma mulher (as piscadelas kubrickianas foram atualizadas) mas há algo empático no vislumbre do lapso desintegrador da inteligência emocional. Isto se deve ao testemunho da sensibilidade humana. Que a temporada de premiações ignore a mensagem do Festival de Veneza, é previsível. Fica mais fácil valorizar quando o filme se faz veículo para uma protagonista, ao invés de reconhecer a atriz capaz de subvertê-lo a seu favor.
Saturday Night
de Jason Reitman (EUA, 2024)
Filho do cineasta Ivan Reitman, Jason criou reputação própria em Hollywood - embora dotados de uma veia irônica, filmes como “Juno” (2007), “Amor Sem Escalas” (2009) e “Tully” (2018) olham com seriedade para a dificuldade de adequação emocional de seus protagonistas em meio às expectativas do entorno. Em Saturday Night - A Noite que Mudou a Comédia, longa que ficcionaliza os bastidores da primeira transmissão do célebre Saturday Night Live, Jason se aproxima do universo de seu pai. Ivan Reitman ficou popular ao dirigir comédias como “Almôndegas” (1979), “Os Caça-Fantasmas” (1984) e “Perigosamente Juntos” (1986), sendo também o produtor de “Clube dos Cafajestes” (1978).
Saturday Night é aquele tipo de projeto dotado de uma autoconsciência espertinha. Garante-se na memória de grandes comediantes (ou melhor, no efeito nostálgico consequente de um grupo de jovens atores promissores emulando aqueles profissionais então iniciantes) e, ao mesmo tempo, se apoia em virtuosos planos-sequência que pouco oferecem para além da exuberância de seus movimentos. Basta um pouco de atenção para perceber o motivo da incapacidade de Saturday Night em proporcionar algum humor ou graça para além da condescendência paródica. Postas as intenções (à priori) como cartas na mesa já nos primeiros minutos, a falta de competência para estabelecer um panorama dotado de relevos ou passível de propor uma relação substancial entre pesos e contrapesos torna o programa morno.
A ideia é transmitir o frenesi e o dinamismo da TV feita ao vivo. Para isso, Jason Reitman aposta numa pressurização monótona pautada por tensões dispersas, impressões superficiais e microuniversos nada autônomos. Falta ao diretor uma certa consciência dos meios perante o material que tem em mãos. Falta lucidez no exercício de humanização. Não à toa, é um filme que pouco se comunica com quem nunca ouviu falar em Dan Aykroyd, John Belushi, Chevy Chase, Andy Kaufman, etc. E não, não é obrigação alguma conhecê-los.