Lançamentos assistidos na última quinzena:
The Brutalist
de Brady Corbet (EUA/Hungria/Reino Unido, 2024)
À primeira vista, O Brutalista até poderia se beneficiar de todos os adjetivos megalômanos possíveis para descrevê-lo. Afinal, eles correspondem à virtuose assumida de Brady Corbet. Entre a intenção e a realização, contudo, há uma enorme diferença quanto ao rigor - a qual, às custas do esvaziamento do artifício marketeiro, poucos topam investigá-la.
No corpo-a-corpo do diretor com o material em mãos, o predomínio da funcionalidade se concentra não na necessidade específica de cada elemento conforme dado momento, mas na exuberância do conjunto vultoso. A ambição visual e temática confina a dimensão épica de O Brutalista ao nível do discurso. Em meio ao turbilhão de sequências que edificam a trajetória do visionário arquiteto húngaro vivido por Adrien Brody, judeu que encontra abrigo nos EUA durante o Holocausto, percebe-se diversas vezes que o suposto conflito estrutural entre o material (formal) e o moderno (sensorial) é limitado pelas tendências idealistas de Corbet. Basta se atentar ao desgaste da sensibilidade do VistaVision em planos fechados que burlam as demandas de reconstituição histórica; às conotações simbólicas ultrapassando o delineamento dos conceitos e materializando-se na vitimização psicológica do protagonista; à instância narrativa acumulando, concomitantemente, múltiplas maneiras de se contar a mesma coisa, neutralizando qualquer tensionamento possível no interior do enunciado; à incapacidade de, diante de um percurso imigratório centrado nas (re)construções, tornar os espaços em paisagens (ou seja, em ambientes qualificáveis, delineando sentidos através dos ângulos e das linhas); ou ainda, à incerteza de uma decupagem que não sabe exatamente como atribuir intensidade dramática aos conflitos íntimos, muitas vezes encurralando os corpos dos atores.
O Brutalista se sustenta nos momentos ilustrativos em que consegue se satisfazer com a própria opulência, ou seja, aquém do interior maciço e áspero dos seus materiais. Fora isso, é muita argamassa para pouca construção.
Hard Truths
de Mike Leigh (Reino Unido/Espanha, 2024)
A ação do tempo tem um caráter dúbio. Pode cristalizar um indivíduo ou servir de propulsor para a sua evolução interior. Mesmo que não tão subjetivamente quanto o seu realizador pressupõe, esta é a questão averiguada por Hard Truths através da complexa relação entre duas irmãs bastante diferentes entre si.
A percepção dos efeitos a longo prazo no próprio filme deriva principalmente da psicologia do roteiro de Mike Leigh, cujo texto é beneficiado pelas interpretações tridimensionais de Marianne Jean-Baptiste e Michelle Austin. As atrizes sublimam em cena as consequências físicas de seus temperamentos diametralmente opostos: a neurastenia de uma é acompanhada pela extenuação de si mesma; o altruísmo da outra deixa escapar uma auto-abnegação velada. O tour-de-force de Jean-Baptiste impacta momentaneamente, mas é pelo delineamento das crises que se gera uma impressão total sobre a personalidade de sua personagem. Até porque isso se dá não pelo desconforto causado por uma protagonista inflamada e extremamente reativa, mas através da assimilação de seus porquês. A exteriorização das performances possibilita aproximar-nos do verdadeiro interior das personagens. Ao invés de aludir à alteridade, Hard Truths busca provocá-la.
O que impede de se restringir os efeitos perceptivos à mera noção distanciada, aproximando-se de fato da experienciação dessas consequências, é a propensão de Mike Leigh em mobilizar a duração intrínseca de determinados acontecimentos ao longo de Hard Truths. Tal capacidade confere ao filme uma densidade própria. O efeito acumulativo das cenas revela que tudo soa crônico, mas nem por isso é estável. Quando necessita lidar com as inversões dramáticas, Leigh busca articular o interior e o exterior dos ambientes como circunscrições a serem conquistadas. Mas é no contínuo embate entre atração-e-repulsa dos afetos onde está localizado o seu interesse enquanto diretor; logo, é possível ver o mundo menos através da perspectiva de suas personagens (método límpido) do que pelas causalidades nas quais elas se inserem (método condicionado).
No momento em que a mecânica de causa-e-consequência há de ser interrompida pela urgência dos tempos (e da própria necessidade de encerrar o filme), o aspecto formal se esvazia na busca por uma maior ambiguidade. Há um leve maniqueísmo nessa tentativa de recomposição do realismo social. É como se, no aspecto fílmico, o esforço narrativo não alcançasse a trama e os pontos de ebulição não chegassem a promover o descongelamento pretendido. Ainda assim, por mais que se tente blindar o agora, o vindouro sempre encontra suas artimanhas para agir sobre o presente…
Nickel Boys
de RaMell Ross (EUA, 2024)
Quando a indústria hollywoodiana abraça um filme pautado pela recorrência a um determinado artifício formal, nove entre dez são o típico caso onde se dá uma ênfase ao uso do dispositivo por si só (o alarde da suposta “inovação”) ao invés de assimilá-lo na estrutura fílmica, consubstanciando assim os seus efeitos. Divulgá-los passa a ser mais interessante do que verdadeiramente induzí-los através da mobilização do olhar e da consciência da audiência. O longa de RaMell Ross, que recorre ao uso constante da câmera subjetiva para abordar a efervescência social dos anos 1960, é a exceção à regra.
Por mais que haja um conflito expressivo entre a representação e a estrutura (onde a causalidade da trama prevalece sobre a ressonância poética), as questões relativas ao aspecto fenomenológico do registro são bem resolvidas em Nickel Boys. Este é um filme menos sobre a vivência em regime fechado do que a respeito da memória dela. Logo, Nickel Boys se defronta com a experiência do cárcere da alma. As reminiscências não provêm necessariamente dos personagens ou do quadro sócioeconômico onde eles se localizam, mas das possibilidades do objeto fílmico enquanto expressão. Ao provocar conotações afetivas e simbólicas, a consciência formalista de Ross vai além do discurso político racial. Assim, o dispositivo da câmera subjetiva se refere à construção particularizada da memória, como lençóis do passado envolvendo o presente. É particularmente sensível a maneira como a estratégia formal se doa à alteridade quando os dois (futuros) amigos Elwood e Turner se conhecem em meio à desolação do reformatório Nickel. Compreender o olhar do outro sobre o mundo se torna a maior prova de amizade.
A ambição de Nickel Boys, todavia, encontra certas limitações. A representação não chega a instituir um fluxo de consciência. Na constituição dos ambientes a partir dos fatos vividos, a impressão nem sempre supera a descrição - principalmente nas sequências supostamente mais cognitivas, onde a História se funde ao inconsciente através das citações visuais inseridas na montagem alusiva.
Ainda que Ross enfatize os vetores emocionais ao invés da estrutura, limitando o distanciamento instaurado por uma estratégia oblíqua de imersão sensorial, a dialética de Nickel Boys enquanto exercício psicológico se mantém firme. Até mais do que o senso de deslocamento social, prevalece o companheirismo mútuo como alternativa ao esgotamento diante das consequências de um sistema moroso, injusto e segregacionista. No comércio de representações entre o homem e a História, a relação empática é o antídoto imperativo - uma comunhão entre Elwood e Turner, entre o filme de RaMell Ross e nós.
A Complete Unknown
de James Mangold (EUA, 2024)
Sabe quem tem preguiça de Bob Dylan e acha a sonoridade das músicas dele monocórdica e a interpretação vocal constantemente “desafinada”? Pois é, indiretamente Um Completo Desconhecido corresponde a essa predisposição superficial de compreensão artística. Porque é novamente o caso de um ícone popular controverso limitado à moldura de um retrato convencional, formulaico e academicista. Uma pena que Bob Dylan, tão afeito à construções líricas e descrições particularizadas, seja visto com tamanha condescendência mítica diante de suas próprias idiossincrasias enquanto homem e artista.
Nem tudo são pedras, contudo. Na absoluta ausência de invenção de Um Completo Desconhecido, há um lampejo de inspiração. Diante de uma encenação isenta (disfarçada de imparcialidade), repleta de exposições literais e pormenorizações superficiais, Timothée Chalamet atua como uma esponja, absorvendo as informações expelidas pela narração e reagindo a elas de maneira sensível por meio de sua performance. É uma especie de escritura através da atuação, algo bem mais interessante do que incorporar trejeitos ou brincar de sósia. Tal capacidade poética é a única coisa que aproxima o filme de James Mangold à composição de seu biografado. É a transmutação produzida enquanto expressão cinematográfica.
O elenco coadjuvante sofre com as restrições dos arquétipos (Edward Norton encarna Pete Seeger; Boyd Holbrook, Johnny Cash; Scott McNairy, Woody Guthrie), mas como contrapeso à necessária contenção dramática de Chalamet, o carisma de Monica Barbaro opera milagres. Sua Joan Baez adquire uma dimensão maior do que a prevista no roteiro. Rola uma certa energia anímica em Um Completo Desconhecido quando a dupla está cantando em cena. São momentos incandescentes em um filme cuja maior preocupação é agradar a todos e evitar dissonâncias. Ou seja, ao contrário de seu protagonista, fadado ao esquecimento.
Seu texto me deixou curioso com Nickel Boys!