Após atingir um pico de popularidade mundial na era de ouro hollywoodiana como símbolo escapista, o musical foi aos poucos se tornando um distúrbio nessa indústria.
Enquanto a partir da década de 1980 os resquícios do gênero tornaram-se refém do formato videoclipe (onde, na expressão audiovisual através da música, o desenvolvimento narrativo é sobrepujado pelo apelo publicitário das imagens), agora a linguagem do musical parece se aproximar mais da instantaneidade dos conteúdos voltados para as redes sociais (verdadeiros rompantes a impactar tanto pela exuberância visual, menos estética do que plástica, quanto por uma aceleração dos cortes que nada tem a ver com eficácia rítmica).
Já o grande público parece ter dificuldades de levar um musical à sério, apesar do zelo da Academia do Oscar perante tais exemplares. Diante desta longeva crise junto à aceitação popular o musical acabou filiando-se à biografia de artistas consagrados, a fim de resistir na linha de produção cinematográfica. O nicho se provou bastante rentável. A narrativa wikipedia, aquela que se apraz com uma ilustração dos pontos altos e baixos do biografado, pouco oferece à estrutura musical senão fragmentações através de números performáticos já aguardados pela audiência. Com a maior fidelidade ao original possível, diga-se de passagem. Mimetizar torna-se mais valioso do que interpretar. Better Man (crítica abaixo) almeja questionar tal expectativa acomodada.
O cinema brasileiro, por sua vez, não fugiu do mesmo percurso. Seu diferencial cultural esteve nas clássicas chanchadas dos anos cinqüenta, autêntico produto nacional. Hoje em dia é raríssimo o surgimento de um musical desvinculado da trajetória verídica de um determinado artista, sendo O Melhor Amigo (crítica abaixo) uma animosa exceção.
Better Man
de Michael Gracey (EUA/Austrália, 2024)
O chamariz para cinebiografia do popstar inglês Robbie Williams é, supostamente, seu grande diferencial: o cantor é retratado como um chimpanzé antropomorfizado através dos efeitos especiais de CGI (indicado ao Oscar, inclusive). Os movimentos são capturados através da performance do ator Jonno Davies que, juntamente com o próprio Williams, dublam o personagem.
Contudo, o quão Better Man ironiza o modelo padrão de biopic ou, no fundo, se aproveita de tais esquemas para movimentar a própria estrutura com um tom satírico? Ou ainda, o motion capture chega a questionar a plasticidade da representação no nível cênico ou é apenas um gimmick para convocar outros elementos fantásticos no interior da moldura dramática? Em ambos os casos, trata-se de uma linha tênue. E, na maior parte do filme, prevalecem as segundas opções.
É por isso que, no diálogo promovido entre os dois reflexos estabelecidos pela trama - o primeiro se dá entre a narração do próprio Robbie Williams e as conotações psicológicas da imagem que o cantor tem de si mesmo; no outro, o daddy issues implica na expressão artística do protagonista -, a busca pela autocompreensão esbarra justamente na tentativa de integrar, na diegese, as transformações promovidas pela exposição dos receios mais particulares.
Como musical, Better Man é uma fantasia com alguns videoclips de edição vigorosa e questionável domínio espacial, apropriando-se da boa e velha ideia do estrelato pop como algo inebriante em sua própria vaidade. Enquanto fantasia, o filme é uma proto-opereta de parcas possibilidades, sempre refém da autoindulgência. É sintomático que Robbie Williams se afaste cada vez mais de sua imagem a la enfant terrible para assumir pretensões mais conservadoras. Afinal, é “Better Man” e não “Tripping” o hit a batizar o longa-metragem…
O Melhor Amigo
de Allan Deberton (Brasil, 2025)
Espelho, espelho meu: haverá era mais nostálgica do que a nossa? Uma vez que a cultura pop se satisfaz com a autofagia, havia um tesouro de tecnopop brasileiro oitentista à espera de um escafandrista. O Melhor Amigo assume esse papel com carinho, optando por escolhas não necessariamente surpreendentes, mas afiadas. “Escrito nas Estrelas”, “Amante Profissional”, “Retratos e Canções”, “Perigo” etc., são antigos sucessos que se aplicam às exigências rítmicas da narrativa romântica. O mesmo não se pode dizer da construção destas sequências. Esse desajuste é, no fundo, sintoma da limitação básica no filme de Allan Deberton.
Há um vão entre o conceito e a realização no qual tanto o roteiro quanto a direção se dispersam. A ideia central reside na reconexão com uma memória nostálgica, percurso traçado pelo protagonista (Vinicius Teixeira) em busca da paixão de infância mal resolvida (Gabriel Fuentes). Isso se espelha inclusive na reinterpretação dos clássicos populares pelos atores, estratégia que dá ao filme uma embalagem retrô. No plano da encenação, contudo, essa relação com o passado se materializa apenas em símbolos (o telefone de disco na mesa do restaurante; o busto de gesso no quarto da pousada; as participações especiais de Gretchen, Matheus Carrieri e Claudia Ohana) sem ultrapassar o artifício para dinamizar o espaço e o tempo enquanto linguagem cinematográfica. Sim, O Melhor Amigo limita essas memórias a artefatos cultuados, assim como tem dificuldades para suplantar a abordagem mais convencional da mera visibilidade e estabelecer outras tonalidades estéticas à trajetória de um personagem em crise afetiva necessitando mesmo é de um encontro consigo próprio.
A narrativa se debate entre a comédia romântica e a angústia do autoconhecimento sem conseguir desenvolvê-las com acuidade, recorrendo às canções como recurso para a expressão dos sentimentos (e só pontualmente conseguindo pôr a trama em funcionamento). Assim como a abordagem leve pode ser um atalho para a frivolidade - nisto se inclui a inibida representação do sexo ao longo do filme -, a suposta variação entre climas camufla uma falta de tato dentre as possibilidades. A atmosfera kitsch é corroída pelas responsabilidades para as quais O Melhor Amigo pisca sem assumi-las. Há um forte desejo em alcançar uma aura extravagante e de fácil comunicação, mas o camp é uma essência que reside além das superfícies.
Um dos pioneiros do cinema independente estadunidense - Roger Ebert apelidou-o de garoto-propaganda da geração Sundance -, Steven Soderbergh ganhou a atenção da indústria e do grande público já no seu longa de estréia, “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989). De lá para cá, este diretor prolífico ganhou o Oscar por “Traffic” (2000), flertou com o blockbuster numa trilogia iniciada com “Onze Homens e um Segredo” (2001), deu plataformas para Julia Roberts ganhar seu Oscar (“Erin Brockovich”, 2000) e Spalding Gray brilhar em um monólogo (“Gray’s Anatomy”, 1996), assim como ficcionalizou a vida de Che Guevara em um díptico (“Che”, Parts 1 & 2, 2008) e teve a audácia de readaptar o romance de Stanislaw Lem “Solaris” (2002) trinta anos depois da versão definitiva de Andrei Tarkovsky.
Ao longo de sua carreira, Soderbergh sempre buscou por arregimentar inovações formais dentro do próprio sistema hollywoodiano, tendo à sua disposição intérpretes célebres (por exemplo, colaborou com Matt Damon e George Clooney diversas vezes). Os resultados variam um bocado, tanto em êxito comercial quanto na capacidade de desenvolver suas estratégias formais para além das premissas. Exercícios de gênero também lhe apetecem; ainda assim, em meio à tantas variações estilísticas, é possível detectar alguns temas frequentes em sua obra. São uma constante as perturbações, inadequações e rompimentos provocados pelas peculiaridades da condição humana quando inserida em modelos característicos da realidade social capitalista. Por isso vários de seus filmes giram em torno de golpes, traições e crises de identidade.
Chegam ao circuito brasileiro quase concomitantemente seus últimos longa-metragens: os thrillers Presença (de aparência sobrenatural) e Código Preto (ligado ao subgênero da trama de espionagem).
Presence
(EUA, 2024)
Em Presença o uso constante da câmera subjetiva sugere um interesse mediúnico em vislumbrar o metafísico na lógica da linguagem. Na prática, o filme de Soderbergh não chega a propor um exercício do olhar, nem uma apreensão sensível do espaço e do tempo.
Representando o ponto-de-vista de um espírito, a câmera observacional julga, sentencia e define através da máscara da onisciência. Não há necessariamente um choque entre o distanciamento do dispositivo e uma possível abordagem clássica, confronto este que seria um provável reflexo temático - o enredo trata de uma família cuja comunicabilidade está enclausurada entre duas angústias, o trauma (pai e filha (Chris Sullivan e Callina Liang) vinculados ao passado) e a ansiedade (mãe e filho (Lucy Liu e Eddy Maday) projetando o futuro). Logo, a proeza formal há de ser deixada de lado em prol do engajamento na narrativa teleológica (falsamente elíptica), baseada no conflito básico e na necessidade de restabelecer o equilíbrio na conclusão.
Soderbergh assume a inevitabilidade voyeur do meio cinematográfico para estabelecer o drama familiar como a real preocupação de Presença. O dispositivo é, no fundo, vigilante. Então, qual a capacidade do cineasta em produzir narração para além das soluções do roteiro? Afinal, o melodrama doméstico recusa a organização dramatúrgica ao recorrer às artimanhas da câmera subjetiva por meio dos fluidos planos longos, estratégia tão vinculada ao instante dos acontecimentos. É por uma articulação simbólica (espelho; armário; janela) que a moral se materializa ao assumir que o fantasma da perda é a verdadeira entidade a assombrar a família. No entanto, o que se aplica à parábola (sensível, até), não necessariamente alcança a linguagem: há de se libertá-lo (o conteúdo) para alcançar a plenitude do presente (a forma).
Com sua Sony a9 prosumer, Soderbergh brinca de ser M. Night Shyamalan, mas lhe falta a destreza que este diretor detém em seus melhores momentos: a autonomia da escritura em relação aos imperativos da narrativa sem, no entanto, jamais traí-la. Ou seja, em Presença Soderbergh está mais para o seu xará Spielberg.
Black Bag
(EUA, 2025)
Para além da “espionagem doméstica”, este é um filme sobre as contradições experienciadas pelo ser humano quando as circunstâncias exigem o uso frio e metódico das sensibilidades. O mistério tecnológico acerca de um software secreto é mera desculpa para Soderbergh apreender a arquitetura do thriller através de uma frigidez autoconsciente, cujo resultado se detém na unidade expressiva. Um equilíbrio quase litúrgico que permite ao humor negro e ao melodrama conjugal aderirem à forma sem necessariamente contaminá-la. São estados assimilados pelo filme através das reações dos personagens, dando amplitude ao exercício de gênero proposto por Soderbergh. A blocagem alimentada pela decupagem pingue-pongue é permeada pela fotografia difusa e pela trilha musical recalcitrante - ou seja, com a leveza de uma respiração, o tensionamento causado pelas incertezas vai inebriando o esforço procedural sem corromper o equilíbrio da forma. Assim, Soderbergh assimila um outro tema discutido no enredo: os limites individuais da fidelidade entre as parcerias profissionais e afetivas onde se inserem os casais de espiões vividos por Cate Blanchett e Michael Fassbender, Marisa Abela e Tom Burke e Naomie Harris e Regé-Jean Page.
Suplantando as aparências sem corromper a sofisticação que as identifica, o sentimento de desconfiança põe os exteriores e os interiores (dos espaços e das relações) em pé de igualdade observacional. Seja na arregimentação rítmica da sequência do polígrafo ou na comparação entre a planimetria das duas cenas de jantar, Código Preto se revela essencialmente um filme de espionagem. As curvas no enredo se delineiam através de pistas possíveis, visualmente sugeridas, capazes de implicar a audiência sem recorrer à ludibriação ou ofender sua inteligência com reviravoltas inverossímeis.
Apesar do interesse de Soderbergh pela experimentação dos dispositivos fílmicos são nas possibilidades do método convencional onde sua curiosidade reflexiva melhor se aplica à investigação ética nos relacionamentos interpessoais, temática constante em sua obra. Ainda que raramente com conclusões tão desprendidamente amorais quanto supõe o realizador.