Miguel Gomes, François Ozon, JT Mollner e Vera Egito: cineastas de origens, estilos e tempo de carreira distintos. Em comum, a contemporaneidade - ou ainda, o desejo de alcançá-la. Por mais que o enredo de seus últimos filmes lide direta ou indiretamente com o passado, a premissa é de um olhar renovado perante tais temas. Recém-lançados no circuito brasileiro, os quatro filmes deste sétimo Cinediário compartilham um interesse pela renovação e/ou aprimoramento dos meios com os quais é possível engendrar uma narrativa fílmica.
“(….) Um romance e um filme nos interessam quando estamos ligados a eles em um movimento que é o da intensidade (uma intensidade emocional ou uma intensidade de compreensão). Ao revelar uma forma de tensão que era desconhecida ou mal compreendida por nós, um filme pode criar em nós uma tensão que, se formos honestos, deve ampliar nossa inteligência. Podemos exprimir de outra forma a mesma ideia, dizendo que todo filme digno de interesse manifesta uma força vital e aumenta a força vital do espectador. Uma ideia justa só pode ser uma ideia sã e, inversamente, toda atitude adoecida (ou de egoísmo, ou de torpeza) priva-se da justiça e, portanto, da maior força que existe em nós e sem a qual toda forma de arte é impossível”.
Marc C. Bernard - “Importância de ‘Propriedade Privada’”
(revista Présence du Cinéma nº 12, 1962)
Grand Tour
de Miguel Gomes (Portugal/ Itália/ França/ Alemanha, 2024)
Benquisto pelos festivais internacionais e pela Cahiers du Cinéma, o cinema experimental de Miguel Gomes se interessa pela mistura entre o documentário e a fantasia como forma de explorar a memória e o tempo. O resultado alcança também o nível plástico, com composições exuberantes e uma aclimatação lúdica.
Seu último longa-metragem, contudo, beira o engodo. Disfarçado de invenção, Grand Tour é um périplo a esmo no qual os erros e os acertos de seu autor se dão quase por acaso. Alternando entre o travelogue de perplexidade supérflua a la Wim Wenders dos anos 2000 e o humor irônico, de longa digestão, de Tsai Ming Liang, o filme rastreia, a partir do casal protagonista, a árdua tarefa de encontrar um sentido de liberdade nos limites auto-impostos pelas prioridades individuais. Diante de uma crise existencial, Edward (Gonçalo Waddington) foge e abandona sua noiva, Molly (Crista Alfaiate), no dia do casamento. Ela o persegue numa longa trajetória pelo continente asiático.
No filme em si, esse exercício libertário se dá menos no nível estrutural do que do registro, o que em certo ponto limita as potencialidades poéticas de acordo com as aparências significantes da metáfora - algo distinto da construção de um discurso metafórico. Forma e conteúdo equiparam-se nas respectivas limitações. O devaneio plástico se apresenta como o sintoma de uma curiosidade cosmética enquanto a neurose romântica se resvala num conformismo prudente e sistemático. Não obstante, há fragmentos de um certo lirismo, provocados pela atmosfera de liquidez adquirida através da distensão espaço-temporal. Esse viés sensível reside na assimilação de uma expressão indireta da durabilidade das relações (tanto afetivas quanto sociopolíticas), revestidas por um tom melancólico.
Neste empreendimento, a fuga definitiva de Miguel Gomes estará no reconhecimento dos próprios limites da representação. Algo que soa não como um desprendimento, mas uma certa hesitação perante o próprio esforço. Afinal, Grand Tour vai além da história de amor que delineia, almejando disponibilizar uma demonstração de perspectivas distintas. A execução do conceito acaba por reafirmar o caráter inalcançável do enlace e deixa escapar as pistas de uma certa vaidade “autorista” alheia à compreensão uniforme. Assim, acompanhar a onipresença de Molly na trajetória solipsista de Edward é mais interessante do que perceber o escárnio do rapaz pela obsessão passional de sua noiva. A estrutura díptica não escapa do risco de esfacelar a própria dramaticidade da trama.
Diante das preocupações particulares de Gomes, a possível exasperação da liberdade que Grand Tour tenta especular nesta concomitância entre o registro documental e a feeria é interrompida pelo ecletismo de má liga. Ao contrário dos filmes anteriores do diretor, as possibilidades espontâneas são delimitadas e até refreadas pelo aspecto artificial da forma. No saldo desta impotência dos meios, capaz de confundir as percepções aparentemente sérias e cultas para as quais Miguel Gomes mira seus dardos (prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes do ano passado), a viagem de Grand Tour se revela menos vaporosa do que volátil, menos libertária do que diletante.
Quand vient l'automne
de François Ozon (França, 2024)
O estilo quase maneirista do prolífico François Ozon, cujo êxtase estético por vezes encontrou seu lugar em exercícios de gênero, sobe um degrau rumo à forma clássica que ele tanto admira. Claro, uma admiração com distâncias variáveis ao longo de sua obra.
Quando Chega o Outono detém uma fluidez entre as superfícies, modulando a trama por meio da potência que só a economia narrativa é capaz de proporcionar. Ozon consegue a proeza de se equilibrar nas sutilezas, de modo que, ao abdicar das respostas exatas, alcança imediatamente o essencial daquilo que busca. Esta é a diferença entre propor lacunas onde brotam os enlevos subjetivos e se perder no vazio da evasão. Ou ainda, a capacidade de vislumbrar um grau de plenitude entre as felicidades e as fatalidades. Estando a inteligência em prol da gravidade, as questões basilares do enredo adquirem a leveza do tom ambíguo, ampliando as noções de ética e moral nas relações longevas abordadas no enredo. É impossível estabelecer certezas na origem das intenções maternas que balançam o relacionamento entre duas famílias interligadas graças à longa amizade entre Michelle (Hélène Vincent) e Marie-Claude (Josiane Balasko), o que torna a trama de desconfianças e mistérios ainda mais rica.
Ao balancear a mediação do olhar através da câmera e do zelo criacional das elaborações cênicas, Ozon valoriza aquilo que talvez seja a sua grande qualidade: a direção de atores. As atuações se entrelaçam ao tecido social, tornando-se um material homogêneo. Os personagens se revelam então a partir das relações com os outros (o que eles omitem, assumem e/ou confidenciam), conferindo à dramaticidade de Ozon uma geometria singular, cujo acúmulo de momentos revela uma intenção de buscar a naturalidade ao invés de estabelecer dicotomias. Essa delicadeza dos gestos que evasivamente articulam as substituições e as transferências dá o contorno a cenas pungentes, sensíveis em forma e conteúdo, onde o trabalho ajustado sobre as posições e os movimentos de câmera demonstra uma capacidade lírica na evolução dos retratos.
Em um filme onde a trama das responsabilidades se redireciona da exaustiva parábola de redenção para o alcance da auto-realização como um direito adquirido - mesmo que por caminhos tortos, todos os personagens alcançam o que desejam - a eficiência de François Ozon no percurso pedregoso do academicismo (aquele do naturalismo pragmático e refinado, não a sofisticação banal de uma técnica) situa Quando Chega o Outono numa posição particular dentro de sua filmografia.
A Batalha da Rua Maria Antônia
de Vera Egito (Brasil, 2024)
São Paulo, 1968. No prédio da faculdade de filosofia da USP, o movimento estudantil de esquerda se prepara para enfrentar o ataque dos universitários da Mackenzie, alinhados ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas).
Neste retrato de um dos episódios mais violentos da ditadura militar, uma vez que o posicionamento ideológico é estabelecido de prontidão, a tensão de A Batalha da Rua Maria Antônia se concentra no conflito subjetivo entre as relações de afeto e as motivações políticas. A estudante Lilian (Pâmela Germano) é o ponto de partida numa narrativa imersiva, articulada por 21 planos-sequência e registrada em 16mm preto-e-branco.
O próprio dispositivo do plano-sequência confere um senso de imediatez às decisões urgentes dos personagens. Essa iminência, contudo, não se refere ao fluxo de uma descrição fenomenológica dos eventos através da imagem enquanto presença. Ou sequer operacionaliza um distensionamento entre o dispositivo e o interesse dramático. O estiramento do plano permanece irremediavelmente atado à encenação, como forma de articulação narrativa. Então, o filme de Vera Egito tratará, no fundo, de uma ideia de representação. Uma tentativa de, a cada momento, manifestar uma unidade, à medida que se apresenta os métodos de reflexão de maneira orgânica.
Para além da identidade conceitual ou do aspecto uniforme do registro, as consequências (de qualquer ordem) são o que move o olhar reativo da câmera em meio à atmosfera conspiratória. Na diegese, o prolongamento afetivo entre os corpos é entrecortado pelos ícones de uma revolução iminente, prestes a ser abafada. Por consequência, o exercício de A Batalha da Rua Maria Antônia enquanto cinema-dispositivo, orientado por um padrão sistemático, não é necessariamente posto à prova no nível estrutural. A experiência material está concentrada na colisão entre as necessidades individuais e as do coletivo (vide a comparação entre a composição cênica das sequências ao som de “Roda Viva”). Tais ligações internas dão alicerce à trama, por mais que elas soem meramente acessórias em alguns momentos.
Postos frente-a-frente o caráter subjetivo e a intenção social dos personagens, a dramatização dessa fissura recorre continuamente ao texto enquanto base. Há um lapso na bomba-relógio que arma, de forma elíptica, a estrutura temporal: em meio à urgência, a cronologia não é trocada pela duração interior dos acontecimentos. A estética do dispositivo, todavia, só não se limita ao gimmick pelo caráter de memória adquirida enquanto experiência de classe. É como um registro onde fantasmas carnais povoam uma reminiscência que no fundo pertence à locação histórica. O espaço da universidade, assim, divide o que o tempo multiplica, delimitando o ritual da insurgência política com as propriedades arquitetônicas e coreografando as concessões intersubjetivas através de uma série de limites cortantes. Apesar da conclusão enérgica, A Batalha da Rua Maria Antônia busca menos a conscientização política do que se debruça sobre as escolhas individuais perante as demandas do coletivo.
Strange Darling
de JT Mollner (EUA, 2023)
Desconhecidos começa com uma cena clássica do gênero slasher: a garota tentando fugir de seu algoz. Não se sabe ainda os motivos que configuram tal cenário. Os próprios arquétipos em questão serão postos em cheque nesta narrativa de estrutura não-linear que começa pelo meio e só irá revelar sua gênese na metade da metragem.
Dentre as possibilidades mais frutíferas do cinema enquanto experiência está a disposição para a alteridade. Já a tendência à esquematização das perspectivas, conforme o nível de ambição intelectual do projeto, pode ser encarado como um de seus vícios. Em tempos de raso panfletarismo e reações obscurantistas, o intuito transgressor de Desconhecidos não é apenas urgente. JT Mollner o introduz de maneira instigante. A partir da identificação transitória junto aos papeis de vítima e carrasco, os limites entre violência e desejo, poder e submissão e crença e desconfiança são contestados. As habilidades dos personagens se multiplicam e não se restringem aos respectivos perfis.
À medida que o empreendimento de Miller progride como uma experiência-limite, nota-se um desnível entre as potencialidades. A direção se concentra demais na parte decorativa, rigor estético às vezes consumido pela vaidade. O acúmulo desse virtuosismo direciona a ambivalência adquirida pelos personagens para as garras cínicas do sadismo. Uma vez que as imagens adquirem um efeito assumidamente publicitário do tipo autocentrado (as composições minimamente planejadas aliciam o olhar em sua exuberância superficial), Desconhecidos almeja, através da estrutura não-convencional (com propensão farsesca, rompimento da linearidade e questionamento das convenções mais reacionárias do slasher), induzir a audiência a superar os efeitos cosméticos a fim de subverter o maniqueismo padronizado dos filmes de serial killer. A proposta não é simplesmente empoderar a final girl, e sim evidenciar as possibilidades de manipulação narrativa para só então promover a mobilização dos papeis.
A motivação central de JT Mollner é o raciocínio diante das maquinações, o cérebro à frente da visão. Entretanto, para nos implicar em seu curto-circuito, o filme jamais recorre a um olhar rigorosamente objetivo, nem abdica da articulação sintático-semântica em suas investidas disruptivas. Em boa parte do tempo a balança está desalinhada: há menos inventividade (tanto material quanto dramatúrgica) do que expressividade (no nível supérfluo das composições). Por consequência, a violência - a ferocidade é o elemento indutor na troca de perspectivas entre a Lady (Willa Fitzgerald) e o Demon (Kyle Gallner) - perde seu sentido enquanto agente subversivo para ser apenas um componente capaz de manter as imagens avançando: o que era sugestivo torna-se paráfrase; os arquétipos se desprendem da iconicidade e adquirem psicologia, abdicando das possibilidades de transcendência ou sublimação; a doutrina pressiona a forma, restringindo-na enquanto suporte da estetização. O longo plano final, em sua fetichização agonizante do realismo, chega a ser ultrajante.
Daí, em meio à extenuação, fica o questionamento: o mecanismo de repressão (seja o que conforma o gênero onde Desconhecidos se insere ou aquele capaz de prescrever as limitações do papel feminino na sociedade) está sendo atacado ou justificado?