Quatro lançamentos de origens distintas que, de alguma maneira, lidam com um imaginário imagético pré-estabelecido. Como nada no universo cinematográfico da Marvel é desprovido de uma extenso direcionamento de marketing, Thunderbolts* chega com uma dupla promessa. A primeira, revelar o porquê de seu asterisco (o título verdadeiro do filme só é revelado nos últimos cinco minutos). A outra, de ser um filme de super-heróis com o estilo indie das produções soturnas da A24. A segunda piada até que é boa: diz tanto sobre o verdadeiro espírito por trás da estampa alternativa da A24 quanto a desmesura da Marvel em tornar um determinado método de produção barato em mera grife de boutique. De resto, não sobra muito humor. Por falar em quebra de padrões, Homem com H surpreende ao entregar um resultado quase à altura da envergadura cultural de seu biografado, o cantor Ney Matogrosso. Para além da contribuição inestimável junto à definição contemporânea do termo Música Popular Brasileira, Ney surgiu desafiando normas e conceitos vigentes no Brasil da ditadura militar dos anos 1970 - período em que outro ícone pop também apareceu (e foi interditado pela censura durante seis anos): a personagem Emmanuelle. O Festival de Cinema Europeu Imovision apresentou o novo reboot da série então estrelada por Sylvia Krystel, projeto dirigido por Audrey Diwan logo após a recepção calorosa de seu longa anterior, “O Acontecimento”. Diwan divide o roteiro com Rebecca Zlotowski, outra roteirista e cineasta também com reputação em alta nos festivais ao redor do mundo. Noémie Merlant (“Retrato de Uma Jovem em Chamas”, “Tár”) assume o lugar de Krystel. O Festival Imovision também trouxe ao Brasil A Arte do Caos, thriller alemão que gira em torno do roubo de uma pintura de Caspar David Friedrich. Dirigido por Thomas Arslan, o filme marca o retorno do golpista altamente qualificado Trojan (vivido por Mišel Matičević), personagem central de uma produção anterior do próprio cineasta, “Nas Sombras”.
Thunderbolts*
de Jake Schreier (EUA, 2025)
Detidos entre a promessa da auto-reflexão e o consentimento de um mea culpa, os últimos filmes da Marvel estão cada vez mais autoconscientes em relação aos próprios meios de produção. Thunderbolts se apresenta como o exemplar borocoxôzinho, verbalizando ininterruptamente sua intenção de ser levado a sério como uma narrativa mais introspectiva (ao ponto de citar Kierkegaard e evocar Nietzsche).
Mas atenção… não se trata aqui de subverter ou renovar a relação entre forma e conteúdo. Na prática, rola apenas uma descaracterização no nível das aparências, já que o formato e os valores permanecem exatamente os mesmos. Basta uma vontade mínima de ir além da fotografia de filtro esmaecido, do muxoxo taciturno das interpretações, do psicologismo barato do roteiro e do protagonismo dado aos personagens classificados como marginais no universo altamente polido da Marvel. O que sobra em Thunderbolts - no nível da estrutura fílmica, do temperamento dramático e da simplificação da narrativa cinematográfica enquanto qualidade do gênero de ação - é nada humanizador. É tão ou mais frívolo do que qualquer outra produção anterior. A direção impessoal deixa escapar que leviandade não cabe apenas à euforia.
Vamos partir do papel significativo dado na conclusão àquele que seria, verdadeiramente, o elemento ambíguo com maior capacidade de perturbar o sistema: a vilã interpretada por Julia Louis-Dreyfuss, diretora da CIA e toda-poderosa na clandestina máquina fabricadora de super-herois (em bom português, o avatar de Kevin Feige). Seu desfecho deixa claro que os longas mais recentes da Marvel não foram de entressafra, nem uma tentativa de compartilhar junto à sua audiência fiel o assentimento de uma crise criativa, muito menos uma autoparódia espertinha. As promessas deixadas por Thunderbolts vêm comprovar, sem a dissimulação do fascínio pela espetacularização de outrora, a habilidade inabalável do estúdio de transformar qualquer mínimo lampejo de complexidade num superproduto capaz de manter a indústria em pleno funcionamento. Curiosamente, os melhores artefatos foram originados em períodos onde a Marvel estava mais concentrada em aprimorar seus meandros ao invés de pulverizá-los em plataformas distintas ou manipular a predisposição do público com falsas juras de reinvenção.
A questão central, contudo, está nas razões pelas quais a Marvel busca a grandeza do seu empreendimento audiovisual. Ao invés de operacionalizar artesanalmente a dimensão épica destes filmes, o interesse primordial se detém na multiplicação industrial como mera peça publicitária. Assim, daqui a uma geração, esses filmes não serão nada além de um sintoma ultrapassado, pouco útil enquanto objetos fílmicos e com reduzido grau de interesse cultural. A contagem regressiva pela nostalgia da era pré-“Vingadores: Ultimato” já está em andamento há um bom tempo…
Homem com H
de Esmir Filho (Brasil, 2025)
Buscando por uma alternativa ao método de exposição automatizado da biografia-wikipédia, Homem com H evoca pontos de inflexão sensoriais. O corpo é estabelecido como o elemento principal, catalisador de uma energia vital, sexual e artística que circula através de um mecanismo contínuo de impressão (a reação perante o exterior) e expressão (da emoção interiorizada). A partir disso, provém a questão psicológica: o bloqueio afetivo na relação seminal entre pai e filho influencia os vínculos do protagonista em relação ao público e às suas paixões. Em Homem com H os pontuais e precisos flertes com a abordagem ensaística dão vigor à moldura tradicional da linearidade cronológica e do discurso evolutivo. São essas incidências que sustentam a materialização absoluta ocorrida no desfecho, fenômeno no qual eliminam-se as condições limítrofes caracterizadoras da diegese.
A centralização inequívoca na percepção subjetiva do protagonista atribui ao filme de Esmir Filho o poder de se desvencilhar dos maiores vícios das cinebiografias brasileiras (o saudosismo ralo; a ânsia por inserir o maior número de referências a outros artistas reais no menor tempo possível; a esquematização demasiadamente abrangente e, por isso mesmo, burocrática). Na engenharia do drama, as sequências musicais vêm avivar a memória imagética do artista enquanto ícone no inconsciente popular ao mesmo tempo que promovem a evolução temporal e causal da trama. Homem com H se concentra naquilo que elege como perspectiva e, em certo nível, abre mão das expectativas mais comuns sem abnegar o prazer de deleitar a curiosidade dos fãs que só possuem uma vaga lembrança ou a mera descrição de eventos artísticos marcantes na carreira de Ney Matogrosso. Muita coisa escapou do registro em videotape nos anos 1970 e 1980.
Inclusive, a performance vibrante de Jesuíta Barbosa brinca com a tentação da mimetização do astro pop. Sempre numa chave distinta dos demais atores, Barbosa flutua entre a absorção do olhar e a irradiação cinética. É um exercício expressivo que por si só lida com o enfrentamento das amarras dramatúrgicas que conscientemente moldam as cenas onde seu personagem se vê ameaçado pelo questionamento normativo alheio. Esse confronto físico com a idealização da mimese é fundamental para estabelecer a autonomia de Homem com H, sopro de renovação num subgênero que já parecia fadado ao esgotamento absoluto.
Emmanuelle
de Audrey Diwan (França, 2024)
A Emmanuelle de Diwan é aquela existencialista: mulher independente mas ainda não realizada. O olhar da câmera se distancia do voyeurismo e da fetichização com o intuito de assumir a impenetrabilidade das superfícies humanas. Nesta reconstrução do ícone erótico, é sob a perspectiva feminina que se estabelece uma tentativa de economia do desejo capaz de superar a mecânica industrial onde a libido serve como capital. Ou ainda, um ímpeto de deslocar o drama narrativo para a esfera da energia erógena, através da odisseia sensual da protagonista. Emmanuelle busca ir além da mera visualização da pornografia a fim de propor uma experiência, associando a sexualidade à sensibilidade cósmica à medida que a linguagem dos corpos se une àquela do próprio filme.
É pela trilha romanesca que o desejo é mediado, concentrando-se nas consequências enquanto revela os mecanismos que possibilitam a triangulação entre sujeito, objeto e o modelo mediador. No caso, o molde seria não só o imaginário do ‘filme-erótico-orientado-pelo-olhar-masculino’, constantemente recusado por Audrey Diwan. É também aquele imposto pelo erotismo ultramimetizado da era digital, fincando barreiras a serem transpostas entre o indivíduo e o seu desejo particular. A Emmanuelle vivida por Noémie Merlant se vê enredada em uma vivência altamente controlada (não mais pela influência patriarcal, mas por uma série de rituais sofisticados e padrões analíticos que norteiam a sua realidade e as suas fantasias). Daí a necessidade de recorrer à aclimatações para propor experiências à protagonista, como um método transcendental capaz de conduzi-la a efeitos sensuais anteriormente inalcançáveis - a saber: desatar a luxúria nos corpos dos ambientes luxuosamente impessoais, alcançar a eficácia formal através da organização do delírio estético e transitar a câmera da posição passiva para o papel de provocadora dos acontecimentos ao convocar uma espécie de órbita da percepção visual. O exercício de Audrey Diwan não deixa de ter um aspecto reflexivo.
O país estrangeiro (Hong Kong) abdica do desígnio de território elusivamente exótico para se tornar a projeção amoral do percurso traçado pela personagem-título, evocando uma cosmologia permeada por uma série litúrgica de rotinas e as constantes tentativas de fuga desta. A subversão de Emmanuelle está interiorizada, como quem busca ultrapassar o isolamento dos corpos enredados na publicidade fascinante de si mesmos. Talvez seja frustrante para quem espere ver a insubmissão estampada em letras garrafais - algo que veio a safar a inépcia estética dos longas protagonizados por Sylvia Krystel, conforme certas revisitações críticas de “Emmanuelle” que arriscaram classificar suas imagens explícitas como uma audácia feminista (!). Os tempos são outros. Não há mais pudor cinematográfico em plena era da pornografia customizada. O resgate possível é menos o carnal do que o espiritual, através do minimalismo das sensações atingidas por meio de construções alicerçadas no poder de sugestão. E nisto, a Emmanuelle dos anos 2020 é cerebralmente transgressora e libidinosamente sensorial.
Verbrannte Erde
de Thomas Arslan (Alemanha, 2024)
A Arte do Caos é um caso anômalo em meio à compreensão atual do que é o thriller criminal e suas possíveis relações com os gêneros do noir, drama e mistério.
Isento do deslumbramento cosmético pela contravenção, o filme de Thomas Arslen também não se deixa empedernir pelo extremo oposto da mecanização frígida - afinal, ambos levam à inconsequência artificial no âmbito da representação. O método narrativo do diretor alemão é caracterizado por uma precisão que vai além da depuração procedural de um Jean-Pierre Melville, por exemplo, para aproximar-se mais e mais daquela economia utilitária que caracteriza a organização estrutural da fase norte-americana de Fritz Lang.
O maior mérito aqui é não perder tempo com o supérfluo, concentrando-se apenas no essencial. Consciência da estética como uma possibilidade agregadora à narração; domínio da exatidão em relação ao momento de corte da cena; a motivação para os movimentos de câmera alinhada junto às necessidades do suspense; progressão intelectual dos acontecimentos partindo do desenvolvimento dramático do conjunto; comunicação integrativa entre todas as partes que, por si só, mantêm-se neutras. Visando à unidade, tais métodos acabam por eleger como tema principal de A Arte do Caos uma certa compreensão da atividade do roubo enquanto um ofício específico, com todos os riscos que a ausência de normas pré-definidas lhe incutem, sem jamais render-se à moralizações de teor conotativo. O que resta é a ética individual em meio às ofertas e às ameaças que surgem quando o grande assalto inicial fracassa. Ou seja, no plano da encenação calculadamente organizada, prolifera uma essência instável atuando como um gás tóxico a embaçar a visão dos personagens.
As capacidades de dissimulação podem garantir o sucesso de um crime, mas a habilidade de Thomas Arslen reconhece que o êxito das possibilidades mais profícuas de sua retórica fílmica não seria conquistado pelo subterfúgio de subestimar a inteligência do espectador - e sim em modular, estimular e acreditar fielmente na sua curiosidade.