Cinediário (IX)
O Dublê + Evil does not exist + Yannick + Drive-away dolls + Todo Mundo Ama Jeanne
Lançamentos assistidos na 1ª quinzena de maio:
The fall guy/ O Dublê
de David Leitch (EUA)
O exercício metalinguístico de O Dublê é ambíguo. Independente das camadas de sua construção em abismo é na figura de Ryan Gosling que as sequências de ação se centralizam. Mesmo que o discurso reforce a importância funcional do profissional cujo corpo de fato se arrisca nas filmagens.
Apesar de ressaltar o artifício em cenas espetaculares, O Dublê não resigna a imagem ao valor de superfície. Afinal, a ideia do cinema como um ofício (seu viés prático) é o que intermedia o romance entre o personagem-título de Gosling e a cineasta interpretada por Emily Blunt. O que dificulta o enlace, interpondo-se entre eles, é o emblema de Aaron Taylor-Johnson, astro da produção em que trabalham. O dublê só existe na tela a partir da demanda pela figura do ator; a diretora necessita da presença do protagonista para concluir a rodagem de seu filme. O desafio do casal é descobrir como superar o poder de influência de Taylor-Johnson para canalizar o essencial: esse fascínio pela conquista de um efeito palpável (o sentimento de adrenalina no público-alvo; a relação amorosa entre o casal principal) através da construção do falso (o realismo mimético da arte cinematográfica).
Tanto que é ao cinema de ação que verdadeiramente se direcionam as declarações de amor apregoadas pelos temas de Kiss e Phil Collins na trilha musical. O gênero é o que une e separa o casal romântico; o que sustenta, desenvolve e justifica os melhores momentos de O Dublê; o que motiva a existência de todos os personagens, até mesmo daqueles que se deixam levar pelos efeitos nefastos do ego e se tornam os vilões da história. David Leitch aposta que a essência desse cinema está no lado mais prático da arte. É a parte que cabe àqueles que, ao permanecerem virtualmente despercebidos do público durante a projeção, são fundamentais para o estabelecimento do ilusionismo.
Talvez bata a impressão de que na narrativa haja um desequilíbrio entre o romance e a ação. Contudo, o afeto só é possível graças à adrenalina - vide as constantes quedas do dublê a pedido da diretora. As sequências do “filme-dentro-do-filme” só superam o desdobramento em camadas e se estabelecem em O Dublê quando Blunt e Gosling são capazes de compreender as emoções através do profissional. Em meio à organização do caos que é a rotina industrial da sétima arte, os dois só conquistam as rédeas quando se unem na engenharia criativa da cena como algo a priori à elaboração da imagem (invertendo a lógica imposta pelos vilões, o astro e a produtora vivida por Hannah Waddingham).
A união entre as funções de direção e dublê refere-se a um dado extrafílmico: o histórico do próprio David Leitch, ex-coordenador de dublês. É possível reconhecer seu longa como uma declaração de amor ao blockbuster hollywoodiano. Um elogio assumidamente romântico à máquina de ilusões, louvando os efeitos práticos em um meio cada vez mais dominado pelo VFX e reivindicando alusões (apenas) recorrendo à citações.
Por isso, em diversos momentos, a diversão em O Dublê soa ingênua. O mérito de Leitch nunca esteve na simplicidade e sim na simplificação. Mas a vontade de testar essa inteligibilidade eficaz por meio de um ritmo pressurizado pela lógica de acúmulo - ao invés de aperfeiçoar sua desenvoltura diante das prerrogativas narrativas - é o que sobrecarrega em vão as intenções básicas do seu projeto.
Aku wa sonzai shinai/ Evil Does Not Exist/ O Mal Não Está Aqui
de Ryusuke Hamaguchi (Japão)
Entre a inocência do presente, a especulação econômica refém dos planejamentos e o arraigamento em traumas longínquos, Evil Does Not Exist busca pelo equilíbrio ativo entre certezas e renovações.
Hamaguchi não recorre à sideração para alcançar uma fluência sensível na conexão entre os seres e a vastidão da natureza. O seu método consciencioso de encenação é capaz de articular as durações necessárias a cada mudança interna, calcular cortes de intensidade precisa, integrar materialmente os elementos naturais à narrativa fílmica, caracterizar os ambientes através das composições e propor recorrências que induzem à transformação das perspectivas.
Evil Does Not Exist oferece um olhar direto (as preocupações do autor são claras) embora constantemente pacífico, cuja discrição transparece as relações ao trazer à tona similaridades ocultas sob as diferenças (e vice-versa). Os movimentos da trilha musical de Eiko Ishibashi são o que proporcionam uma fluidez sublime, desnudando as grandezas e o dinamismo latentes no enquadramento visual.
De modo estrutural, a conclusão místico-panteísta reafirma os tons de parábola que circundam a trama. Hamaguchi simplifica e aplaina as distintas compreensões humanas perante a natureza para, a partir de um viés cósmico, esclarecer o conceito de causa e efeito entre montante e jusante. É um impacto trágico e ao mesmo tempo poético; um vislumbre da prevalecência desta metamorfose cíclica que orienta a magnitude funcional do mundo.
Yannick
de Quentin Dupieux (França)
A difícil arte do diálogo natural entre artista e público (e de mantê-lo como o intuito primordial de uma obra).
Ao interromper o espetáculo em curso, a desavença entre o personagem-título e os atores da peça a qual ele assiste provoca uma mudança de papéis. Debochando da autoridade autoral e suas tentativas de manipulação, Yannick defende os efeitos da sinergia entre autor e audiência como fundamento para a arte.
O paralelo entre o tenso stacatto no segundo ato e a fluência do piano na conclusão sugere que a compensação pelo esforço inspiracional seria não o êxito ou a aclamação do conteúdo em si mas a transmissão de um desejo artístico, capaz de motivar a plateia a trocar de posição. Ainda que seja um efeito isolado, efêmero, utópico - a derradeira intervenção da autoridade ressalta que Dupieux não se deixa cegar pela fantasia ordinária da idealização artística. O roteiro, ao eliminar a figura do diretor da peça teatral, não isenta sua responsabilidade. A eficiência do próprio Dupieux é testada sem o apelo do alter-ego, uma vez que em Yannick as ideias transitam na relação entre os atores e os espectadores por meio do texto.
Além disso, os desdobramentos das ações do protagonista permitem vislumbrar a noção de crítica como uma arte que deriva da obra à qual se refere. Esta seria a intervenção realmente frutífera por priorizar impressões imediatas, preterindo análises estético-formais ou meras valorações subjetivas.
Para manter em funcionamento a engenharia da metalinguística criacional, Dupieux reveza objetivamente entre os olhares mantenedores da ilusão do espetáculo e aqueles posicionados no distanciamento que a identificam. A astúcia está no modo como o diretor se apropria de elementos arquitetônicos (proscênio, palco, coxia, público, hall, fachada) para torná-los símbolos que, além de pontuar as viradas dramáticas com precisão, possibilitam as variações nas relações de controle, demarcando as ênfases políticas do texto.
Sem dispensar a acidez satírica característica do realizador, a economia dramatúrgica de Yannick já se destaca na filmografia de Dupieux graças à consistência de sua forma e discurso.
Drive-Away Dolls/ Garotas em Fuga
de Ethan Coen (EUA)
“Love is a sleigh ride to hell”… uma via dupla.
Na rota, uma miscelânea de equívocos improváveis, sarcasmos afetivos, política sexual e a sensação de intermédio entre progresso e conservadorismo tão característica da virada do milênio. Que é o que melhor se adequa ao cinismo metódico do(s) Coen, afinal.
Entre ironias insólitas e artificiais, repletas de cameos em tom de piscadela, o expressionismo contundente de Margaret Qualley corrobora a noção de que a filha de Andie MacDowell detém um dos carismas mais relevantes desta década.


Tout le monde aime Jeanne/ Todo Mundo Ama Jeanne
de Céline Devaux (França/Portugal)
Eis um fenômeno cada vez mais raro: a comédia neurótica, auto-centrada na perspectiva da protagonista, que não reduz seus dilemas ao escárnio e nem é confortavelmente complacente com suas idiossincrasias.
Essa proeza da anti-caricatura é fruto da convicção de Céline Devaux no imediatismo das situações. É o que atribui ao filme um ritmo ágil, eficiente no equilíbrio entre humor e melancolia, variando entre o comentário e a percepção com perspicácia formal e ironia. Seu olhar nunca ultrapassa a subjetividade de Jeanne, de modo que as pequenas transformações em sua crise pessoal alcançam um amplo valor narrativo sem perder o aspecto íntimo.
Talvez por isso Todo Mundo Ama Jeanne alcance com naturalidade algo tão específico e verossímil: um movimento de retorno às origens que não impele ao diagnóstico de restauração, mas enxerga a beleza que há na expectativa por um novo começo.