Filmes assistidos na 1ª quinzena de abril:
Coup de chance/ Golpe de Sorte [2023]
de Woody Allen (França/ Reino Unido)
Esta apologia do fortuito em meio à intriga do adultério lembra as comédias anedóticas de François Truffaut.
A diferença é que, sendo um filme de Woody Allen (e Vittorio Storaro), a lógica de encenação é bastante apegada ao regramento formal, frisando impressões ao invés de sugeri-las. É algo que também se aplica ao universo ficcional, não só à nível psicológico mas também nas identidades dos personagens. Eles continuam a exprimir a insatisfação crônica de seu autor enquanto suas caracterizações sugerem uma oposição pouco inventiva - a protagonista Fanny se vê dividida entre a espontaneidade idílica do amante (o escritor Alain) e a segurança cética do marido (o burguês Jean). Inclusive, a nítida tentativa de humanizar o controle obsessivo de Jean é algo constantemente relativizada pelo próprio roteiro.
Nessa rigidez há pouco espaço para a autonomia do acaso dissipar dentre as cenas e explorar o desapego pelas idealizações estáveis que o texto proclama. Logo, o coup-de-chance serve apenas ao motor narrativo como elemento surpresa. Aliás, se pensarmos no atual modo de produção independente de Allen, essa inocência inalcançável ganha até uma cifra desoladora. As soluções acidentais não seriam consequências simples, mas simplórias.
Há, contudo, um solitário momento mágico, daqueles onde a discrição do controle circunscreve uma fluidez genuína. Trata-se do reencontro entre Fanny e Alain, nas ruas de Paris, ainda na abertura. Um plano longo, onde os reenquadramentos da câmera discretamente denotam a mudança que esse acaso romântico propicia instantâneamente na trajetória de ambos. Nesses minutos é impossível não querer apostar num lance de dados.
La passion de Dodin Bouffant/ O Sabor da Vida [2023]
de Tràn Anh Hùng (França/ Bélgica)
Não há dúvidas de que La passion de Dodin Bouffant busca se aproximar de um cinema-paladar ao invés do mero porn food. Sons diegéticos, cenografia rústica, meticulosas descrições verbais, fotografia de tom naturalista que reconhece as texturas e as cores reais dos pratos: meios que transmitem o apelo sedutor inerente às elaborações gastronômicas criadas pela dupla Juliette Binoche e Benoît Magimel.
E isto é só a entrada: o ponto é que os planos de Tràn Anh Hùng valorizam a gastronomia como um ritual que envolve preparação, ornamentação e degustação. Ao evidenciar mecanismos de uma época totalmente alheia a fast food, indústria taylorista gourmet ou discussões veganistas, agrega-se aí um valor comparativo de viés anacrônico. Ao focar na relação entre artesão e oficio, La passion de Dodin Bouffant ressalta um específico estado das coisas.
A trama, contudo, é de fácil previsibilidade. Quando se dedica ao desenvolvimento íntimo entre chef e cozinheira - o verdadeiro recheio dramático da narrativa - tenta-se um movimento assíncrono, desta vez formal. É quando o longa crê operar os afetos seguindo o regimento do clássico, mas no fundo só mimetiza as aparências de uma fascinação impressionista que emula as imersões naturais de Jean Renoir.
Perante o drama de seus personagens La passion de Dodin Bouffant revela então uma faceta academicista (porque sistemática, intencionalmente poetizante), distante da mesma singularidade pela qual o olhar atento da câmera forja as sequências gastronômicas. Ao adornar Juliette Binoche em meio à prática do cozer, a presença da luz solar busca um alcance lírico-existencial nas incidências ressonantes ao longo do filme. O efeito é tão vistosamente belo quanto rigidamente planificado, assim como todas as alusões que Tràn Anh Hùng promove entre pratos e corpos.
Sorte que a delicadeza de Juliette Binoche é um ingrediente que beneficia a dramaturgia. Pela generosidade da personagem a atriz encontra uma brecha que permite fluir as emoções conscientes de quem idealiza uma despedida como cozinha um prato em sous-vide, preparando em fogo baixo, horas a fio.
Taí uma sessão em que se recomenda o consumo da pipoca: os melhores momentos de La passion de Dodin Bouffant atiçam o paladar. A boca se mexe de forma involuntária e, na ausência de algo para mastigar, recorre à fala. O lanche ajuda a evitar o burburinho na sala.


The Sweet East [2023]
de Sean Price Williams (EUA)
Uma excursão escolar para Washington se transmuta num mergulho histórico à medida que os questionamentos formativos mais básicos da adolescência alcançam a investigação sócio-identitária. A partir de uma atmosfera febril de experimentações, The Sweet East possibilita à protagonista Lillian a mediação do mundo por meio da matéria cinematográfica. Em outras palavras, a ‘Alice Através do Espelho’ faz a ponte Jacques Rivette-Vincent Gallo.
Pautada pela instabilidade visual, a estética de Sean Price Williams consubstancia o senso de desorientação da personagem. Essa oscilação da câmera alcança uma densidade espacial que é ao mesmo tempo concreta e permeável, vislumbrando as possibilidades que a cercam como uma vantagem cognitiva para o próprio filme.
Navegando entre universos que distinguem pautas identitárias e discursos sociais sem limitá-los à representação unívoca (por mais que os seus agentes sejam autocentrados), a inteligência curiosa de Lillian permite que tais dimensões se relacionem naturalmente com a parcela sensível do longa. Através da presença flutuante da protagonista é possível perceber tais registros como verdadeiros simulacros morais e culturais, revelando um Estados Unidos repleto de extremos incapazes de apaziguamento.
Nessa reflexividade há uma tensão entre o distanciamento e a imersão que se faz presente na estrutura narrativa, na textura da imagem, nos pontos-de-vista da câmera e na própria codificação ambígua de Lillian em relação ao female gaze (o objeto autoconsciente que faz dessa condição uma ferramenta para si, ou ainda, a maneira como ela é vista entra em choque com a sua própria percepção deste olhar exterior que constantemente lhe projeta expectativas).
Ao invés de sentenciar respostas, The Sweet East induz à uma apreensão da dificuldade contemporânea de encontrar um reflexo de si mesmo em meio à proliferação de perfis egocêntricos. Ao devolver o olhar do espectador, Lillian não faz um convite, mas frisa um questionamento anárquico diante das exigências atuais de politização. Um espelhamento que reforça o desejo de uma comunicação intersubjetiva tão cúmplice quanto desafiadora - nos créditos iniciais, intermediado pelo espelho; no fim, no confronto direto com a lente.
Rebel Moon – Part One: A Child of Fire/
Rebel Moon – Parte Um: A Menina do Fogo [2023]
de Zack Snyder (EUA)
Por meio da receita típica da jornada épica, a 1ª parte de Rebel Moon trafega entre os imaginários diversos do western, do sci-fi, do fantástico, do cyberpunk, etc., como quem tateia pela possibilidade de alicerce. O que não significa um desprendimento das convenções; Snyder lida com esse trânsito de gêneros sempre no nível da imagem, sem interesse pela desmistificação estrutural. Há até um receio em confrontar as disparidades simbólicas que inevitavelmente surgem à medida que a trama avança (vide a vacilante profundidade de campo nos planos-conjunto, por exemplo).
Devido à sua estética característica, Snyder é reconhecido como o cineasta-auteur do filão de super-heróis. É inevitável reconhecer este como o seu projeto mais particular, uma vez que ele é creditado também como roteirista, produtor e diretor de fotografia. Além de ser uma exceção original às constantes adaptações derivadas em sua filmografia, Rebel Moon também recusa a sanguinolência em meio aos conflitos. A fúria se concentra no medo do sacrifício. Entre chegadas e partidas, a sombra da perda é constante. Existe até uma vontade de racionalizar a superação do luto, mas os caminhos sempre levam à dor, revitalizando a ira da negação.
Enquanto os efeitos dramáticos são pusilânimes, as intenções não inibem uma certa vaidade. Ao ralentar o movimento nos grandes eventos, Snyder ressalta menos o esforço cinético dos personagens do que a magnitude de suas elaborações. Nesse algoritmo das pretensões, Rebel Moon acaba por abdicar da convicção mítica, traço que marcava o olhar do diretor em relação aos heróis da DC Comics.
Aqui, a inocência infantil é uma grandeza a ser zelada como um mito. Mas o que ecoa através das lacunas e nas reincidências é a figura postiça de um ídolo. De um para o outro, a diferença essencial está na resignação vulgar em relação à dimensão épica, limitada à totalidade da aparência visível. Ou seja, o oposto do espírito insurgente que caracteriza as motivações da protagonista vivida por Sofia Botella.


Music [2023]
de Angela Schanelec (Alemanha/ França/ Sérvia)
A austeridade formal de Schanelec proporciona um reconhecimento sólido dos ambientes, capaz de sugerir estados e mudanças através de uma lógica metafórica. Tanto pela economia pictórica de suas composições quanto pela narração elíptica, a cineasta intui uma percepção temporal específica, que opera por ecos comparativos.
Em Music, a expressão musical é o elemento regenerador do homem diante das quedas acidentalmente fatais que pontuam a vida. O canto, em sua propriedade natural de ressonância e modulação, é introduzido em meio às tragédias de Jon. Na estrutura do filme, a fluidez da música é o dispositivo de sensorialidade que permeia os quadros fixos em diferentes espaços, interligando-os, ou ainda, induzindo ao movimento de câmera. Desatrelada à densidade material da imagem, a voz ecoa no interior dos planos como uma possibilidade de sublimação.
Mas quando é preciso lidar com as complexidades dramáticas que motivam a ascese do personagem, fica a impressão de que o revestimento superficial não se submete ao todo de Music. A forma não reconhece a matéria como elemento do próprio discurso, o qual, por sua vez parece se concentrar numa superfície simbólica pouco nítida. Tanto que Schanelec lida melhor com o estabelecimento das situações (os nascimentos) do que com a grande transformação (a ressurreição).
Esse impasse impede o longa de alcançar suas ambições mitológicas (Édipo, supostamente) com o mesmo êxito obtido nas experiências espaciais e nas propostas revisionistas que discretamente singularizam as situações.