Lançamentos assistidos na 2ª quinzena de abril:
Civil War/ Guerra Civil
de Alex Garland (EUA/UK)
Em essência, Guerra Civil replica continuamente a cena inicial onde Kirsten Dunst mira o rosto do presidente dos EUA através de sua objetiva, durante o discurso televisionado que propaga uma falsa garantia de segurança. O intuito da protagonista é ultrapassar a barreira da mediação e detectar a realidade factual. O filme, todavia, a mantém cercada por uma série de representações que espetacularizam e estetizam a ideologia militarista através do cotidiano do repórter de guerra.
Guerra Civil é o típico ‘action flick’ bem produzido, minuciosamente editado para fomentar o suspense, apuradamente realista em seus efeitos sonoros, composto por um elenco naturalmente verossímil, etc.; mas tudo isso revela o quão a produção é autoconsciente na transmutação efetiva de suas características mais aparentes. O imediatismo logo se confunde com a inconsequência; a visceralidade se converte numa cosmética; a experiência imersiva adquire tons sensacionalistas; a distopia política é expediente para a anarquia; e, sobretudo, a adrenalina proveniente das sequências de conflito direto atende menos à consciência instável do observador externo do que aos efeitos de uma estrutura quase gameplay, de percepção onisciente. O mais letal é que até o trágico se torna uma caricatura no desfecho dramático da protagonista, cuja crise profissional é conformada no espelhamento das personagens de Cailee Spaeny (a figura da jovem promissora) e Stephen McKinley Henderson (a prospecção das limitações à beira da aposentadoria).
Em meio ao extermínio generalizado, a maior violência é infligida justamente ao retrato do repórter. Sua eficiência é resignada à mera intermediação de um sistema magnânimo calcado na sede pelo poder. Não é muito diferente do que se dá com os bons desempenhos de Dunst, Wagner Moura e o restante da equipe neste que é divulgado como o longa mais caro da produtora independente A24.
La chimera
de Alice Rohrwacher (Itália/França/Suiça)
O romantismo orientando a introspecção mágica.
La chimera estabelece uma superfície de forte tom ilustrativo. A narrativa propõe, diante dos ícones, um gerenciamento simbólico mais atento aos potenciais de veneração. É uma iconografia capaz de recuperar o apelo retroativo evocado pela trama (em sua rebeldia arqueológica naïve à la Indiana Jones) e promovê-lo ao nível da imagem (via emulações de Fellini, Pasolini e Taviani).
Essa atmosfera é o alcance máximo do discurso romântico que o longa propaga. Mesmo particularizando o estado semi-onírico de Arthur em sua trajetória do luto, ela não induz à experiência sensível almejada pela estrutura. A câmera, desde o início, assume que é impossível capturar o protagonista, preferindo imergir na sua visão de mundo. Diante disso, Rohrwacher solicita constantemente uma entrega que se debate na ausência de profundidade das construções, ressentindo-se de uma respiração dialética entre conteúdo e forma.
Mas os códigos de vida e morte que confrontam Arthur se beneficiam dessa representação febril que acumula símbolos e referências. Ao buscar cada vez mais o elo entre as esferas, La chimera se desprende dos valores banais para tatear o que resta de singular no convívio entre a cultura e o indivíduo. Uma pena que o potencial lírico presente na delicadeza das revelações seja entravado pela ênfase na plasticidade, fragilizando a convicção dos apegos emocionais.
A crença na imperecibilidade da memória que norteia Rohrwacher e transforma o personagem vivido por Josh O’Connor é menos entorpecente do que se supõe. Tamanho empreendimento necessitava ir além da fisionomia idealizada do romance.
Challengers/ Rivais
de Luca Guadagnino (EUA)
Ao invés de priorizar a cinesia dos jogadores na quadra de tênis, Rivais se alicerça na atenção do olhar perante o movimento alheio. É um intenso exercício escópico, que os raccords e as quebras de eixo estabelecem nas imagens a partir da tensão mútua entre o elemento em quadro e o que está ausente do frame.
Aliada à precisão desta decupagem concentrada, a edição sincopada ressalta um forte sentido ocular do desejo - o qual, por sua vez, é intensificado pela ânsia das escolhas imediatas e suas consequências a longo prazo (como evoca o recorrente synth na trilha musical). Ao intercalar os blocos de acontecimentos como um jogo reativo, a construção temporal mobiliza a ênfase na causalidade e esclarece as relações entre o trio principal conforme cada perspectiva. Reconhecer as possibilidades da duração como meio de caracterizar os estados dos personagens faz com que a diferença entre as velocidades do tempo e dos corpos aponte também o que distingue a causa da consequência, a ação da reação e a intenção do desenlace.
O equilíbrio dinâmico entre as possibilidades da montagem e as convicções dos enquadramentos internaliza na estrutura fílmica aquilo que circula entre os corpos de Zendaya, Mike Faist e Josh O’Connor (novamente!). O resultado envolve a nossa percepção em meio às peculiaridades desse triângulo, onde os afetos são intermediados pela geometria rígida do tênis e pelas exigências tenazes típicas da carreira esportiva. Para pôr em funcionamento a mecânica da atração, Guadagnino manipula a superfície dos corpos sem recorrer à uma potência carnal alheia às necessidades narrativas (e talvez por isso o cineasta opte, com frequência, por atores de tímida persuasão que se revelam sedutores a partir do reconhecimento específico da câmera).
Mas em meio ao frenesi da contínua competição subjaz um melodrama latente. No clímax emocional, o diretor descomprime o ritmo para que o drama cósmico se estabeleça e o peso das condições morais precipite, na própria cena, as escolhas definitivas dos agentes. No insustentável esforço de negação (dos sentimentos, como transparece a canção de Caetano Veloso; da própria organicidade rítmica do filme até ali) é que se percebe o objeto de real valia (emocional; profissional).
Deriva então um segundo clímax em Rivais. Este sim cinético, promovendo a sincronia entre os movimentos dos corpos. Diante dos parâmetros estabelecidos ao longo do filme - expectativas e realidades; presente e passado; amor e amizade; a participação ativa e a passividade do espectador - todos os vetores se alinham em uníssono, no mesmo êxtase.
Guadagnino voltou à grande forma.
Love Lies Bleeding/ O Amor Sangra
de Rose Glass (EUA/UK)
Os ambientes que promovem a artificialidade opressora dos EUA no fim dos anos 1980 são os mesmos que possibilitam a conexão entre Kate O’Brian e Kristen Stewart, espíritos dormentes que assumem o corpo pela via pragmática - a primeira, como um meio de garantir subsistência; a outra, protegendo-se através do distanciamento.
A atração entre opostos oferece não só a complementaridade mas também um mergulho mútuo nos abismos interiores. Ou seja, a busca de Love Lies Bleeding é pela química entorpecente entre as matérias, capaz de baixar a guarda e expor a carne viva.
O caos irracional da paixão obscurece a natureza das ações. Essa indeterminação beneficia as ambivalências da trama: é difícil certificar o que é espontâneo ou premeditado nas decisões de um em relação ao outro, considerando seus próprios valores. Na iminência da tragédia, contudo, o sentimento é a grandeza a ser continuamente reafirmada. Para que Love Lies Bleeding sobreviva, provas de amor são reivindicadas ante condições extremas.
Há quem possa julgar o longa de Rose Glass como uma pasteurização estética da crueza que caracteriza as figuras na obra de Claire Denis. Mas este imaginário construído a partir do cinéma-du-corps é uma maneira de subverter a falsa harmonia estadunidense, expondo suas raízes bélica, competitiva, frívola e patriarcal. A crítica do painel social se desdobra em uma espécie de realidade alucinatória bem próxima aos filmes de David Lynch.
Mesmo que instável, esse movimento garante a Love Lies Bleeding uma densidade particular. É o que liberta as protagonistas não só dos arquétipos que as variações entre os gêneros dramáticos da narrativa lhes implicam, mas também dos traumas que as afligem no início da história.
Resta o desafio de tornar essa autonomia tão empírica e cúmplice em algo estável para além dos artifícios. É justamente na química entre Stewart e O’Brian que a diretora encontra um suporte.
Rebel Moon – Part Two: The Scargiver/
Rebel Moon – Parte 2: A Marcadora de Cicatrizes
de Zack Snyder (EUA)
Ao abrir espaço para esclarecer as motivações dos personagens e valorizar suas existências individuais em meio à insurgência conjunta, a continuação de Rebel Moon sugere uma antítese do exemplar anterior, perseguido pela sombra da perda.
Tal estofo dramático até tenta se impor como um propósito de humanização que, ao anteceder a grande batalha, possibilitaria amplitude à urgência da sobrevivência. Na prática, não é bem assim: Snyder articula as preliminares num esquematismo estéril (olhos arregalados em close-up + câmera lenta + contraplano catastrófico cuja magnitude espetaculariza uma suposta tragédia pessoal + ritmo da decupagem guiado pelo direcionamento emotivo da trilha musical).
Na segunda metade do filme, eis o grande momento de ação. Embora repleto de ambições, se perde na arquitetura espacial, vacila no estabelecimento das escalas entre oponentes e é desatento na concomitância temporal dos conflitos. Só salva mesmo o confronto direto entre Sofia Boutella e Ed Skrein, momento em que o diretor utiliza a força gravitacional para explorar os limites e a disposição da imagem com alguma curiosidade cênica. Mas é uma adrenalina efêmera e imemóravel. Ainda mais se tratando do entreato de uma saga autodenominada como ‘epic-space-opera’, mas que é carente de personagens sólidos e originalidade narrativa.
Parece que a maioria dos blockbusters épicos dos últimos anos pegou a cartilha “Star Wars” de George Lucas e a dividiu no meio: alguns resignam-se em não se levar a sério (as adaptações da Marvel, DC); outros acreditam ser o ‘novo clássico’ (Snyder, Nolan, Abrams, Villeneuve).