Lançamentos assistidos na 2ª quinzena de maio:
Furiosa: a Mad Max saga / Furiosa: Uma Saga Mad Max
de George Miller (EUA/ Austrália)
Em vários momentos a câmera de George Miller e os personagens de Furiosa enfatizam algo a ser visto. O motivo central no bildungsroman da personagem-título é o ato de testemunhar e como os efeitos disso diferenciam a ganância dos líderes (que necessitam ver para acreditar) da tenacidade dos guerreiros (os quais, sobretudo, creem).
A dimensão épica deste Western pós-apocalíptico tem seu apelo evocado por um raciocínio clássico que vai além do discurso. Furiosa não se apoia no simulacro de uma fragmentação caótica para alcançar a magnitude desértica - antes, a encenação serve ao intuito de adequar a grandiosidade das composições de Miller aos limites diegéticos. A vastidão oferece inúmeras possibilidades e sua câmera permanece estimulada a explorá-las, continuamente revigorando a aventura. É a proeza de uma espécie de “economia do excesso”, já manifestada no ‘Mad Max’ de 2015.
Sob a grandiloquência dos eventos jaz o controle preciso dos pesos e contrapesos para intercalar as urgências. Tal movimento tonal revela a segurança de uma decupagem analítica, cuja funcionalidade quase griffithiana é capaz de organizar a concomitância dos eventos em meio à dialética das linhas de forças. O que verdadeiramente cabe à exuberância plástica dos efeitos visuais e aos estímulos estruturais da edição é potencializar essas grandezas onde os personagens se localizam, exercitando a autonomia das dimensões e as variações dentre elas.
Testemunhamos aqui a confirmação de um cinema de ação mais cristalino, de ferocidade anti-didática, lacônico em suas descrições e capaz de uma excitação hipnótica. Ou apenas, um cinema visualmente poético. É inevitável recorrer a hipérboles para traduzir Furiosa porque assim é a sua natureza. Alheio às presunções estéreis das dunas villeneuvianas, George Miller, aos 79 anos, é quem nos proporciona o universo épico mais vigoroso da década.
Monkey Man / Fúria Primitiva
de Dev Patel (EUA/ Canadá)
Com frequência Monkey Man confunde o que seria uma percepção da reatividade traumática que caracteriza o survival mode do seu protagonista com uma estética caótica de bombardeio psicossensorial gratuito. É quando o filme se desapega da referência Tsui Hark/John Woo e escorrega para Danny Boyle/Guy Ritchie.
A linha não é tênue: ao atribuir o mesmo coeficiente plástico ao desmantelamento das aparências, à tortura autoinfligida e ao percurso de reparação, o filme não só perde em unidade como descaracteriza o desenvolvimento narrativo.
Na circulação indistinta entre comentário político e representatividade cultural (ambos à serviço de uma embalagem identitária que não encontra o alicerce mítico que tanto reivindica), alguns lampejos sagazes lançados a esmo podem satisfazer quem não exige maior coesão no discurso.
Conexões com ‘John Wick’ são estimuladas; entretanto, na maioria das vezes a câmera fetichista de Dev Patel faz um reconhecimento artificial dos ambientes ao invés de integrá-los materialmente à engenharia da ação. As exceções são dois set-pieces bem funcionais quanto ao imediatismo do confronto físico - o primeiro, situado no bordel barato, e o outro, no bar do Kings.
The first omen / A Primeira Profecia
de Arkasha Stevenson (EUA)
O distanciamento temporal nos permite retornar a certas questões com maior criticismo. E parece que, após quase meio século de derivações, reboots e remakes, a mitologia de ‘A Profecia’ finalmente caiu nas mãos de alguém com interesse em investigar as ideias oportunas que os antigos filmes utilizavam apenas como pretexto para o terror sobrenatural.
Convicto de suas propostas e de sua posição como prequel nesse universo, A Primeira Profecia encara a tarefa ambígua de uma renovação que lida com certo apelo nostálgico. Na busca por uma identidade, o longa de Arkasha Stevenson prioriza a consistência de sua composição. Situada em 1971 (cinco anos antes do primeiro filme), a trama lida mais diretamente com temas (da época?) como a crise do catolicismo, as instabilidades políticas, as teorias da conspiração e a insurgência juvenil. A primeira novidade está na centralização de uma perspectiva feminina - Margaret, jovem noviça americana recém-chegada a um convento em Roma -, método narrativo que se coaduna aos revisionamentos sociais daquele início de década.
O drama das incertezas individuais fornece a base para um suspense psicológico que, por sua vez, viabiliza a manifestação do horror gráfico. A crise institucional da Igreja Católica enreda a instabilidade particular da protagonista, numa relação mútua de fomento e manipulação. Estruturada pelo ritmo cadenciado da edição, essa simbiose propicia um clima de paranóia claustrofóbica similar às neuroses clássicas de Roman Polanski, onde a solidão da dúvida humana é oprimida pelas normas das entidades descorporificadas. A isto, Stevenson adiciona algo que potencializa as questões de gênero que a sua narrativa acolhe: o reconhecimento do corpo feminino a partir de uma óptica expressivamente visceral, quase um cinéma-du-corps. O olhar da diretora é firme em reconhecer a missão de Margaret também como uma trajetória de autoconhecimento e tomada de controle, por meio de indagações que derivam da relação consigo mesma e o seu entorno.
Ao referir-se às tragédias do filme seminal de 1976, A Primeira Profecia faz do fan service um elemento de linguagem. O roteiro dispensa as conotações de espionagem que caracterizavam o longa de Richard Donner e opta pelo regime da conspiração - o embate “bem vs. mal” não é ainda entre seitas, mas se dá no âmago de uma organização religiosa ansiosa por manter o seu histórico poder de influência perante a ameaça do secularismo.
Antecipadas para o início da linha temporal narrativa e intensificadas em seu arranjo estético, o retorno dessas imagens agônicas atribui um peso moral às fatalidades do filme de Stevenson, reforçando o caráter cíclico das dimensões sobrenaturais. Para o espectador (que já assistiu as outras produções da franquia) trata-se de um déjà-vu premonitório, validando as urgências e as responsabilidades que sustentam a progressão apocalíptica de A Primeira Profecia. Um misto de ceticismo e alucinação, próximo ao estado da mente da protagonista.
Para pavimentar a revelação contida no grande plot twist do roteiro, a diretora evita a bifurcação mais óbvia do horror contemporâneo: o susto barato de produções supostamente mais frontais ou o ritmo moroso do “terror elevado”. Arkasha Stevenson propõe um sentido litúrgico orientado por sussurros, elipses, simetrias, reflexos cinéticos e símbolos. É quando A Primeira Profecia confirma, em forma e fundo, sua proposta de originalidade em relação aos pontos-de-vista já adotados pela franquia. Em sua estréia em longa-metragens, Stevenson demonstra domínio sobre a proeza de um certo tipo de mistério que é estimulante e, ao mesmo tempo, incômodo. Ou seja, o mistério que acolhe uma verdade prestes a romper.
Espelhos, portas, grades, janelas e escadas: as encenações se apropriam da antiga arquitetura italiana para instaurar uma atmosfera cerceadora em sua constante vigilância. Ela abriga um conflito constante entre luz e sombras (ou esclarecimento e obscurantismo), onde a claridade se limita à uma chama vacilante, sempre ameaçada pela imponência da escuridão.
Por destoar totalmente do resto do filme, dá para apostar que a ambição transparente no epílogo (redutivo e redundante) partiu dos produtores e detentores da marca ‘Damien’. Caso sim, o motivo da manutenção do controle sobre as massas ganha um nível extrafílmico. A cineasta, de qualquer forma, sai vencendo. A Primeira Profecia é o caso raro de um prequel que supera os demais exemplares, regenerando seu histórico.
Master Gardener / O Jardim dos Desejos
de Paul Schrader (EUA)
De um lado, a busca de Paul Schrader por uma visão de mundo asceta. Do outro, uma concentração rígida que torna inabalável o percurso de redenção do jardineiro vivido por Joel Edgerton, um esforço contínuo de autodomínio dos instintos onde até a relação tátil com a natureza soa calculada e artificial.
Essa sobriedade, contudo, é apenas um desdobramento da própria figura dissimulada de sua capataz-mentora (Sigourney Weaver), ainda que o aluno supere a mestre no exercício e na compreensão do controle. Entretanto, é Weaver, até mais do que o diretor, quem melhor compreende as nuances de um jogo de aparências inerente à existência dos personagens.
Ansiando implicar o espectador, Schrader deixa escapar que a sua análise está menos interessada na articulação das esferas plástica e simbólica (o jardim) do que em explorar a política nas interrelações, através de um olhar externo à reversibilidade dos afetos. Nesses momentos parece que o filme precisa convencer a si mesmo da competência do protagonista de Edgerton em reabilitar-se dos erros do passado.
Até porque a autenticidade aflora em Master Gardener quando este prega a fé não na correção, mas no equilíbrio resignado das forças através da cooperação - algo que só se pode dar no presente. E então, o ofício da jardinagem finalmente não difere daquele do cineasta atento às possibilidades da mise-en-scène: a constância da prática possibilita a visão límpida dos contornos mais bem definidos, capturando a condensação das aparências e fugindo do paisagismo ordinário.
Por isso a intrusiva sequência onírica de Edgerton e Quintessa Swindell juntos no carro diz bem mais à trajetória de ambos (e do longa em si) do que as suposições conformistas do plano final.


Skazka / Fairytale
de Alexandr Sokurov (Rússia/ Bélgica)
Em Fairytale, o resultado do cruzamento estético entre analógico e digital enfatiza a textura e a superfície da imagem. Aleksandr Sokurov recorre às mais modernas possibilidades tecnológicas de manipulação para questionar a ontologia fotográfica do objeto fílmico: o aspecto fantasmático do registro vem denotar o potencial fabular de uma imagem cuja platitude se assume tão holográfica quanto imperfeita. Reafirma-se a ilusão do simulacro pela afirmação das técnicas ópticas da animagem, ao invés de deixá-las suspender a crença no índice contido nas imagens de arquivo.
Ao mesmo tempo, o retrato figurativo dos líderes em questão - Churchill, Mussolini, Stalin, Hitler - enfatiza a concepção pública que eles já detém como símbolos históricos. Sokurov não questiona a psicologia desses líderes ditadoriais (frustrando grande parte dos espectadores da minha sessão, inclusive). Eles atravessam o filme proclamando um permanente interesse pela autoimagem, no sentido de aparência social, influência política e reputação pública.
Logo, o caráter epistemológico do dispositivo de Sokurov vem questionar a necessidade das capacidades tecnológicas de se aproximar da semelhança imagética dos ídolos; o porquê desse fetiche pela verossimilhança. É como se as ressonâncias plástica e mitológica dos personagens operassem dialeticamente para alcançar uma conjectura formal onde o artificial predomina sob a máscara da mimetização. O cineasta russo renega a necessidade do realismo imagético como despreza a sede de poder desses mitômanos, criticando a carência popular de manutenção dos ícones como figuras de adoração.
O que, diretamente (já que o próprio Sokurov é mencionado em Fairytale), se refere ao domínio que o diretor tem sobre o fenômeno fílmico. Ora, Sokurov se debruça sobre a limitação do cinema perante o real utópico tal qual seus personagens o fazem em relação ao domínio absoluto do mundo. A narrativa dramática até tenta se estabelecer (de maneira similar às reimaginações históricas tão em voga), mas não consegue: esses seres autocentrados seguem infinitamente atados à sua imagem pública, incapazes de articular algo prolífero, seja em grupo ou para o filme. Esse purgatório vislumbrado pela sensibilidade espectral da câmera revela-se uma espécie de esfera fáustica ilustrada por imagens oscilantes e intocáveis, desdobrando de maneira centrífuga o conceito de Sokurov. A fábula-título seria, então, uma espécie de realidade alucinatória comum, inconsciente coletivo histórico da humanidade.
Mas mesmo que a mistura de técnicas e plasticidades alcance uma assincronia espaço-temporal, o discurso em si revela-se um tanto ingênuo: Sokurov assume uma posição diletante em relação à historicidade. Quando a doutrina animista encara os incontornáveis efeitos históricos, os quais vão além da reflexão sobre o meio cinematográfico, o impasse acerca do desenvolvimento dramático revela um certo ar de gimmick em relação ao dispositivo. Recorre-se ao alívio cômico (pela ironia ou alusão) não como autocrítica, mas mero subterfúgio para piscadelas culturais (tem-se o Deus de Churchill, Cervantes, Wagner, Schubert, a rainha da Inglaterra, etc).
É aí que entra em cena outro cruzamento, menos harmônico: “a instalação de museu” e o “cinema”, ambos como meio. A proposta de Fairytale é sólida, mas o resultado se identifica mais com a primeira opção. Sokurov vacila na identificação do investimento espectatorial perante a experiência que propõe, ou ainda, na própria formatação dela.
Gostei mais da sua crítica de “Furiosa” do que do filme em si rs
Tenho tentado treinar o olhar para apreciar melhor obras que são mais sobre forma do que conteúdo, e seus textos ajudam nisso. Por ora, ainda tendo a me conectar mais com filmes que dosam melhor os dois mundos.
Obrigado pela leitura e pelo comentário, André!
Curioso, acho que "Furiosa" dosa forma e conteúdo com equilíbrio. Vejo uma certa simplicidade muito eficaz em ambos... que em uníssono possibilitam uma dimensão maior ao tema do filme. Uma dimensão mítica mesmo. Fiquei fascinado por "Furiosa" da mesma forma que com "Estrada da Fúria", acho que ambos tem muito sucesso em ampliar o universo daquela trilogia inicial estrelada pelo Mel Gibson, tanto narrativa quanto visualmente.