Lançamentos assistidos na 1ª quinzena de junho:
Hit Man / Assassino Por Acaso
de Richard Linklater (EUA)
As palestrinhas freudianas; o acervo de piscadelas cinéfilas; a metalinguagem que ironiza o method’s actor - tudo isso é mera desculpa para Richard Linklater fazer a sua paródia de “thriller-erótico-dos-anos-1990”. E funciona.
Porque é a partir da desenvoltura cômica do elenco que Hit Man operacionaliza um jogo de aparências cujo objetivo é ressaltar o poder de sedução que elas exercem nas relações profissionais e afetivas. O diretor não se responsabiliza tanto pelo desvelamento dessas máscaras no quesito formal, pelo contrário, as multiplica e põe o teatro de representações em curto-circuito. Assim, mantém o filme numa zona funcional para aquilo que ele tem de melhor: os personagens e a contínua refração de seus disfarces.
Se a Academia se levasse menos a sério (e então atingisse algum propósito efetivo na instituição cinematográfica para além da movimentação dos status hollywoodianos) seriam performances como a de Glen Powell - flexível, despojada, auto-derrisória - que o Oscar reconheceria. É o verdadeiro resquício do star system numa era de blockbusters seriais em que os personagens prevalecem sobre os seus intérpretes no imaginário popular.
The Watchers / Os Observadores
de Ishana Night Shyamalan (EUA)
Estreando na direção, Ishana Shyamalan até recorre a certos conceitos formais promissores, como a opacidade do dispositivo cinematográfico e a identificação espectatorial. Mas são estratégias que, ao invés de pavimentar o suposto efeito catártico do plot twist, no fundo estão subjugadas a ele e à esperança de uma franquia. Esse clímax deficiente, por sua vez, se alicerça em um roteiro de procedimentos vacilantes e intenções ingênuas.
Em The Watchers, o elemento “novo” aposta na aproximação empática como método de cura e antídoto aos regramentos e à observação distanciada dos “mais velhos”. Acontece que só a ideia de empatia - ou qualquer outra moral pleiteada de maneira rasa - é insuficiente para mobilizar estruturas e provocar transformações. Ou seja, o filme prioriza a exarcebação do discurso através de fábulas e mitologias ao invés de direcionar os esforços de sua composição. É aí que se revela a grande diferença em relação à autonomia narrativa do cinema de seu pai, M. Night Shyamalan. Afinal, a similaridade do tipo de proposta perante o gênero sobrenatural torna a comparação inevitável.
Sem Coração
de Nara Normande e Tião (Brasil)
Um olhar para o amadurecimento que prioriza as particularidades de uma realidade para só então vislumbrar as variações possíveis dentro e fora dela. Entusiasmando-se com o que ali desponta, Sem Coração aposta na exploração sensorial dessas possibilidades. O ritmo da progressão narrativa por vezes solapa essa intenção perceptiva. Mas quando se entrega à desenvoltura de um certo “cinema de fluxo”, capta instantes de uma delicadeza palpável, valorizados pela cumplicidade afetiva dentre os personagens.
Apesar da atmosfera de experimentação, Sem Coração não é imprudente - afinal, não estamos num idílio europeu e a pluralidade pela qual o roteiro se interessa implica também em diferenças e consequências. Nos momentos em que a direção opta pelo atalho do naturalismo dramático, suas perspectivas temáticas soam ilustrativas. Ao retomar a serenidade observacional, as soluções se comprovam mais inventivas; é quando a narrativa revela genuinamente as conexões que a sustentam. Essa desenvoltura mais fluida e sensual dá amplitude ao drama.
Como um todo, Sem Coração parece buscar a inocência através de um modo de representação que remete à obra de Kleber Mendonça Filho: uma predisposição realista mediada por certas operações naturalistas e pontuações simbólicas. Mas para ultrapassar o eco conceitual e proporcionar uma relação significativa entre o ambiente e a ficção, a estrutura carece de uma dinâmica de duração menos padronizada, atenta às urgências individuais que tensionam a trama conjunta de responsabilidades.
Nara Normande e Tião tateiam tanto o equilíbrio entre as influências externas e o desejo particular como o diálogo dessas esferas. No grupo de jovens personagens, a vontade de conhecer a si mesmo convive com a abertura para o outro. Um interesse que, conforme percebem aos poucos, revela-se restrito à bolha que os une. Mas o filme reforça a crença na empatia. Nos momentos em que a assimila em sua composição, atribui espontaneidade ao retrato desse momento da formação do indivíduo onde a ingenuidade confronta-se mais diretamente com a aspereza de um mundo - este sim - sem coração.
Kubi
de Takeshi Kitano (Japão)
Nesta teia de conspirações políticas o perigo é onipresente, as convicções são escorregadias e a confiança se torna precária. A sede pelo poder atravessa todos os seres, embaçando a fronteira passional entre desejo e violência. Basta o romper incontrolado de um instinto para que o sexo se transmute em sangue derramado; o prazer com que as espadas penetram os corpos em Kubi muitas vezes confunde a conquista com o orgasmo.
Mesmo reconhecendo as possibilidades épicas dos confrontos entre os clãs históricos, Takeshi Kitano concatena a decupagem em enquadramentos aproximados e planos curtos, desdobrando o espaço da cena pela construção da sequência. Essa ativação das potencialidades do extracampo transmite uma contínua sensação de perigo onde a morte se faz presente em qualquer lugar. O efeito fatal se antecipa à causa, surpreendendo tanto os personagens quanto a audiência.
A intermitente atmosfera de espionagem é tão densa que parece ser maior do que o próprio filme, mas o diretor nunca perde o controle ou se deixa perturbar pela intensificação compulsiva. O que é levado ao paroxismo em Kubi é a ganância humana. Transfigurações, dublês infinitos, corpos separados das mentes - a narrativa é folhetinesca, repleta de personagens, locações e reviravoltas, mas tece uma unidade. Trata-se da crítica inequívoca à necessidade de poder que consome o homem e embaça a sua visão. Ao final de tudo, nem o próprio Kitano (na pele do tirano samurai Hashiba Hideyoshi) é capaz de reconhecer as aparências com absoluta certeza.
Back to Black
de Sam Taylor-Johnson (EUA/ UK)
A automação descarada das formas, a panfletagem do jazz e do soul, a emulação gestual tão fidedigna que beira a caricatura e a dramaturgia ingênua de musical-teatral (e não teatro-de-musical do tipo Broadway) fazem desta cinebiografia o produto ideal para aqueles que preferem a formatação pop de brio nostálgico do álbum ‘Back to Black’ (2006) à desenvoltura imprecisa e instigante do seminal ‘Frank’ (2003). Gosto, cada um tem o seu. Mas é inegável que este veículo para o legado de Amy Winehouse é um tanto conformista perante o mito - exatamente o oposto do gênio impenitente que dava transparência à sua arte.