Cinediário (XII)
dobradinha Hong Sang-soo (In Water + In Our Day) + The Bikeriders + Um Lugar Silencioso: Dia Um + Divertida Mente 2
Lançamentos assistidos na 2ª quinzena de junho:
Mul-an-e-seo/ In Water
de Hong-Sang soo (Coréia do Sul)
De cara, a instabilidade do foco já sinaliza a peculiaridade de In Water na prolífica filmografia de Hong Sang-soo.
Embora o naturalismo da encenação seja mantido, esse dispositivo visual se refere, concomitantemente, à uma representação impressionista do ambiente, à miopia de um artista iniciante na descoberta de seus meios de produção e à cabeça em maresia pela memória de uma relação amorosa não superada. Ao mesmo tempo que abriga a indeterminação de um bloqueio (criativo e existencial) vivido pelo protagonista, a inexatidão das figuras revela gradualmente uma vontade de transpor as diferenças. A construção intelectual, ao transmutar-se na realização da própria forma, dá amplitude à poética de Sang-soo (calcada, por sua vez, na disposição para a partilha das experiências e no interesse pelas possibilidades). Em In Water, o sentido do filme não se separa do trabalho plástico, deriva dele.
Os motivos usuais do realizador coreano permanecem, mas o exercício ontológico da imagem propõe uma renovação atenta daquilo que é o mais precioso no seu cinema: a busca da compreensão humana através da arte. Essa (de)formação da superfície implica na aproximação estrita entre imagem e representação, artista e obra, homem e natureza, oculto e presença. Muito se diz do quanto a economia expressiva dos filmes de Sang-soo se aproxima da objetividade dos registros do cinema primitivo, mas é em In Water que, através da estética, o diretor intui uma experimentação caracterizada por um fluxo sensorial bem imaginativo sem abdicar de sua frontalidade habitual.
Comum no encerramento de seus filmes, a epifania lírica alcança aqui uma intensidade particularmente orgânica devido à função (simbólica, dramática, atmosférica) da luz. Da estética para a forma: essa concentração permite ao filme distanciar-se de vez da referência impressionista, ressaltando a natureza da imagem cinematográfica como algo imanente.
Uriui haru/ In Our Day
de Hong-Sang soo (Coréia do Sul)
A ausência de profundidade de campo, os planos longos, os movimentos de câmera pontuais, a economia dos elementos de cena, o estado pregnante do fazer artístico como motif, as passagens de tempo imediatas por meio dos cortes secos: estamos nitidamente na mais pura metodologia do universo cinematográfico sang-sooniano.
Nos enquadramentos de In Our Day o realizador sugere que, apesar das diferenças emocionais, a herança familiar se faz presente nos ecos de certos valores, crenças e perspectivas de vida. Mas os fragmentos contínuos do longa soam como se existissem em função da estilística despojada de Sang-soo, não o contrário. O naturalismo das unidades (tanto formal quanto psicológico entre as realidades da jovem atriz e do velho poeta), assim como a articulação entre suas aparências (onde se situam as substituições, as ressonâncias e os elos), parecem uma consequência pré-calculada da formatação de Sang-soo, ao invés de derivarem ou se relacionarem por meio das incertezas que pautam seus personagens, ou até mesmo da premência do tempo e da sensação de finitude que os rodeiam.
Isso estreita a amplitude de uma representação minimalista que já comprovou sua capacidade de revelar preciosidades fortuitas quando mais inspirada (e não necessariamente menos direta). Não à toa Sang-soo recorre a meandros que pouco contribuem ao efeito acumulativo da narrativa, como elipses óbvias, a distração de uma filosofia meio camuflada, os intertitulos que encadeiam e localizam sequências, o simbolismo raso com papel incitante (o gato Us) e um senso de duração uniforme que não reconhece as particularidades dos blocos de espaço-tempo.
Ao contrário de “In Water”, aqui a superação da distância permanece em suspenso, no âmbito da esperança (ou do sonho, conforme a reincidência do plano cuja composição une irremediavelmente a atriz e o poeta). É curioso perceber que parte das intenções sensíveis do filme são limitadas em seu desenvolvimento dramático pelas soluções rigorosas do programa de Sang-soo, menos espontâneo e mais fechado em si mesmo. É algo que enfraquece o tensionamento da conclusão, quase redundante (diegeticamente falando) na evocação lúdica de uma espécie de lacuna interior, ocultada pela apologia aos pequenos prazeres terrenos.
Difícil a imersão proposta pela postura observacional de Sang-soo não trazer à tona algo sensível ou belo; In Our Day de fato tem seus momentos, breves e esparsos. Mas a informalidade tão característica do diretor pode recair em um certo nível de automação superficial. Esse risco inerente a qualquer assinatura artística que se tome por garantida não está relacionado necessariamente à preferência do autor por certos tipos de situações, perfis, comportamentos ou questionamentos. É na expressão de Sang-soo, cineasta-viligante, que reside esse perigo de redução das possibilidades transformadoras que complementam sua característica concisão. Daí a importância de “In Water” nesta etapa de sua obra.
The Bikeriders/ Clube dos Vândalos
de Jeff Nichols (EUA)
Moral da história: os efeitos do poder são capazes de corromper qualquer estrutura, até a do próprio filme.
Afinal, no retrato do clube de motociclistas que batiza o longa, tais consequências se tornam a prioridade da direção, ultrapassando o espírito rebelde estimado pelo roteiro. São valores como a primazia dos instintos primitivos, a utopia libertária e o desejo de comunidade que promovem o fascínio por esse emblema até então contracultural, talhado no inconsciente coletivo através da imagem-ícone de Marlon Brando (como o próprio filme explicita, não bastando a insinuação já trazida pelo derivativo método de atuação de Tom Hardy e Austin Butler). A trama implica que a subversão do controle autoritário é uma consequência disso tudo, mas a direção de Jeff Nichols, limitando a fascinação pelo couro à iconografia e ao slowmotion, parece preocupada demais em antecipar tal conquista. Cabe ao poder de influência regular até as relações, como denuncia a decupagem demasiadamente atenta ao rosto dos atores.
Por isso os êxitos pontuais - a bela fotografia em película onde as sombras parecem derivar do preto das jaquetas, camuflando os rapazes em cena numa espécie de zona de mútua proteção; a perfomance arquetípica de Butler, assumindo a figura easy rider para concentrar em si a volatilidade de um desejo de liberdade individual insustentável na sociedade americana; a representação dessaturada do american way-of-life sugerindo um conflito de forças entre as convenções sociais e a natureza humana no devir dos personagens - pouco geram ressonância no sentido total do filme.
A confusão de Clube dos Vândalos se faz presente já na instância narrativa. A intermediação do ponto-de-vista da personagem de Jodie Comer desarranja a perspectiva de quem supostamente parte a curiosidade e o fascínio pelos motoqueiros outsiders: o fotógrafo verídico vivido por Mike Faist, Danny Lion, cujo livro inspirou o longa. Neste microcosmo dissociado das normas convencionais, tanto a mulher quanto o artista permanecem à margem da irmandade entre os rebeldes. Um filtra a perspectiva do outro, de modo que não há a mobilização de um choque entre o desejo de rompimento dos padrões normativos e a instituição de uma nova ordem, fundada naquela cumplicidade masculina (contraste esse que o roteiro do próprio Nichols almeja alcançar). A estratégia narrativa não só bagunça o fluxo dos acontecimentos como passa a impressão de trair as intenções do projeto.
A Quiet Place: Day One/ Um Lugar Silencioso: Dia Um
de Michael Sarnoski (EUA)
Pela tagline de divulgação (“ouça como tudo começou”), esperava um filme de origem (no caso, um sci-fi). Um Lugar Silencioso: Dia Um está mais para um filme-catástrofe à serviço de uma alegoria, tal qual o suspense opera nos longas anteriores do casal John Krasinski-Emily Blunt, voltados para a conexão no núcleo familiar.
Aqui, o tema é a aceitação do irremediável, encarando de frente a iminência da morte após o diagnóstico de uma doença terminal. O apocalipse instaurado pela invasão alienígena permite à protagonista vivida por Lupita Nyong'o romper com os limites hospitalares e retornar à Manhattan onde vivia, lidando com as lembranças afetivas naquilo que sobrou da cidade. O desafio interno de aquiescer se torna mais importante do que lutar pela sobrevivência. Com zelo e competência, Nyong'o carrega o material dramático nas costas, um prato cheio para o Oscar - caso a Academia não fosse tão preconceituosa com filmes do gênero.
Se no percurso a atriz contasse com uma direção mais atenta às possibilidades daquilo que a tragédia determina, Um Lugar Silencioso seria beneficiado como um todo. Bastava um reconhecimento dos ambientes menos dramaturgicamente automizado, tornando os símbolos uma via de acesso à essência do tema ao invés do mero jogo interpretativo de referências que se estabelece. Convenhamos: apesar da contribuição, a verdadeira função de Joseph Quinn na trama está diretamente correlacionada ao destino daquilo que é mais caro à protagonista (e para a equipe de social media): o carismático gatinho Frodo.
Uma vez que a catástrofe geográfica serve à alegoria central, a performance de Nyong'o reconhece ali um apoio para a angústia particular. Mas os momentos de terror, instantâneos e inconsistentes, entrecortam a narrativa de modo alienante, como se fossem uma concessão às regras pré-estabelecidas pelo próprio universo da franquia.
Enquanto os outros exemplares queriam brincar de Shyamalan, este idolatra Spielberg. Em ambos os casos, é menos simples do que se supõe.
Inside Out 2/ Divertida Mente 2
de Kelsey Mann (EUA)
Embora confortavelmente subserviente aos princípios e ao formato do longa original, Divertida Mente 2 é um pouquinho mais fiel à sua proposta. Na maior parte do tempo, a interação entre os personagens-sentimentos não só dinamiza a narrativa como busca equilibrar o nível de importância dos seus respectivos papéis, evitando reincidir na categorização. Mas não só isso.
Divertida Mente 2 é neurótico, ininterrupto e dopaminérgico, assumindo a percepção confusa da protagonista-humana Riley em meio a puberdade. Uma vez que os sentimentos atuam como dois times em confronto, os efeitos em Riley se manifestam de modo reflexivo. Mas suas reações, facilmente relacionáveis, soam naturais. O resultado dessa unidade entre tonalidade e ritmo torna a identificação imediata.
Ainda que a psicologia positiva continue ditando as regras, a consciência mindfulness se estabelece como a ferramenta funcional. Não à toa a Ansiedade tem uma função central na atmosfera do longa - e a sequência das projeções mentais propõe uma rápida metalinguagem sobre o próprio cinema de animação, conceito substancial que se sobressai dentre tantas sacadinhas cômicas e efêmeras. É uma pena que a dublagem anêmica de Maya Hawke destoe da composição gráfica dessa personagem, talvez a mais bem explorada esteticamente neste universo da Pixar (vide a sequência da crise nervosa).
Para as próximas continuações (já garantida$, é claro), as possibilidades narrativas são promissoras. O desafio da novidade estará justamente na permanência do vínculo com Riley. Ao longo do seu amadurecimento, resta à produção desapegar do formato estrutural que tanto valoriza e investir na criatividade.