Lançamentos assistidos na 1ª quinzena de julho:
Rapito/ O Sequestro do Papa
de Marco Bellochio (Itália/ França/ Alemanha)
No embate entre os laços familiares e a influência religiosa em que os personagens se situam, a encenação de Bellocchio evidencia onde reside a fé do realizador. Isto não significa, contudo, que o seu filme permanece refém desses conceitos. Ambos são fortes e imponentes mas a abordagem é meticulosa, pautada por uma constante tensão dialética entre os componentes da esfera micro e as entidades que regulam o macro. O atrito desse composto revela o caráter político de Rapito.
À medida que as diretrizes do tecido social se interpenetram numa trama conspiratória, os personagens ali inseridos se vêem oprimidos. Nem por isso desistem de insistir naquilo que lhes resta de mais genuíno. A partir desse estado, Rapito propõe uma série de ambivalências - onde se confundem a coragem e a precaução, o zelo e o controle, a perseverança e o vício - que particularizam a essência dramática dos encontros e das separações, atribuindo um impacto fatídico à fragilidade dessas sequências. Através delas o longa manifesta uma pungência arrebatadora.
A doutrina religiosa confunde as intenções dos indivíduos, sejam elas benéficas ou não. Por isso a percepção se torna difusa: a mácula da corrupção deriva do intuito de proteger. Mas Rapito não cai na tentação de idealizar os seus retratos. A partir desta complicação, a consciência de Bellocchio alcança algo ainda maior do que a representação daquelas instituições, uma vez que as consequências referem-se diretamente à natureza humana. O resultado é uma denúncia dos efeitos que o poder de ideologia exerce sobre as relações.
De todas as possibilidades dos amuletos religiosos, Bellocchio prioriza a confirmação de uma proteção amorosa. Milagre esse que só pode se estabelecer a partir do interior.
MaXXXine
de Ti West (EUA)
Na trilogia ‘X’, a busca pelo reconhecimento e o desejo de auto-realização se entrecruzam em meio às promessas de glória propagadas pela grande máquina produtora de imagens em movimento, aka Hollywood, indústria que adorna seus produtos favoritos com a aura da eternidade.
Em MaXXXine, a ambição de Mia Goth por se tornar estrela de cinema é situada num universo recheado de outras imagens já celebradas, adicionando um nível reflexivo à sua trajetória. À esta altura da franquia, o rompimento destrutivo e a obstinação violenta já se estabeleceram como condições para o êxito. Mas ao invés de ser confrontada por uma série de espelhamentos, a protagonista agora enfrenta um simulacro de imagens. Para tal, adota uma nova skin, a de justiceira.
O esforço de Maxine em adequar-se ao universo de Los Angeles a fim de ser, ela mesma, um ícone imagético, implica numa necessidade de transcendência em diversos níveis (de suas raízes e do presente insatisfatório para o futuro esplendor; do instinto para a profissionalização; da perecibilidade da matéria para a impressão imortal no celulóide; do slasher para o vigilante film) - e é aqui que MaXXXine revela o seu aspecto sub-Schrader, em contraponto às delineações sub-Lynch e sub-Cronenberg dos longas anteriores. Mas, assim como na matriz (especificamente o período 1979-1985, que vai ‘Hardcore’ a ‘Mishima’), o apego ao artifício e à forma impõe uma limitação nessa transcendência, reduzindo o alcance e deixando o filme sempre um passo atrás daquilo que vislumbra.
A autoconsciência de Ti West se beneficia do caráter artificial do universo que ele mesmo institui - a resolução do nexo dos mistérios girando espacialmente em torno do letreiro de Hollywood é, do começo ao fim, tão irônica quanto estúpida - e, como cineasta, ele é um bom artesão. Mas ao longo da trilogia ‘X’, seu intuito de explorar o filme de gênero resulta sempre igual. O formato serve como uma ferramenta fácil para as suas pretensões, ao invés da criatividade se colocar à serviço da valorização de certas convenções já exauridas.
Ainda assim, uma vez que Hollywood é assumida aqui como o grande centro pulverizador de uma compreensão do mundo através das imagens, é interessante como a estilização de MaXXXine recorre a um retrato da década de 1980 que não é nem infantilóide, nem ultrarrealista, bifurcação tomada pela maioria das produções atuais. Ti West propõe uma atmosfera perversa e reacionária na sua própria nostalgia, caracterizando a severidade como a recorrência das imagens é capaz de encurralar Maxine. Esse reconhecimento asfixiante do passado por meio de um prisma de imagens espelhadas, refratadas entre si como cópias de cópias de fitas VHS, é tão fechado em si mesmo que não resta saída para o indivíduo a não ser idealizar a si próprio como uma ilusão. Consta aí um comentário bem oportuno sobre a “desrealização” da percepção na maneira como o ser humano interage com o mundo pós-moderno.
Um adendo: não lembro de outro filme recente que retome a velha teoria de que o hit “Bette Davis Eyes” é uma metáfora para a euforia da cocaína. E não seria por volta do mesmo período que se tornou tácito que qualquer um poderia se tornar uma celebridade, pelo menos por 15 minutos?
I Saw The TV Glow
de Jane Schoenbrun (EUA)
Tutorial de como ornamentar e formatar a autonomia sensorial de Gus van Sant para o reels.
Em seu aspecto surreal, a série de TV ‘The Pink Opaque’ abriga as projeções internas dos adolescentes Owen e Maddy e fornece um antídoto instantâneo para a sensação de deslocamento. Já I Saw The TV Glow solicita a identificação do espectador junto aos percalços formativos dos personagens através da estilização. A tentativa de aproximar realidades distintas por meio de uma atmosfera em constante metamorfose plástica recai na idealização. Isso restringe a sensibilidade ao nível mais supérfluo da estética e impossibilita o alcance à essência individual tão almejada pelo filme.
É como se a proposta de abordar temas sensíveis por meio de elementos cotidianos fosse subjugada pela supervalorização do fascínio. Cedendo ao apelo decorativo, Schoenbrun esvazia a hipótese de uma percepção sobre a construção de identidade. Ao invés de ser absorvida pela compreensão cinematográfica, essa complexidade fundamentalmente humana é relegada ao transe vazio de imagens-neon.
Twisters
de Lee Isaac Chung (EUA)
Comparando com a busca passional pela aventura que ditava o ritmo do longa de 1996, este aqui é mais preocupado com a evidência dos fenômenos. Mas por estar demasiadamente atento aos efeitos, Twisters é vitima da auto-sabotagem: o filme está sempre um passo além de tudo.
O influencer-caçador-de-tornados vivido por Glen Powell nos esclarece que só é possível determinar a potência de um furacão a partir de seus danos. Esse raciocínio a posteriori não serve à construção de uma narrativa fílmica onde as causalidades são determinantes para a conexão entre os vetores emocionais. Mas é assim que Lee Isaac Chung, partindo das atualizações protocolares do roteiro, pretende galgar uma densidade psicológica verossímil para as aparências (não para as personagens que as integram).
Twisters só não é absolutamente broxante porque a determinação pelos indícios leva as múltiplas câmeras a captarem os sorrisos de Glen Powell. O carisma do ator compensa qualquer desastre.
Le grand chariot/ The Plough
de Philippe Garrel (França/ Suíça)
Viver como um ato contínuo, reinventando-se à medida que a trajetória naturalmente se imbrica nas de outras pessoas.
Há vários elementos em Le grand chariot que remetem à uma atmosfera familiar e relacionável ao estilo do septuagenário Philippe Garrel: a narrativa despontando do fazer artístico; os traços autobiográficos (a presença dos filhos do diretor, Louis, Esther e Lena); a espontaneidade mediada dos registros. Trata-se, contudo, de um filme bem menos lírico do que outros de sua obra, talvez pelo senso de urgência latente, orientando sua poética a um certo despojamento (nunca vulgar). É como se a vocação realista de Garrel se atentasse não mais à evidência da matéria e sim à volatilidade dos acontecimentos, onde morte e nascimento se chocam e a fatalidade e a esperança se compensam. As elipses secas e a economia narrativa induzem à uma percepção intermitente da vida.
O aspecto prosaico faz com que Le grand chariot seja um filme episódico. No equilíbrio sóbrio entre os momentos de contentamento e melancolia permanece o desejo de conectar os personagens, em mantê-los unidos mesmo que distantes. Ou seja, garanti-los como uma família, apesar da ausência do patriarca (o elo unificador) e do desejo manifesto de continuidade do legado profissional oferecido aos filhos. O próprio filme reconhece a ação do destino e o livre-arbítrio como algo superior a tal intuito. Daí, as incertezas da narrativa intervêm no âmago de uma vontade paternal de ordenação que persegue o contorno das cenas.
O espaço dado à interação entre os atores reforça a autenticidade da aclimatação natural. Outro traço marcante de Garrel se faz perceptível: o apreço pelos momentos de intimidade cotidianos, aparentemente corriqueiros, onde pequenas atitudes são tomadas e, de alguma maneira, acabam por reverberar na trajetória dos indivíduos de forma marcante. Nesse inventário, alguns momentos são de beleza contida, outros resignadamente precipitados. Mas há uma ternura palpável na progressão desse movimento, tornando Le grand chariot uma experiência sensível, apesar da instabilidade.