Lançamentos (re)vistos na primeira quinzena de agosto:
Trap/ Armadilha
de M. Night Shyamalan (EUA)
O próprio cartaz de divulgação já entrega. A armadilha reside na identificação com o olhar. Afinal, essa é a estratégia elementar do cinema de Shyamalan, especificamente naquilo que lhe é mais característico: o plot twist, aqui assumido de cara. Uma grande “virada” já é entregue no primeiro ato, ou ainda, no trailer.
A devolução do olhar contida nos close-up’s - verdadeiro motif estrutural do regime de planos subjetivos que pontuam a narrativa - amálgama em si os estados afetivos concomitantes e contraditórios daquele que busca garantir para si o controle da narrativa. No início, a posse é detida pelo suposto pai-de-família-comum vivido por Josh Hartnett (ótimo nesta variante maníaca de Matt Damon, a figura do americano médio por excelência), sendo usurpada por outros personagens dotados da mesma capacidade de oscilar entre os egos ideais e seus alter-egos temidos. Por isso, eles adquirem o status de manipuladores da percepção alheia; a pista é dada nos planos reflexivos no camarim e na cozinha doméstica, revelando o exato momento em que o controle é transferido. Multiplicando tal capacidade, Armadilha se apropria da perspectiva monocular da representação - a centralização da consciência individual - para atestar a sensação de domínio como uma falsa consequência propagada pelos aparatos sociais e ideológicos normativos.
Atuando nos pólos entre vida e morte, esses personagens têm em comum a necessidade de operacionalizar uma narrativa cujo êxito dos efeitos de transparência está inequivocamente ligado às suas aparências. A superfície de seus rostos necessita recusar a disponibilidade para a interpretação, dissimulando possíveis leituras. A identificação inconsciente alheia é fundamental, ressoando da trama (através da intersubjetividade dos personagens) para a estrutura da decupagem (no posicionamento da câmera, no uso da profundidade de campo, na duplicação interna da imagem). A falsa percepção do ‘outro’ como ‘eu’ afeta o domínio visual. Os personagens, como nós, são conduzidos e dominados por aquilo que não se vê.
É nessa oscilação entre as dinâmicas de identificação e auto-estranhamento que, apesar das diretrizes psicológicas hitchcockianas, Armadilha se aproxima mais do universo de Brian de Palma: a percepção obcecada pela formatação das aparências, que distraidamente ignora a proximidade daquilo que as põe em risco.
The Old Oak/ O Último Pub
de Ken Loach (Reino Unido/França/Bélgica)
O Último Pub almeja ser, ele próprio, o registro de uma transformação solidária, interrompendo a irradiação da intolerância através da restauração da memória afetiva - conforme capta o olhar estrangeiro da personagem Yara (vivida por Ebla Mari).
Seu intuito falha. Como é de praxe nos últimos filmes de Loach, o realismo social baseado em “boas intenções” carece de credibilidade (o texto se impõe como veículo do discurso) e cumplicidade (a direção se abstém de promover uma dinamização dramática, privilegiando apenas o tom emotivo dos componentes trágicos e enfraquecendo psicologicamente a representação). Tudo soa comum e facilmente relacionável, mas é apenas simplório. Apesar das pretensões políticas, O Último Pub se posiciona passivamente entre a demagogia e o didatismo.
Não é que a narrativa dirija as emoções; antes ilustra, indica e restringe a maneira como elas devem ser percebidas, em prol do alcance da moral edificante. O tom elusivo da regulação contínua entre o peso do sofrimento e o alívio fraterno em que os personagens se envolvem revela que a ficção não serve necessariamente a um propósito humanista, nem mesmo como panfleto. É só mero subterfúgio para uma visão da Inglaterra pré-Brexit que se disfarça de esperançosa, mas é, sobretudo, alienada.
Loach se aposenta com estagnação. Novamente reivindica uma missão social sem tornar manifestas, em sua forma fílmica, as contradições que estressam os questionamentos. Não há política porque não há construção objetiva, apenas uma ideologia estática. O Último Pub encerra e suas principais indagações permanecem intocadas.
Borderlands
de Eli Roth (EUA)
Um desastre, de fato, mas não necessariamente pela frustração dos critérios de adaptação, conforme propagado no efeito manada do film twitter. A questão é que Roth (apenas) confronta a arquitetura gameplay com as convenções épicas, ocasionando a Borderlands uma grave deficiência rítmica. Nos brevíssimos momentos em que o imediatismo da ação ultrapassa as regras da jornada da aventura, o filme funciona. Já quando tais propriedades colidem, o resultado é consumido pela indecisão entre o sarcasmo e o despojamento. Cabe reconhecer que o diretor já se comprovou mais assertivo ao lidar com outros gêneros, vide o slasher de “Thanksgiving”, lançado ano passado.
Conforme as regras da cultura pop, a premeditação da performance inviabiliza o brilho natural do camp. Ainda assim, a afetação proposital de Cate Blanchett é capaz de promover um futuro reconhecimento cult à esta bomba. Nem que seja servindo de base para os desafios do RuPaul’s Drag Race, tal qual “Mamãezinha Querida” e “Mahogany”.
El auge del humano 3/ O Auge do Humano 3
de Eduardo Williams (Argentina/Portugal)
Através da vaporosa presença de uma câmera-entidade - cujo intuito perscrutador pode aludir à tecnologia onipresente no cotidiano dos personagens, à misteriosa poluição que tem ação fatal sobre seus entes ou à silenciosa engrenagem opressora do capitalismo - El Auge del Humano 3 estabelece a imersão em um espaço indefinido, caracterizado pelo desequilíbrio econômico presente em grande parte do planeta.
Propondo uma investigação ontológica através da própria fabricação da imagem, Williams não objetiva um recorte do mundo. A densidade fílmica é estabelecida conforme os passos de uma busca pela clareza de cosmovisão. Há, concomitantemente, a consciência prática das constantemente renovadoras possibilidades do cinema digital e uma sensação de curiosidade que remete aos primórdios desta invenção óptica. Não se produz o registro para definir um mundo e sim para reorientar a experiência espectatorial através do olhar.
Ou seja, um cinema de exploração visual que não é encantado consigo próprio, nem se perde pela fruição narcótica. O que El Auge del Humano 3 alcança é a afinação da percepção humana e a consciência (espacial, econômica, social) do próprio ser em relação ao seu lugar no mundo. Esse exercício de tempo-e-espaço se faz sensível na superfície imagética: está nas aproximações dos corpos flutuantes e na elasticidade de um tempo capaz de mesclar a intensidade instantânea do cotidiano com a dilatação da memória elíptica.
Dispensando imperativos niilistas e humanizações complacentes, El Auge del Humano 3 opta pela intensidade cognitiva. As especulações possíveis provém da própria mostração desses corpos que simplesmente “estão no mundo” (como elementos cósmicos transitando entre o efêmero e o eterno) sem necessitar serem designados pela observação alheia. O procedimento do aparato cinematográfico solicita uma propensão à revisão de suas próprias estruturas, de maneira que os impulsos reorganizem continuamente o olhar do espectador para só então conduzi-lo à solução valorativa: a destituição desse Outro onipresentemente vigilante é possível, desde que a presença do alvo seja capaz de operar em um outro nível de atenção. É necessário desapegar da matéria para destruí-lo, obter a capacidade de perceber o entorno sem o filtro que essa mesma entidade impõe. Uma revelação que se dá de dentro para fora. A transmutação ocorre na implosão da imagem, onde o dispositivo se desnorteia em meio ao retorno às raízes.
A imagem a ser desconstruída é não só aquela que temos do mundo mas também o nosso próprio reflexo. Por isso a postura retórica de El Auge del Humano 3 vai completar sua crítica no espectador, após a apreensão total dos fragmentos. Para além do som, do espaço, do tempo, da imagem, eis o real efeito expandido de seu dispositivo 360.
Horizon: An American Saga – Chapter 1
de Kevin Costner (EUA)
Apesar das múltiplas perspectivas, a primeira parte da saga Horizon opera sua premissa humanista de modo bem uniforme: a disputa pelo domínio territorial torna a manutenção dos elos sanguíneos incompatível com uma noção de lar como propriedade.
A câmera demasiadamente privilegia os personagens, enfraquecendo o esquema no qual seus dilemas estão inseridos. Costner os equipara através do discurso, aproxima-os esteticamente mas não os amarra pela forma. É o que impede a inteligibilidade de sua direção em alcançar a mesma grandeza temática de um Griffith ou um Ford. Logo, a diferença entre o academicismo e o clássico.
A percepção espacial parece refém das mesmas leis de causalidade que implicam a relação entre os personagens no interior de cada núcleo (mas não na ligação entre os blocos, tornando superficial a dimensão épica). Isso não só desarma a ubiquidade da ambição narrativa como confina as potencialidades da imagem. Visualizá-las no monitor do avião ou na tela do cinema, acompanhar seu desenvolvimento de uma só vez ou fracionado serialmente, é indiferente… e talvez seja por aí que se localizam os reais propósitos revisionistas de Costner.