Cinediário (XVIII)
Coringa: Delírio a Dois + A Substância + Ainda Temos o Amanhã + Leme do Destino + Sidonie no Japão
“(…) é inegável que apenas através da exploração sistemática das possibilidades estruturais inerentes aos parâmetros cinematográficos, poderá o cinema libertar-se das formas antigas de narrativa e desenvolver novas (…) Trata-se de estabelecer relações consequentes entre as articulações da decupagem e as do “roteiro” ou da narrativa, umas determinando as outras e vice-versa. É o caso também de dar a mesma importância tanto à desorientação do espectador quanto à sua orientação.”
— Noel Burch, Práxis do cinema
Lançamentos vistos na 2ª quinzena de setembro:
Joker: Folie à Deux/ Coringa: Delírio a dois
de Todd Phillips (EUA)
Nem um prolongamento, nem um rompimento: Delírio a dois funciona como uma variação dramática de “Coringa”, retornando àquelas motivações e consequências sob um viés melancólico, menos marginal que misântropo. Uma sequência verdadeiramente presa no tempo, negando os falsos avanços típicos dos universos cinematográficos Marvel/DC. A dependência mitológica é assumida com o intuito de propor uma reflexividade.
O retrato da bipolaridade desapega da catarse violenta (a psicopatia) para aderir à fantasia (a alienação). Como válvula de escape, os números musicais são intervenções verticais adiando a inexorabilidade da sentença de Arthur Fleck. Através da construção das sequências, o filme opera um confronto incessante entre as tendências da realidade e as possibilidades feéricas, duelo inscrito não só na cosmética dos enquadramentos como na dinâmica temporal das cenas, particularizando os momentos.
Esta continuação até poderia soar como um mea culpa de Todd Phillips diante das acusações de produto “incel” atribuídas ao longa anterior - e a própria composição da Harley Quinn projeta tal fanatismo -, mas a fidelização à representação psicológica do protagonista revela um comprometimento fascinante, superior à idolatria.
Ainda que a convicção do diretor seja rude demais para corresponder às aspirações líricas do seu esteticismo, a maneira como as estratégias formais almejam uma entorpecência de plenitude assumidamente inalcançável, sempre barrada pelas circunstâncias do real, propõe um desenvolvimento subjetivo. A narrativa se desestrutura perante as necessidades causais para alcançar uma progressão sensível.
E se a fantasia do entretenimento só é possível através de um pacto mútuo (o fundamento de Delírio a dois), Phillips elaboraria um exercício de gênero mais sólido se assumisse que o método de Phoenix e Gaga está mais para a clássica sinergia concentrada entre Cary Grant e Mae West do que para Robert de Niro e Liza Minnelli, duo naturalmente incompatível no anti-ilusionismo scorsesiano de ‘New York, New York’.
The Substance/ A Substância
de Coralie Fargeat (EUA/ Reino Unido/ França)
A Substância é menos sobre a imagem distorcida dos corpos do que corpos presos numa imagem estilizada (no caso, a do próprio filme).
A partir da orientação frontal que enfatiza a ostentação das superfícies nos planos, o distanciamento entre espectador e campo visual não se manifesta mediante a consciência de uma perturbação capaz de sustentar o funcionamento desse mundo regulado por excessos. Ao invés disso, a relação resultante é de mero fetichismo, baseado no poder do olhar.
O interesse em questionar a necessidade de capturar o olhar do outro (masculino) para a construção do eu (feminino) como algo estimulado pelas prerrogativas da mídia é, sem dúvida, uma premissa rentável. A questão é que essa ideia não passa do pressuposto. Os momentos verdadeiramente funcionais se concentram no confronto cênico entre Demi Moore e Margaret Qualley (espetaculares!), passado e futuro da figura de uma atriz inserida no esquema midiático volúvel. Por outro lado, priorizar as diferenças entre os dois lados de uma mesma moeda sem propor inversões ou alternâncias é ceder a um certo maniqueismo, negando as complexidades humanas que residem justamente na raiz da falta, naquilo que motiva a compulsão e a auto-destruição.
Convenhamos, a expressividade do conteúdo não está localizada no estilo e sim na forma fílmica. E se a produção do discurso é irremediavelmente intrínseca à composição das imagens, o que há para além da atmosfera satírica que enverniza A Substância, cuja estranheza é tão envolvente em sua frivolidade quanto o universo onde a protagonista existe? Ou ainda, deste cruzamento entre a transgressão laboriosamente calculada de "Titane" (Julia Ducournau) e a representação realista-capitalista de "Barbie" (Greta Gerwig)?
É mais importante para Coralie Fargeat nos enredar pelos efeitos aplainados e imediatos de sua estética ao invés de nos instigar, de provocar uma intimidação não só diante das consequências mas também daquilo que produz a imagem dos corpos-objeto. No máximo, podemos apenas consentir ao que a diretora incita. O problema não é reivindicar a persuasão da artificialidade por meio de referências cinematográficas. O mecanismo de A Substância se apoia em artimanhas publicitárias só para garantir que a denúncia sempre se antecipe à revelação do verdadeiro estado das coisas. Isso artificializa toda a psicologia contida na metamorfose física da personagem compartilhada entre Moore e Qualley.
O clímax ‘Carrie pós-reposição hormonal’ ressalta o quão a noção sobre o envelhecimento diante do escrutínio público é incapaz de superar um olhar imaturo acerca do desequilíbrio de longevidade entre o indivíduo e seu reflexo imagético.


C'è ancora domani/ Ainda Temos o Amanhã
de Paola Cortellesi (Itália)
Para Cortellesi, romper com padrões não significa abdicar da ilusão, pelo contrário. O despertar propõe outras possibilidades de fascínio.
Não parece, contudo, que o discurso social contra a violência política (de gêneros; pró-republicana) seja capaz de alcançar, na construção narrativa, a dimensão romântica almejada pela diretora-atriz-roteirista. Da mesma forma, o conflito estético sugerido pelas ameaças da ironia pós-moderna à manutenção da textura neorrealista se dá apenas no nível mais superficial, porque é ali que ambas residem. Por tornar-se refém desse grau de idealização, as conquistas (do filme; da protagonista) se limitam ao agenciamento, não necessariamente galgam autonomia.
A criatividade de certas intervenções expressivas não chega a ser inventiva. Em essência, Ainda Temos o Amanhã se insere no atual modelo sofisticado de representação: um realismo despersonalizado onde a retórica se concentra na palavra para que a câmera a veicule.
É nos momentos mais condensados que as ambições de Cortellesi alcançam uma certa sensibilidade. Curiosamente, eles residem menos nas sequências onde o desejo de emancipação feminina se vê obrigado a encarar os diferentes níveis de grandeza patriarcal do que no retrato fiel da opressão doméstica. A coerção é palpável. O progressismo, palatável.
Leme do Destino
de Júlio Bressane (Brasil)
Só mantendo os pés no chão é possível mergulhar com inteligência na embriaguez sinestésica da paixão.
Para além do fascínio pelo valor literário da expressão, Bressane articula o discurso visual através de metáforas onde o poder alusivo não se prende meramente à substituição do sentido. Os símbolos são reconhecidos concretamente, reverberando seus efeitos pelo espaço até contaminarem os corpos. A passagem angustiante do universo da imaginação (enquanto fuga racional) à práxis do desejo (a experiência de uma necessidade) assume contornos febris em reconfigurações particulares de tempo e espaço.
Não há outra via para transmitir um aprendizado sensível senão pela experiência íntima, disponibilizando ao mesmo tempo o reencontro com os instintos e as referências para o seu manejo. Por isso o elo amoroso não corrompe sua essência libertária: quem ensina a operar a bússola (Josie Antello) também aprende a desapegar do discípulo (Simone Spoladore).
Sidonie au Japon/ Sidonie no Japão
de Élise Girard (França/ Alemanha/ Suiça/ Japão)
Recorrendo aos elementos tradicionais do romance sob um realismo minimalista, a fábula de Élise Girard vai buscar sua sensibilidade na particularidade do olhar. Por mais que as emoções se apresentem enrijecidas, elas jamais se petrificam. Vão sublimando aos poucos por meio da experiência do indivíduo com o exterior, ambiente onde o visível e o invisível coexistem em harmonia.
Prezando pelo registro dos instantes, esse formato rigoroso é perfeitamente adequado à expressividade concisa de Isabelle Huppert. A trajetória estrangeira de Sidonie se transforma em um exercício de desapego dos fantasmas do passado visando a disponibilidade para o desconhecido, apostando na criação de novas memórias para se reconectar com o fluxo da vida.
Nesse circuito de imagens vinculadas à temporalidades distintas - sejam aquelas presentificadas por meio da diegese (o holograma do marido falecido; a duração singularizada do sexo com o editor) ou referenciais (Resnais, Miyazaki, Rohmer, Mizoguchi) -, Girard estabelece uma dramaturgia concentrada, de síntese refinada. Tal condensação torna perceptível não só a real alusão estrutural a Kenji Mizoguchi, mas também evoca o temperamento dramático de Hong Sang-soo.