Projeto Truffaut XVIII: “O amor em fuga”
Antoine Doinel no último capítulo de um longo romance de formação.
“L’Amour en fuite”. FR/1979. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Bebert, François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Marie-France Pisier, Jean Aurel, Suzanne Schiffman. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Georges Delerue. Montagem: Martine Barraqué-Curie. Elenco: Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel), Claude Jade (Christine), Marie-France Pisier (Colette), Dorothée (Sabine), Dani (Liliane), Julien Bertheau (Monsieur Lucien).
Do longa-metragem seminal (‘Os incompreendidos’, 1959) até o findar da década de 1970: durante um período de vinte anos, François Truffaut manteve um alter-ego interpretado pelo mesmo ator (Jean-Pierre Léaud), em cinco ocasiões distintas. O ciclo Antoine Doinel é um longo romance de formação e O AMOR EM FUGA (1979) se assume como o encerramento desta trajetória, operando pelo revisionamento. Através de flashbacks, a proposta é debruçar-se no passado com o intuito de analisar imbróglios pessoais. Uma tarefa não tão simples — nem mesmo para o cinema, que dispõe da imagem em movimento como prova cabal dos acontecimentos (ao menos, em tese).
Apesar do ritmo ágil e anedótico, o cinema truffautiano escamoteia complexidades à sua aparência frugal; é elementar que uma certa crise envolva a resolução de término do realizador. Em O AMOR EM FUGA, a primeira atitude de Antoine Doinel — olhando para o extracampo — , é despedir-se, convicto, de Sabine (o atual pivô sentimental), mas também de nós, ou até mesmo do próprio Truffaut [foto abaixo]. Na verdade, nem tão convicto assim: os clamores da jovem por sua presença lhe fazem ceder ao irresistível encanto do romance (e, finalmente, às expectativas do espectador, já que a projeção do longa mal começou). O que se vê a seguir, no decorrer dos créditos iniciais, é um intenso emaranhamento de corpos, assumidamente apaixonados mas ao mesmo tempo sombrio, confuso, estruturado por planos distintos do mesmo ato sobrepostos em si mesmos.
Dos 95 minutos da metragem de O AMOR EM FUGA, 18 saíram de obras precedentes de François Truffaut que contavam com Jean-Pierre Léaud no elenco. Mas o total de flashbacks da narrativa é composto também por sequências inéditas, filmadas em 1979. O que norteia Truffaut na escolha das cenas que ilustram o passado de Antoine Doinel é a própria trama deste longa atual. Não se trata de elaborar um dispositivo imagético ou um exercício intelectual de montagem per se, até porque há uma neutralidade no trabalho de Néstor Almendros como diretor de fotografia, permitindo que a combinação se dê sem maiores choques estéticos de iluminação ou razão de aspecto. O cineasta se apropria de uma virtualidade específica da fotografia (e, logo, do fotograma): a capacidade de presentificar espacialmente o passado, a fim de analisar as memórias como registros que ensejam uma interpretação do indivíduo, dando-lhe a faculdade de ressignificá-las. Afinal, embora a instabilidade de sua vida profissional tenha lhe propiciado a ocasião para escrever e publicar um romance autobiográfico (intitulado ‘Les salades de l’amour’), Antoine Doinel agora trabalha como corretor em uma gráfica de livros.
Há aqui um forte apelo ao storytelling: é através de ‘Les salades de l’amour’ que a primeira namorada de Antoine, Colette, atualiza-se sobre a sua trajetória [foto acima]; Christine, ex-esposa do protagonista, relata à Colette sua perspectiva do matrimônio fracassado e as peripécias extraconjugais que o então marido teve junto à amiga Liliane; Colette, por sua vez, desabafa para Christine suas frustrações anteriores como mãe e esposa; Doinel descreve à Sabine a causalidade absurda que o fez se apaixonar por ela; Monsieur Lucien, o padrasto de Antoine, traça a ele um perfil até então desconhecido de sua mãe já falecida.
Em O AMOR EM FUGA, entretanto, não se trata de confiar cegamente no narrador (até porque os flashbacks vêm apontar que Antoine Doinel falseia certas memórias em seu livro). Menos ainda atestar a imagem como um índice de verdade por si mesma: ela intervém para ratificar, corrigir ou esclarecer os depoimentos, dispondo-se primeiro à percepção do ouvinte. Os flashbacks são evocados e confrontados com as perspectivas dos personagens, estratégia formal que a decupagem estabelece em pontuações, inseridas através de aglutinações que sucedem a um close-up resultante do movimento de zoom da lente, dando assim a significação de uma lembrança subjetiva. Ademais, em um segundo nível, a história do roteiro é narrada ao espectador — inclusive frontalmente, no momento em que o protagonista chega a quebrar a quarta parede, numa tentativa falha de convencer (à Colette e a nós) que é capaz de elaborar um conto que não tenha raízes autobiográficas [foto abaixo].
Fotografias (ou fotogramas) podem ilustrar um fato, mas são insuficientes por si só. É necessário uma investigação (a advogada Colette ao inquirir as provas do crime antes de seu novo julgamento) ou um depoimento (a restituição do retrato de Sabine servindo como prova dos sentimentos declarados por Antoine), para que o registro ganhe uma motivação, um sentido. O AMOR EM FUGA serve a François Truffaut como ferramenta para a sua característica visão do individualismo romântico do autorismo (sua marca dos tempos como crítico da revista Cahiers du Cinéma), negando a concepção estruturalista anti-humanista de Michel Foucault e Roland Barthes, cuja relativização do autor o restringe a subproduto da escritura, instituição efêmera e circunscrita no tempo.
O retrato de Sabine [foto abaixo], antes despedaçado e agora reelaborado, se torna um motivo visual: confrontando Doinel, o filme de Truffaut repassa seus envolvimentos amorosos como forma de (re)avaliar o presente, método regressivo que o conecta até as rachaduras fundacionais de sua relação materna. Antoine faz daquela fotografia um artifício tanto para tecer uma fábula à Colette quanto para comprovar a veracidade de seus sentimentos junto à sua atual parceira. Entre o fracasso da primeira e o sucesso da segunda, a confirmação de um dado intrínseco. A partir do desenvolvimento do enredo, o espectador percebe que ambas as versões partem de uma estrutura bastante similar onde narrador e elementos se mantêm: os diferentes aspectos se dão pela forma como ele o conta, adaptando certas circunstâncias, mas se mantendo fiel à sua moral.
Por isso, os “falsos” flashbacks inseridos (como os de ‘A noite americana’ (1973), onde Jean-Pierre Léaud interpreta outro personagem) e recontextualizados à favor da narrativa de O AMOR EM FUGA é menos um enjambramento do conceito que uma comunicação natural entre forma e conteúdo. Truffaut pratica um exercício similar ao de seu personagem, dando-se o direito de romantizar a construção de sua narrativa da mesma maneira que o personagem reelabora determinados fatos de seu passado no romance autobiográfico que escreveu.
Aliás, é fácil detectar um critério afetivo por parte do realizador na seleção dos fotogramas anteriores trazidos de volta para O AMOR EM FUGA. Não se trata necessariamente de suas cenas mais formalmente elogiadas; é como se este filme-testamento fosse também um mosaico sentimental do autor sobre o seu personagem-fetiche. Mesmo com uma narrativa carregada de personagens e informações numa metragem concisa, O AMOR EM FUGA mantém a leveza característica de Truffaut. Ainda que aborde a temática da separação em densidades diversas (da desilusão amorosa à morte de uma mãe/filha), Truffaut se atém à uma mesma perspectiva instantânea. O diretor não permite que o longa emerja em tais agonias, afinal, na esfera da memória, não é possível reviver os eventos (ou, tratando-se um filme, reencena-los fielmente). Resta a vista desses registros com a consequente reflexão de seus revezes ou benesses como forma de prosseguir a vida. Sabine, Christine, Doinel e o Monsieur Lucien, todos se dispõem a um movimento dianteiro que não é sinônimo de fuga (como o era no desfecho de ‘Os incompreendidos’), mas de aceitação daquilo que é naturalmente imutável.
Antoine Doinel inicia O AMOR EM FUGA ainda apegado à uma concepção romântica das relações amorosas, um traço de quimera já alertado tanto pela experiente Mme. Tabard em ‘Beijos proibidos’ (1968) quanto pela (então) esposa Christine em ‘Domicílio conjugal’ (1970). Durante a oficialização do divórcio, as lembranças do casal diferem entre si: de um beijo roubado no porão da casa dos pais da moça, Doinel se recorda do ímpeto romântico que deu origem a essa brincadeira, ocorrida quando ainda eram namorados. Já Christine lembra-se de sua insossa tentativa em recriar a situação, anos depois, já casados; ato esmaecido pela ausência da sedução arrebatadora do momento original. O longa de Truffaut parece alinhar-se à perspectiva fatalista de Doinel acerca do matrimônio.
Ao reencontrar-se com Colette em uma viagem de trem expresso, Antoine Doinel é confrontado pela antiga namorada por causa de sua índole irresponsável. A reação do protagonista é esquivar-se. Mas não numa fuga rumo ao incerto como na conclusão do filme de 1959: Doinel conscientemente interrompe a viagem “do passado” e salta do vagão, no meio do trajeto [foto acima]. Esse deslocamento, situado na narrativa entre as interpelações diretas de Colette e Sabine (verdadeiros sermões inferidos ao protagonista), é o verdadeiro ponto de virada tanto na trajetória de vida do personagem e quanto na trama de O AMOR EM FUGA. Se no vagão com Colette ela o “induzia” para fora do frame, na discussão posterior, Truffaut impede que o personagem assuma o mesmo campo que Sabine, separando-os entre as duas janelas de um mesmo prédio [fotos abaixo].
O AMOR EM FUGA vem então dar continuidade a um ciclo de desfechos, composto também por ‘Na idade da inocência’ (1976), ‘O homem que amava as mulheres’ (1977) e ‘O quarto verde’ (1978). A ida do filho de Doinel à colônia de férias mista num trem repleto de crianças, alude à conclusão do filme de 1976, onde meninos e meninas se divertem juntos durante o verão, superando o regime de separação entre gêneros estabelecido no colégio. Em relação a “O homem que amava as mulheres”, Truffaut reprisa em Doinel a maneira dedicada com que o personagem-título enxergava as idiossincrasias das mulheres por quem se apaixonava. É como se ele fosse um prolongamento daquele homem vivido por Charles Denner; contudo, esse último já começa o filme de 1977 morto. Antoine também se despede, mas não alheio à metamorfose.
Nesses quatro filmes, Truffaut, tão apegado ao passado, enxerga uma necessidade de renovação perante os emblemas dos relacionamentos amorosos, algo que coincide com o devir da década de 1970 e sua chegada aos 50 anos de vida (sendo 20 como realizador). Enquanto ‘O homem que amava as mulheres’ e o protagonista-proprietário d’ ‘O quarto verde’ sucumbem ao não darem conta dos apelos de mudança, o alter-ego truffatiano se dispõe à tentativa. O AMOR EM FUGA recorre à necessidade do mausoléu afetivo introduzido no filme de 1978 através do amálgama de flashbacks, contudo, sem requerer meramente reavivar seus registros, e sim superá-los, sendo mais que um índice de lembranças.
Se a estrutura se dá por idas e vindas temporais, a encenação de O AMOR EM FUGA é marcada por um constante abrir e fechar de portas e janelas [fotos acima]. É a referência ao cineasta Ernst Lubitsch, um elemento tipicamente presente nas comédias anedóticas de Truffaut; uma maneira de dispor os personagens sempre em locomoção pelo campo, introduzindo uma dinâmica que distribui visualmente as ênfases solicitadas pelos diálogos rápidos, aproximando e afastando as figuras no quadro conforme a reação daquilo que é verbalizado. Tais portas e janelas também propiciam uma cosmografia regulada pelo acaso, onde encontros e desencontros se dão pelo fortuito. Numa das mais pungentes sequências já elaboradas por Truffaut, padrasto e enteado reencontram-se anos depois, separados por portas de vidro. Enquadrados por molduras, Monsieur Lucien e Antoine Doinel se observam com esforço, como se tentassem reconhecer numa fotografia recente a figura de alguém que pressentem conhecer, mas que não veem a muito tempo [fotos abaixo].
O encontro entre Doinel e seu padrasto vem esclarecer questões maternas do protagonista. À imagem de sua falecida mãe, ele agora é capaz de agregar uma outra visão, a qual possibilita reinterpretar a incompreensão juvenil exposta em ‘Os incompreendidos’. Sob os olhos de Antoine, a antes-Madame Bovary se torna agora a personagem-título de ‘A dama das camélias’. Quando Truffaut dispõe o fotograma congelado de um close-up da atriz Claire Maurier, de maneira a fundir-se à imagem de Antoine Doinel no cemitério, subsiste a sugestão freudiana de que as atribulações amorosas junto ao feminino provém da delicada relação do personagem com a sua mãe. E é o beijo masculino no rosto de um Antoine surpreso com o impulso fraternal de seu padrasto, que conclui o dispositivo de virada pessoal iniciado com a interrupção do trem em movimento e o salto do vagão. O protagonista deixa de dispor o seu destino à correnteza das paixões pelas mulheres que cruzam o seu caminho. Esquecendo de vez Colette e Christine e optando por reconquistar Sabine, tateia-se o equilíbrio: Doinel reconhece sua própria natureza romântica sem exacerbá-la através de mentiras e fantasias.
O plano derradeiro de O AMOR EM FUGA dispõe Antoine Doinel de frente para o espelho — alusão ao momento de ‘Beijos proibidos’ em que o personagem, sozinho no seu quarto e dividido entre dois amores, reafirma para si mesmo o próprio nome como quem busca uma identidade em meio à crise. A diferença é que agora há lugar para a presença de Sabine nessa mesma moldura [foto abaixo] e através dela, uma expectativa de satisfação amorosa e completude pessoal (ainda que relativa, pois aqui se tenta, meio que à fórceps, a aceitação do imprevisível em sua inevitabilidade, uma das dificuldades intrínsecas do cinema de Truffaut).
Nos créditos finais fica mais claro porque Truffaut antecipou a “despedida” de Antoine Doinel para os primeiros minutos, matando de pronto a ansiedade da partida. Tem-se aí um breve romper da barreira extrafílmica: um casal entra na loja de discos onde estão Sabine e Antoine e pede pelo single de Alain Souchon que é o tema de O AMOR EM FUGA (aliás, é a primeira vez que uma canção pop contemporânea embala um longa de Truffaut). A audição desses dois “estranhos” na cabine privada é desculpa para um “amasso” daqueles bem apaixonados, que a câmera ricocheteia conectando-os ao beijo de Antoine e Sabine. É como se o longa de Truffaut desejasse se declarar mais que um exercício de alter-ego, sendo também um ensaio sobre as relações amorosas.
O dissipar da barreira diegética mantém-se quando o diretor funde o beijo apaixonado de Antoine e Sabine à sensação de maravilhamento do pequeno Doinel de ‘Os incompreendidos’, convocando a cena em que, num parque de diversões, ele gira rapidamente dentro de um brinquedo com a aparência de um Zootrópio gigante (artifício visual que, por sua vez, espelharia a própria alegria de François Truffaut — antes crítico, agora realizador — em estar “inserido” no cinema) [fotos abaixo]. Se para a sua sobrevivência o alter-ego se vê obrigado a efetuar um percurso de autoconhecimento perante aquilo que lhe é sinônimo de existência (o amor), Truffaut faria o mesmo trajeto através do cinema? Tentando desvencilhar-se da figura de seu personagem, o exercício do olhar do cineasta assumiria agora uma distância que, através da montagem, lhe permite rever e reavaliar os fatos? É nos últimos minutos que O AMOR EM FUGA finalmente reflete o seu discurso em um exercício ontológico, através de uma dobra auto-referente. A euforia juvenil de se inserir no cinema é equivalente à leveza de um relacionamento interpessoal adulto desembaraçado de traumas e cobranças.
É uma espécie de calmaria o happy end reservado para Antoine Doinel, personagem que atravessa os filmes sempre correndo, aparentemente fugindo mas, no fundo, em busca de algo que lhe escapa das mãos justamente por ser mais rápido do que ele. “Toute ma vie, c’est courir après des choses qui se sauvent”, diz a letra da música-tema de Alain Souchon. O criador despede-se da criatura com o afeto tranquilo de um pai sempre atento.
“Quando um filme está terminado há vários meses, o laboratório telefona à produção a fim de obter autorização para destruir a película não utilizada na montagem final: as “duplicações”, as “sobras”, que, enrolados em bobinas de metal, entulhariam os depósitos. Dou essa autorização para a maioria dos meus filmes, porém, no caso do ciclo Doinel, não consigo me resolver, pois tenho a impressão de que a película dedicada a Jean-Pierre Léaud e que o fixa cada vez numa etapa diferente de seu desenvolvimento físico é mais preciosa que no caso de personagens adultos” (François Truffaut, prefácio às ‘Aventures de Antoine Doinel’, Éditions Mercure de France, 1971)