de Amy Adams a Andrew Garfield & Florence Pugh; de Bruno Dumont a Edward Berger
produções dentro e em torno de Hollywood, via Festival do Rio 2024
Antes de tudo, um brevíssimo mea culpa: a quantidade de títulos na watchlist, a produção entrecortada de textos, o deslocamento entre os cinemas e o gerenciamento da retirada de ingressos (que ficam disponíveis conforme a disponibilização das cópias no Brasil e esgotam rapidamente após a abertura on-line) pesou em relação à minha presença aqui no Substack, assumo. Aproveito a distensão desta reta final de repescagem para atualizar a cobertura:
Jesse Eisenberg, que estrela, dirige e roteiriza A Verdadeira Dor (“A Real Pain”, EUA/Polônia, 2024), foi premiado em Sundance pela última função. Mas o atual burburinho do filme em Hollywood se dá pela atuação de Kieran Culkin (pós-fenômeno “Succession”), já considerado o franco favorito pelo Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Culkin e Eisenberg interpretam dois primos antagônicos reencontrando-se em um passeio turístico pela Polônia, a fim de homenagear a falecida avó.
Na locação em Auschwitz, o contracampo da câmara de gás em relação o rosto de cada integrante do grupo de turistas judeus revela que A Verdadeira Dor é (também) sobre uma questão geracional. O longa de Eisenberg buscaria o oposto de uma sistematização do trauma; antes, acredita na possibilidade de, através dos vestígios do tempo, reconhecer a singularidade contida em cada sofrimento particular, independente das razões e das configurações de tempo e espaço.
Mas não deixa de ser irônico quando Kieran Culkin repreende o guia turístico de planejar uma experiência tão superficial. Afinal, o filme de Eisenberg faz o mesmo em relação tanto às manifestações da rebeldia prét-à-porter daquele personagem outsider como também na insatisfação crônica do protagonista vivido pelo próprio diretor (um Gen-Y bem-sucedido conforme as regras da classe média alta). A economia do roteiro em relação ao arco temporal e ao desenvolvimento da trama acaba por simplificar as digressões daqueles personagens.
O que funciona melhor em A Verdadeira Dor é um de seus sintomas: a nostalgia pela adolescência irrecuperável. Ela reside no encantamento de Eisenberg (como diretor e ator) pelo espírito gauche de Kulkin, seu reflexo invertido. A desenvoltura do ator lhe garante um domínio cênico constante, envolvendo-nos na relação principal da história através de uma perspectiva fascinada.
A Verdadeira Dor é o típico filme que topa alimentar a romantização desde que ela mesma se mantenha íntegra, assim como a aparência idealizada do excêntrico, ambos incólume e longe de romper com as suas estruturas representacionais (dos personagens e/ou do material dramático). Pode ladrar, mas sem morder.
Após o êxito de sua adaptação para “Nada de Novo no Front” em 2022, o diretor alemão Edward Berger se voltou para o best-seller de Robert Harris, Conclave. Este drama ambientado inteiramente no Vaticano conta com um elenco estelar (Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Isabella Rossellini, John Lithgow, Sergio Castellitto) e, desde sua estreia no Festival de Telluride há pouco mais de um mês, tem sido aclamado pela crítica internacional.
Para além da conspiração religiosa mobilizadora das engrenagens deste suspense claustrofóbico, a perspectiva de Conclave (EUA/Reino Unido, 2024) é fidedigna à crise particular enfrentada pelo protagonista vivido por Ralph Fiennes, um Cardeal já fatigado dos procedimentos catolicistas. Nesta trajetória de recuperação do desígnio moral, o filme de Edward Berger é quase uma fábula.
Berger inicia sua narrativa fílmica promovendo uma liturgia dos objetos, em planos-detalhe que ressecam o aspecto iconográfico desses amuletos e contribuem para um olhar frio diante do enclausuramento vaticano. O tom chiaroscuro da fotografia, a decupagem enfática, os tableaux imponentes, a onipresença angustiante da trilha musical: as possibilidades da linguagem cinematográfica, enfim, atuam em uníssono para concentrar o mal-estar do personagem de Fiennes.
Mas, se a dúvida perante a verdade é o que possibilita a via para a certeza de uma fé inabalável, o filme de Berger traz à tona a operação de uma conspiração-mor, acima de todo o jogo de interesses promovido dentre os líderes candidatos ao posto de novo sumo pontífice. É pela ação do Divino, em sua função demiúrgica, que a verdadeira missão do protagonista se revela. O diretor, alinhado ao comportamento de seu ator principal, reorienta o rigor de sua encenação: ela migra sua atenção do material (as burocráticas sequências ritualísticas) para os sinais anímicos (as performances fervorosas do elenco).
Quando o fenômeno intervém em sua verdade inegável, não há como recusar o clamor pela renovação. Talvez Conclave soe academicista se considerarmos a ambição do seu texto, mas a porção fabular daquilo alinhado à trajetória particular de seu protagonista revela uma inteligência onde o sentido em questão está alinhado mais à composição visual das atmosferas do que às convenções do suspense relacionado aos poderes do Vaticano. E é nesta epifania da luz, atravessando as estruturas da tradição, onde acaso e destino se colocam frente-a-frente.
Amy Adams, já seis vezes indicada ao Oscar (e sem nenhuma vitória), anda despertando curiosidade pelo aspecto fantástico de seu projeto mais recente, Canina (“Nightbitch”, EUA, 2024). Nele, Adams interpreta uma artista cuja carreira é posta de lado ao se tornar mãe. O resultado desta insatisfação pessoal? Ela se transforma numa cadela.
Ok, a atriz é também produtora executiva do projeto, mas cabe frisar que a direção é de Marielle Heller. Seus filmes (os estimáveis “Um Lindo Dia na Vizinhança”, “O Diário de Uma Adolescente” e “Poderia Me Perdoar?”) buscam formas de lidar com a superação de uma ilusão sem romper totalmente com os meandros de fantasia. Ou seja, lidar com a vida adulta sem perder a ternura.
Existe selvageria em Canina e isso está localizado nem tanto na promessa de body horror, mas na relação entre a performance lúdica de Amy Adams (sem dúvida a mais inspirada da sua carreira) e a visão mordaz sobre a maternidade. O tom confessional do texto, contudo, logo ganha ares didáticos quando as questões partem para a realização individual. A articulação metafórica da criatividade artística como natureza primitiva em oposição ao instinto materno parece não ser suficiente. Recusando ultrapassar os limites auto-impostos e sem saber como redirecionar sua curiosidade formal, a saída de Canina é se desvencilhar do devaneio irônico a fim de alcançar o realismo capitalista (do mesmo tipo de “Barbie”).
O resultado final não soa tão visceralmente honesto quanto se supõe. A atmosfera provocadora é, em essência, ortodoxa, já que os efeitos transformadores soam limitados pelo intuito de veicular uma mensagem programada bastante específica, sem margem pra erro. Canina seria, pois, um outro tipo de fábula doméstica: aquela do requinte, atualizando a engenharia só para manter o pleno funcionamento do sistema.
A quantidade de corte pro TikTok com música da Taylor Swift que Todo o Tempo Que Temos (“We Live in Time”, Reino Unido/França, 2024) vai gerar…
Comecei envolvido pela química cintilante do casal Florence Pugh e Andrew Garfield, mas o acúmulo de imagens idealizadas deslizando pela tela me fez pensar se isso é o máximo a ser oferecido para uma protagonista em busca de aproveitar cada minuto que lhe resta após um diagnóstico terminal. O lust for life vira fear of missing out. Daí bate a dúvida, será mesmo uma química romântica ou só a combinação algorítmica de uma dupla agradável?
O recente boom de “Anyone but you”, com Sydney Sweeney e Glen Powell, parece mesmo ter impulsionado as comédias românticas (relegada ao limbo dos streamings nos últimos anos) de volta aos cinemas, afinal, Todo o Tempo Que Temos se aproxima mais disso do que do antigo “My life”, com Michael Keaton e Nicole Kidman.
Atenta à recepção calorosa de September 5 (EUA/Alemanha, 2024) no recente Festival de Veneza, a Paramount Pictures tratou de rapidamente comprar a sua distribuição mundial e arquitetar um esquema de divulgação pronto para tomar de assalto a awards season 2025. Vários veículos de Los Angeles já apostam neste retrato dos jornalistas da ABC Sports durante a cobertura do ataque terrorista nas Olimpíadas de Munique de 1972 como o arrasa-quarteirão das indicações ao Oscar.
Em conformidade com o seu time-protagonista de correspondentes esportivos (restrito à transmissão direta dos acontecimentos, deixando a investigação política para a equipe da central de jornalismo), September 5 também toma posicionamentos imediatos.
O longa de Tim Fehlbaum se define como apolítico, recorrendo ao imediatismo para gerar tensão, espetacularizando o evento terrorista. Para gerar suspense acerca de um acontecimento cujas consequências já são conhecidas, dramatiza seus bastidores, inserindo imagens de arquivo em meio à recriação ficcional. Por fim, elege os EUA como o verdadeiro heroi da situação trágica entre israelenses e palestinos em pleno alemão, já que o canal de TV ABC é o responsável por informar tais acontecimentos para o mundo em tempo real e, aliado a isto, a narrativa elege uma perspectiva central recompensada pelo reconhecimento profissional (o personagem de John Magaro).
Acima dessas colocações e dos próprios efeitos da arquitetura do suspense, o primordial é que September 5 indubitavelmente assume sua posição enquanto veículo de uma informação (ou melhor, como construção desta emissão jornalística). E nisto, Tim Fehlbaum não se arrisca em nada. Em meio à aflição da equipe em desenvolver maneiras de prosseguir com a transmissão do atentado em Munique, não há espaço para as inquietações da própria comunicação em si. Seja na engenharia da representação ou nas convenções do suspense, a linguagem de September 5 é a mais padronizada possível.
A estética ardilosa (promovida pela combinação entre a textura do 16mm, o ritmo dispersivo das elipses e o predomínio absoluto da câmera na mão com pouca profundidade de campo que, apesar da sugestão de instabilidade, meticulosamente alterna entre o falso “fly-on-the-wall” e o olhar subjetivo) evita qualquer dialética entre os registros ficcionais e verídicos, equiparando os documentos ao nível do realismo decorativo. Percebe-se, inclusive, uma certa nostalgia na maneira ilustrativa como o modo de produção televisivo da época (no qual o ápice tecnológico era a transmissão via satélite) serve à trama.
A imagem real adere à representacional sem testar os seus limites; antes uma corrobora a outra, dando origem a um amálgama visual feito unicamente para submeter-se aos códigos de um cinema de sensações, o qual revela sua incoerência ainda na concepção. Conservador no nível formal (ou seja, político), o filme de Fehlbaum é qualquer coisa, menos apolítico. E isso pouco tem a ver com o timing de seu lançamento ou produção, nem com a rapidez da Paramount em "usurpá-lo".
A celebrada Pauline Kael acertou em cheio em sua crítica sobre “O Último Tango em Paris” à época do lançamento: “Este é um filme sobre o qual as pessoas vão discutir, eu acho, enquanto existirem filmes. (...) É um filme que você não consegue tirar do seu sistema, e eu acho que ele vai deixar algumas pessoas muito irritadas e enojar outras". Claro, as razões para esses efeitos mudaram drasticamente ao longo dos anos, indo das cenas polêmicas à construção delas mesmas, conforme os bastidores revelados por sua atriz principal, Maria Schneider. É neste segundo ponto onde se firma o filme de Jessica Palud, Meu Nome é Maria (“Maria”, França, 2024), baseado livremente na coleção de memórias assinada pela jornalista Vanessa Schneider (prima de Maria).
Fascinado demais perante os eventos pré e pós a fatídica cena entre Marlon Brandon e Maria Schneider filmada por Bertolucci, Meu Nome é Maria não consegue propor um desenvolvimento próprio a partir do impacto daquele momento divisor na carreira da atriz (vivida aqui por Anamaria Vartolomei, em alta desde a sua aclamação por “L’Événement”, de Audrey Diwan).
No intuito de encaixar a trajetória real da protagonista em pretensões oportunas, a narrativa estabelece um panorama esquematizado e frio. Ou seja, o oposto em dar lugar de expressão a quem sofreu por ser desvalorizada, tornando Maria Schneider num outro tipo de símbolo, oposto ao sexual, mas tão circunscrito quanto.
Conforme o breve esquema proposto pelo filme, eis o perfil resumitivo das colaborações de Schneider: Bertolucci é um ludibriador egocêntrico; Antonioni, honestamente afável; Rivette, enriquecedor em seu ofício; Brando, romântico e romantizado por todos, principalmente seu intérprete, Matt Dillon.


Um dos diretores mais influentes (e polarizantes) do cinema europeu nos últimos vinte anos, Bruno Dumont enfrentou algumas polêmicas na pré-produção de seu mais recente filme, O Império (“L’Empire”, França/Alemanha/Itália/Portugal/Bélgica, 2024). Esta paródia da franquia “Star Wars” e dos blockbusters hollywoodianos filmada na Costa Opal, região natal do diretor, venceu o Prêmio do Júri na recente Berlinale.
Despindo os artifícios dos tropos e símbolos dos gêneros sci-fi e medieval através de uma estética naturalista, Dumont permite à sua dialética representacional alcançar uma constatação contemporânea: a fixação pelo extremismo. Posicionado entre o binarismo maniqueista das grandes instituições espaciais, o ser humano torna-se, ele mesmo, o artifício da situação: é usado como artigo bélico, reconhecido de forma condescendente em seu livre-arbítrio.
Uma vez que a essência da tragédia clássica vêm à tona, a estranheza proporcionada pela opacidade corrosiva em questão não visa injuriar os efeitos das fórmulas características do blockbuster, as quais Dumont ironiza. É como se O Império almejasse testar os graus de ilusão perante a transparência do espetáculo, conforme a verossimilhança de cada figura depurada.
Há, neste deslocamento, a cética consciência do peso contido nos intermináveis jogos de influência, onde o reflexo espectatorial vai se posicionar lá no arquétipo da crença genuína - não infantil, mas inocente - do plano final. Nisto, a forma de Dumont se aproxima do sentido rítmico de Robert Bresson em “Lancelot du lac”.
Muito trabalho de maquiagem e expressão corporal para construir uma odisseia do Pé Grande cujo objetivo principal é, apesar da ousadia formal, ser “engraçadinha” e “bizarrinha” no nível mais imaturo das definições - ou seja, aquele que jamais ultrapassa a pretensão “cool”.
Só o fato do primeiro contato do Pé Grande com a civilização humana ser marcado pela descoberta de um toca-fitas portátil com uma K7 de synthpop dos anos 80 já resume o quão O Crepúsculo do Pé Grande (“Sasquatch Sunset”, EUA, 2024) é capaz de adulterar a inocência do olhar por um desdém tolo, estúpido demais até para ser perverso.
É, para o bem e para o mal, a súmula da obra dos irmãos David e Nathan Zellner.