Duna: 2ª parte + Todos Nós Desconhecidos + Garra de Ferro + Here + Eu, Capitão
filmes assistidos em março/2024 (1ª quinzena)

Duna: Part Two/ Duna: Parte 2
de Denis Villeneuve (EUA)
em cartaz nos cinemas
É frustrante que uma saga orientada pela questão da fé (como garantia de si mesmo, tábua de salvação ou artifício manipulativo) seja encarada com tamanho ceticismo.
A frontalidade de Villeneuve perante os esforços e as crises dos personagens inviabiliza a ambiguidade humana que caracteriza uma boa jornada épica. Antes fosse uma convicção materialista, de abordagem “pura”, na qual ele poderia se esforçar em propor uma “forte” dialética entre tema e forma através de “imagens” e “sons”. Até na brevidade de um momento simples (a descrição de Timothée Chalamet à Zendaya sobre o planeta Caladan, por exemplo) é perceptível a parca disposição do cineasta em galgar um efeito sensorial de alicerce sensível, abrindo espaço para a utopia.
Já desapegada da pretensa austeridade do longa anterior - mas não do vislumbre futurístico com cara de trailer para o próximo projeto -, a continuação propõe imediatismo ao invés de “contemplação”. Há quem compre a obviedade desta dramaturgia ansiosa como um viés prático. Mas é só no confronto final, quando a narrativa é reduzida aos aspectos mais básicos, que DUNA: PARTE 2 consubstancia o questionamento da crença concentrando-se numa abordagem íntima, deixando de lado os lamentos evocativos de Hans Zimmer e os engodos de um CGI menos suntuoso que o de 2021.
O controle dos meios só alcança seus efeitos espetaculares através da crença na ilusão. A grandiloquência de DUNA abrangeria um ensaio sobre a fé humana caso não se limitasse ao testemunho dos poderes de Villeneuve numa entrega controlada de resultados vacilantes.
All Of Us Strangers/ Todos Nós Desconhecidos
de Andrew Haigh (Reino Unido)
em cartaz nos cinemas
Esta fantasia psicanalítica conclui que é impossível erigir maciçamente um indivíduo desapropriando-se da fundação emocional estabelecida durante sua formação. Uma vez tácita a simbiose entre arte e sujeito, a inspiração criacional é inevitavelmente atravessada pela regressão às memórias. Orientamos nossas projeções (afetivas, profissionais) pelas experiências no amadurecimento. O alicerce familiar e suas fissuras refletem no resultado (artístico, humano).
É pela via da idealização que Andrew Haigh se apoia na perspectiva do protagonista Adam, enfatizando um exercício estético de regramento pós-moderno. Recorre-se a símbolos ao mesmo tempo que os contornos dos corpos, souvenirs e edificações são valorizados. Ao entregar-se às possibilidades cosméticas da imagem, a representação ambiciona a aparência de um devaneio onírico que varia da comoção febril à depressão traumática. Por almejar a pacificação existencial de Adam através do escoamento artístico, o resultado é uma obra em progresso - ou seja, o próprio ALL OF US STRANGERS.
A convicção do Haigh-roteirista obtém uma solidez emocional que permanece ilesa às elaborações imagéticas (eventualmente excessivas) do Haigh-diretor. Estabelecidos os perfis dos personagens, os diálogos fluem, no intuito de alcançar a compreensão mútua através da expressão. Ora fortalecendo, ora minando os afetos, tais encontros visam primordialmente alcançar o que há de real nas relações parentais e conjugais.
É sintomático que a estrutura do longa seja beneficiada pelos planos mais longos. Afinal, o quarteto Andrew Scott/Paul Mescal/Jamie Bell/Claire Foy atinge uma sinergia situada entre o naturalismo e o arquétipo, valorizando as modulações do texto à medida que o protagonista reavalia suas lembranças. Isso atribui ao elenco uma dinâmica familiar facilmente relacionável. As conexões emocionais se apoiam num alicerce inseguro; subitamente, perturbações vêm à tona.
O único (mas enorme) percalço de ALL OF US STRANGERS está na dificuldade de elevar a estética à poética. Haigh é ambicioso: assume a esfera simbólica ao mesmo tempo que deseja ser imediatamente compreendido. Quando a dramaturgia, distanciando-se da sugestão metafísica, evoca mais e mais o sobrenatural, a engenharia formal se desorienta. O anseio em esclarecer visualmente os rumos narrativos resulta numa carregada expressividade plástica que excede as sutilezas do roteiro.
The Iron Claw/ Garra de Ferro
de Sean Durkin (EUA/ Reino Unido)
em cartaz nos cinemas
Falta um bocado para Zac Efron ser aprovado no exercício de “validação do ator industrial” que Hollywood tanto ama brincar (vide as consagrações de Brendan Fraser e Will Smith no Oscar). E é por isso que ele é o protagonista ideal para GARRA DE FERRO, cinebiografia da lendária família de lutadores Von Erich.
Sean Durkin encara o material de base pela mesma perspectiva de seus entusiastas: reconhece os artifícios do wrestling sem que isso corrompa os efeitos espetaculares. Os lances corporais se dão numa zona nebulosa entre a dramatização e o real, intercalando o ensaio com a improvisação. Tal ambiguidade consta inclusive na própria arquitetura cênica e Durkin se apropria disso para a construção de expectativa através da decupagem.
Logo, o confronto físico do wrestling se aproxima do empreendimento conjunto de um elenco. Efron, cercado por atores mais eficientes, atravessa GARRA DE FERRO tal seu personagem, aguardando pela grande oportunidade de comprovar o potencial (para o pai, na trama; para o público, extra-diegeticamente). A inteligência com que a câmera perscruta as limitações de seu protagonista neste estado de espera se assemelha à relação entre o diretor Bob Rafelson e Arnold Schwarzenegger em ‘Stay Hungry/O Guarda-Costas’ (1976), no qual o então fisiculturista contracenava com Sally Field e Jeff Bridges.
No clã dos Von Erich, apesar da competição interna provocada pela autoridade paterna, subsiste uma concreta ligação afetiva entre os irmãos lutadores. Enquanto a narrativa convoca o teor farsesco do wrestling para a relação entre os personagens, a imagem assume os corpos dos atores como um motivo temático, fixando-se em músculos, veias, suores e lágrimas. O intuito não é o efeito sensorial, mas fazer da pele a epiderme fílmica, avocando nela a resistência da carcaça em meio as agressões. Afinal, o corpo é o que fundamenta a família, já que as regras de obediência limitam as relações na superfície da subordinação. O característico golpe que batiza o longa, passado de pai para filho, sufoca e cega o adversário. Essa tensão canaliza o drama: a ambição do patriarca coage as crias até que suas estruturas físicas se arrebentem.
Sem trair a forma, Sean Durkin supera a moldura biográfica tradicional para tecer um retrato crítico da obsessão norte-americana pelo sucesso. A verdadeira maldição dos Von Erich seria a manutenção doentia do american way-of-life, onde a ânsia por números e status contamina os laços. Praga característica de toda uma cultura capitalista.
Here
de Bas Devos (Bélgica)
visto no Festival do Rio 2023; estreia programada para março
O que orienta forma e conteúdo no filme de Bas Devos é a ideia de troca como uma permutação de experiências, capaz de ressignificar o ser em sua interioridade.
Em HERE, a dinamização do transitório é como uma polaroid captada mutuamente. O imigrante Stefan observa os ambientes como quem tenta registrar na mente a vivacidade dos espaços urbanos e dos seres que os habitam. Ambos, por sua vez, os miram de volta, como se previssem a sua futura ausência.
Mas é em meio à natureza que o olhar direto para o mundo viabiliza a permutação entre o amadorismo espontâneo (Stefan) e a metodologia do conhecimento empírico (a doutoranda Shuxiu). A gentileza e o rigor que respectivamente caracterizam tais personagens são refrações da própria realização de Devos. Neste encontro, a montagem tece uma progressão de expedientes naturais que é também uma aproximação emocional entre os indivíduos, cabendo à manifestação panteísta da incidência solar promover a ambivalência e a circunstancialidade inerentes ao instante do agora.
A proposta da troca é, no fim das contas, uma anamorfose profunda, ascese da imagem em movimento. Fenômeno que deriva da essência do registro cinematográfico para alcançar os sentidos do espectador.
Io, Capitano/ Eu, Capitão
de Matteo Garrone (Itália/Bélgica/França)
em cartaz nos cinemas
A crise imigratória já foi tão exaurida pela grife do “cinema-de-festival-europeu” que chegamos ao ponto do tema (social) servir como mero pano de fundo para uma aventura (individual), onde o torvelinho de clandestinidades é resumido a uma série de peripécias. O close-up na catarse final do protagonista joga pra escanteio qualquer responsabilidade moral quanto ao cenário que o próprio filme inicialmente estabelece como uma situação coletiva.
Ainda que o ator Seydou Sarr seja um prodígio e a câmera de Garrone demonstre a capacidade de particularizar a relação entre o personagem e o meio, é uma pena que IO, CAPITANO escape da demagogia para recair na artificialidade. Os efeitos estetizantes do fantástico servem menos ao alívio do personagem do que ao conforto do espectador perante a aridez da realidade subsariana. No fundo, o final desta "fábula" é edificante só para quem está do outro lado da tela ou do Mediterrâneo.