Ferrari + American Fiction + A Sala dos Professores + Até o Cair da Noite + Madame Teia
lançamentos assistidos em fevereiro/2024 (2ª quinzena)
Ferrari
de Michael Mann [EUA]
em cartaz nos cinemas
Mann reconhece Enzo Ferrari não só como “o ícone do automobilismo” ou “o empresário bem-sucedido” mas, principalmente, como um homem na árdua tarefa de equilibrar a coexistência de forças distintas em sua vida. Detectar o que há de humano neste símbolo italiano exige o reconhecimento daquilo que move suas escolhas. Suas responsabilidades.
Frustrando as expectativas de quem aguarda algo furiosamente veloz, o diretor recorre às convenções do melodrama para alcançar o tensionamento moral sobre Enzo. Com tamanha precisão na decupagem e na profundidade de campo, Mann se concentra na aproximação entre a câmera e o protagonista, extraindo a melhor performance da carreira de Adam Driver.
Tal sensibilidade melodramática possibilita ao filme as suas qualidades humanas: sequências que articulam quebras de expectativas; afetos cambiáveis nas relações de ampla dimensão psicológica; a revelação do íntimo em meio às macro-estruturas morais, galgando a empatia; e o equilíbrio natural entre a desgraça e a glória.
O Mann de FERRARI não é o esteta da violência, mas aquele do sistema de forças que atribui um contorno dramático à existência dos personagens. Aqui, a definição de um homem se baseia menos a partir dos seus feitos do que pelas crises que ele prioriza diante das potências que o circundam. O basilar em FERRARI é que seu realizador não perde de vista aquilo que é substancial, orientando o alto valor de produção ao princípio do essencial. Numa era em que o banal é confundido com o básico, a qualidade do que é elementar torna-se cada vez mais rara de se reconhecer.
American Fiction/ Ficção Americana
de Cord Jefferson [EUA]
disponível no streaming
Para além de comentar ou fomentar conceitos culturais, AMERICAN FICTION está interessado em um conjunto palpável, cujo olhar se aproxime da vida como uma experiência.
Dosando melancolia com humor e deslizando entre projeções e realidades, o longa não dá conta de equilibrar todas as oscilações que tais trânsitos ocasionam, mesmo que haja um bom uso da sátira neste sentido. Quando o diretor-roteirista Cord Jefferson transita também entre mídias, fica evidente que o texto é melhor do que o filme em si. O tom homogêneo da representação não se relaciona com as instabilidades que assinalam a estrutura do roteiro, derivado do romance de Percival Everett. É o típico caso em que o peso das palavras do roteirista/escritor se sobrepõe ao poder do Verbo do realizador.
Porém, é fácil intuir a humanidade dos personagens graças à nítida psicologia de suas composições. São eles que carregam a coerência entre o discurso e a operação das ideias, beneficiando-se dos diálogos perspicazes. Tendo em comum o fato de cada um se localizar num ponto de virada individual, essa fragilidade coletiva ressalta a dificuldade de encaixar a existência em formatos narrativos e definições sociais. Acaso e destino se confundem nos desígnios de um Deus ex-machina.
A visão crítica de AMERICAN FICTION está no seu painel humano. A sorte de um elenco frutífero encaixar-se com naturalidade (e sensibilidade) na proposta faz com que o filme nos implique no circuito de suas narrativas. As trocas entre eles são como o alívio das taças de vinho em meio aos perrengues cotidianos.
Das Lehrerzimmer/ A Sala dos Professores
de Ilker Çatak [Alemanha]
em cartaz nos cinemas
Apesar do realismo social imediato a la irmãos Dardenne, o projeto tem plena consciência das artimanhas narrativas. Pelas convenções do suspense, a trama aproxima estruturas e procedimentos de duas instituições com caráteres díspares, apesar da função disciplinar: a escola e a polícia. O êxito está na capacidade de permear tais entidades sem que uma prevaleça sobre a outra, fazendo com que as comparações não descaracterizem o meio. Por consequência, traz à tona reflexos humanos que não se enquadram nas diretrizes profissionais, uma crise relacionável à qualquer corporação.
Mas quando o roteiro se vê obrigado a confrontar os efeitos da sociedade punitiva de Foucault, sua saída é frisar tanto o valor da personalidade perante o coletivo quanto a empatia como produto da fusão entre lógica e emoção. O problema é que, para isso, A SALA DOS PROFESSORES recorre a um tom demagógico até então ausente. Os dois últimos planos revelam o peso de uma convicção que só arrefece a causalidade dos eventos.
Enfraquece o debate, mas não o desmoraliza.
Bis ans Ende der Nacht/ Até o Cair da Noite
de Christoph Hochhäusler [Alemanha]
em cartaz nos cinemas
Farsas não são infalíveis, ainda que se vigie os artifícios que as revestem ou continuamente as ensaie. É impossível viver só de encenação. Reside aí a diferença irreconciliável entre o casal Leni e Robert: ela necessita desprender do véu da simulação para se expressar por inteira; ele, por sua vez, só se sente seguro para revelar os sentimentos através de um subterfúgio. Nesta distinção se localizam os vícios e as virtudes de ATÉ O CAIR DA NOITE.
O diretor recorre a um olhar maneirista ao evidenciar a forma do melodrama para sublinhar sua aparência fake, aludindo à estilística de R.W. Fassbinder. Não há aqui, todavia, a emulação daquele exercício ou ainda uma proposta derivativa. Hochhäusler reconhece o maneirismo como uma cosmética, artifício visual para envernizar as articulações ilusórias depreendidas entre os personagens. Ela maquia o índice valorativo da realidade tal qual uma fotografia digital é facilmente manipulável. Afinal, a própria narrativa se equilibra na eficiência do logro para operar.
Chega um ponto em que a autoconsciência faz Hochhäusler perder o controle da manipulação, recaindo num esteticismo deslumbrado consigo mesmo. É quando sua elaboração se aproxima mais da plasticidade de um Albert Serra do que das investigações sobre os gêneros clássicos de Christian Petzold.
Para movimentar o logos da espionagem, a trama policial recorre à máscara do noir e derrapa na conjuntura dos eventos. Por mais que queira ser astuto como Leni, ATÉ O CAIR DA NOITE é tão carente da ilusão quanto Robert.
Madame Web/ Madame Teia
de S.J. Clarkson [EUA]
em cartaz nos cinemas
O bocejo da mulher aranha.
Tudo tão medíocre e maçante que nem os $5 milhões de cachê fizeram Dakota Johnson superar a apatia. Quando Sydney Sweeney olha pra protagonista e pede por socorro, a impressão é de que o medo vem da câmera drone desnorteada, não do vilão.
Não à toa coube a Pepsi (e à inquietude míope da edição) salvar o lucro, ops, o dia.
Gostei muito das suas reflexões sobre “American Fiction”. No geral, o debate sobre o filme está bem raso e não valoriza justamente o componente mais humano da obra.