Festival do Rio 2024 (abertura)
'Emilia Pérez'; o novo de Almodóvar; e o eleito pelo júri ecumênico em Berlim
Mais um ano de Festival do Rio (o 26º, se contarmos minhas primeiras idas ainda criança), mais um período de imersão cinéfila. É a experiência de um grande evento cinematográfico capaz de propor um panorama da produção contemporânea, cada vez mais imediata e sincronizada, diminuindo a distância entre as metrópoles culturais do mundo. Quem é brasileiro e conta com a boa vontade das distribuidoras, sabe da dificuldade em se manter atualizado.
Pretendo registrar aqui, regularmente, algumas impressões soltas sobre a empreitada deste ano.
Minha primeira sessão do Festival (My Favourite Cake, Estação NET Rio) estava lotada, com direito a sorteio de brindes pela distribuidora. Não fui contemplado, mas ainda assim é um início caloroso para a maratona. O público do Festival do Rio (o público mesmo, não os críticos-de-crachá) geralmente se comporta de uma maneira específica: investem emocionalmente na narrativa, ao contrário da audiência do blockbuster-de-shopping, atenta somente aos efeitos pirotécnicos em cada setpiece. Nas salas lotadas do Festival, os espectadores concentrados são como uma orquestra sendo conduzida por um maestro (quando o filme é bem-sucedido em tal artimanha, claro). As risadas, os espantos e as lágrimas se dão nos momentos estipulados. É o sentido pleno da experiência coletiva de se assistir a um filme no cinema, um silencioso pacto coletivo de atenção direcionada, quase um milagre no século XXI. Esse efeito, sem dúvidas, afeta a impressão de cada um.
Voltando a My Favourite Cake (“Keike Mahboobe Man”, Irã/França/Suécia/ Alemanha), o vencedor do Prêmio do Júri Ecumênico e do FIPRESCI na última Berlinale. No primeiro ato do filme, duas senhorinhas ao meu lado comentavam com interesse cada movimento cotidiano da protagonista idosa vivendo em Teerã. Afinal, a representação realista, pontuada por uma certa ironia, nos introduz àquele universo com uma economia narrativa perspicaz. A sensibilidade reside, sobretudo, nos momentos íntimos da personagem principal - e é aí onde o filme alcança o universal a partir do seu retrato singular (até eu, homem adulto, pude me identificar com suas vontades). A discrição dessas construções cênicas revelam um senso de falta na relação entre a senhora viúva e o seu entorno.
Para além das descrições e das evidências, é o elemento humano - a atriz Lily Farhadpour - o indutor de verossimilhança nas situações rotineiras. É como se o filme se articulasse numa cadência mais lenta para que as energias possíveis emanassem da naturalidade dos atores em cena. Paciência não é sinônimo de morosidade, mas afabilidade (como os meticulosos travellings pontuais denotam).
Apaixonar-se na terceira idade implica não só na expectativa romântica mas numa certa revalorização de alguns sintomas matrimoniais já perdidos, tidos como garantidos. Se esses ecos emocionais reverberam na metade de My Favourite Cake - etapa do envolvimento da protagonista com um taxista de 70 anos, também viúvo - o ato final, por sua vez, adquire uma influência distinta. O giro de 360 graus da câmera aponta que a mudança da tensão narrativa (a expectativa romântica transformando-se no suspense inquietante) se faz também no interior do dispositivo fílmico. A decupagem se altera, mas a distância justa do olhar se mantém; certas construções se repetem, adquirindo camadas adicionais sem abdicar da economia. Todo o peso social e político, anteriormente sugerido ou ilustrado, vem reverberar na sequência final.
O maior mérito do casal de diretores iranianos Maryam Moghaddam/Behtash Sanaeeha é operar tal transformação sem desestabilizar o retrato da protagonista, permitindo à atmosfera adquirir gravidade por meio de uma dinâmica regulada, capaz de concentrar as questões externas e nos induzir a compreender a forma como elas afetam o particular. No sabor amargo da cena final, as senhorinhas e eu (e o restante da sala lotada, para ser sincero), estávamos perplexos. O peso da ausência como uma “situação” se revelou algo muito diferente daquela impressão inicial de vazio cotidiano.
Dando continuidade ao primeiro dia de Festival, parti para uma dose dupla no Odeon, o mítico cinema, o representante guerreiro da Cinelândia carioca. Ultimamente, a sala só abre para o Festival, concentrando ali sessões de gala, filmes hypados, debates e outras exibições especiais. Apesar das ausências injustificadas das “presenças de convidados” propagandeadas em ambas as sessões - onde se foi possível sonhar com Pedro Almodóvar, Julianne Moore, Tilda Swinton, Selena Gomez, Zoë Saldaña etc. -, a estrutura do cinema parecia renovada (especialmente a tela) e a organização bem mais atenciosa aos mínimos detalhes (nada de mesa de som brilhando no escuro da projeção, nem funcionários entrando e saindo da sala batendo as portas, nem sessões mais atrasadas do que os quinze minutos protocolares).
O Quarto ao Lado (“La Habitación de al Lado”, Espanha) é o Almodóvar 2024, primeiro longa em língua inglesa do diretor espanhol. Foi premiado com o Leão de Ouro em Festival de Veneza e já desponta com força na temporada de premiações para 2025. Julianne Moore e Tilda Swinton - talvez as maiores atrizes do mainstream atual? - interpretam duas amigas (uma, escritora de autoficção; a outra, correspondente de guerra) que se reencontram após uma delas se deparar com o diagnóstico de câncer.
Nos enquadramentos impecáveis de Almodóvar brota o milagre da estética existencial. Em tempos fatalistas de neoliberalismo avançado e extremas-direita em voga, a atenção do realizador espanhol se volta para a matéria fina da vida. Sua expertise com o gênero melodrama é similar a de Todd Haynes: uma postura de respeitabilidade diante do imaginário clássico sem se limitar à reverência, deslocando as convenções com o intuito de atualizar sua pertinência funcional.
Aqui, o método é uma dialética continua sobre formas possíveis de existência, urdidura estabelecida entre diversos parâmetros estéticos e narrativos (realismo/impressionismo; melodrama/humor negro; suicídio/eutanásia; material/metafísico; vícios/virtudes), culminando na excelência coreográfica entre Moore e Swinton. As fisionomias de ambas articulam uma estruturação própria de expressão e representação em meio às oposições e similaridades travadas entre suas personagens.
Em cada “blocagem” de Swinton (o elemento amarelo-vivo dentre as cores primárias à sua volta) onde se percebe, ao mesmo tempo, uma beleza capaz de valorizar a vida e uma razão para abandonar o sofrimento, O Quarto ao Lado vibra numa percepção sensível sobre a psicologia do desapego.
O fato de Almodóvar trocar a referência à “Asas do Desejo” (Wim Wenders) do livro no qual o filme se baseia (“What are you going through”, de Sigrid Nunez) para a densidade “Os Vivos e os Mortos” (adaptação de John Huston para um conto de James Joyce), já é indicativo da sua inteligência dramatúrgica. As palmas ao final da sessão, firmes e contidas, atestam os efeitos de seu longa.

Mas o que um cinéfilo só com o almoço no estômago desejaria mais do que um combo pipoca + refrigerante grátis (obrigado, ação de marketing do canal de TV fechada!) em sua terceira sessão do dia? Que Emilia Pérez (EUA/México/França), o grande vencedor em Cannes e já favorito ao Oscar de Melhor Filme Internacional suprisse as expectativas, claro.
Decepção. Como um filme sobre (re)construção de identidades consegue ser tão deliberadamente superficial?
E nem é o caso de se apropriar do artifício como um meio de expressão, mas ser inconsistente nos seus procedimentos mais básicos - recorre ao gênero musical não para movimentar a narrativa ou representar um estado das personagens, apenas descreve as emoções contidas nas relações entre elas; o relevo de cada arco dramático feminino é prejudicado pela inconsistência da montagem na organização interna dos respectivos desenvolvimentos (e é surreal como Cannes pôde premiar a atuação coletiva de um filme incapaz de estabelecer uma homogeneidade funcional à trama).
Emilia Pérez é uma longa justaposição de videoclipes pop, comerciais de perfume e cortes para TikTok. O intuito dessa mecânica distraída e indefinida é proferir um comentário sobre temáticas sérias e oportunas, tornando elas mesmas num produto de efeito, algo muito diferente de estabelecer uma retórica sobre as pautas identitárias em questão. Nem preciso bater na tecla do quão é importante a representatividade trans, a equiparação profissional entre os sexos e a violência doméstica ganharem visibilidade nos meios de comunicação. A questão é o risco dessas temáticas tornarem-se apenas um meandro publicitário para produtos que se satisfazem em vender as apologias sem discuti-las de fato, sem promover uma verdadeira mudança estrutural na própria obra (pelo menos).
A vulgarização anti-estética promovida por Jacques Audiard poderia ser “subversiva“, mas não passa de um filtro para a sua total falta de artesanato ou, talvez, para uma visão de mundo supérflua. Objetificar a disforia de gênero num efeito dolly-zoom e espetacularizar uma conclusão que, alheia ao comprometimento com as consequências, prefere se refugiar covardemente na guarita do (falso) mártir, são indícios de como é impossível propor um entendimento social sem consciência cinematográfica.
E é só o primeiro dia! Retorno em breve com mais filmes.
Feliz demais pelo escolhido da França pro Oscar não ter agradado. Bom pra “Ainda Estou Aqui” kkkkk Brincadeiras a parte, tomara que “Emilia Pérez” não demore tanto pra chegar ao circuito comercial, estou bem curioso para conferir.