Gladiador II; Ainda Estou Aqui; Wicked; As Três Filhas; Caminhos Cruzados
Cinediário XX - lançamentos vistos na última quinzena
“Uma atriz nunca é apenas a imagem que temos dela. E essa imagem, difícil de identificar sem que nos identifiquemos nós mesmos, esquiva-se do inteligível. Quanto mais nós a reconhecemos, fantasma luminoso que assombra nossas cavernas e sacode nossas correntes, mais é preciso conformar-se: da ideia que ela reflete, nós só temos uma vaga intuição.
(…)
O espectador de cinema é responsável pelo seu olhar sobre uma atriz, tanto quanto o metteur-en-scène: o olhar pode matar como ele pode ajudar a viver (nós podemos contar as vítimas...)”.
(Camille Nevers - “Foster, verdadeira star”)
Ainda Estou Aqui
de Walter Salles (Brasil/França, 2024)
Na adaptação cinematográfica do livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, o protagonismo da história é assumido por sua mãe, Eunice Paiva (Fernanda Torres/Fernanda Montenegro). É pela perspectiva da matriarca que visualizamos o impacto familiar causado pelo desaparecimento de seu marido, o deputado Rubens Paiva (Selton Mello), torturado e assassinado nas dependências de um quartel militar durante a ditadura.
Apesar do desequilíbrio entre as intenções especulativas e o resultado expressivo obtido por Walter Salles, há Fernanda Torres. Através de um emaranhado de emoções iminentes, sua performance galga autonomia diante da articulação academicista do cineasta, cujo tom fluido, por si só, não vai além de um debilitado melodrama doméstico. A cada olhar de Torres para o espelho, o filme reconhece Eunice Paiva como uma mulher que se vê obrigada a atuar (nos sentidos representativo, empreendedor e influente) para descobrir possibilidades de agenciamento perante a tragédia.
Quanto ao viés político, Ainda Estou Aqui deseja se estabelecer como um memorial do escabroso período ditatorial sem romper com a idealização nostálgica da virada dos 1960/1970. Contudo, nesta gangorra entre as memórias coloridas pelas cultura pop e as trevas daqueles tempos de chumbo não há uma dialética. Tudo se nivela ao aspecto do embalsamento, do objeto-souvenir. Ainda Estou Aqui acaba por se referir mais à época de sua produção do que ao período no qual se desenrola sua trama.
Mas, novamente, é indispensável pensar em sua protagonista. A partir de Torres, onde a energia do texto verdadeiramente se desvela, Ainda Estou Aqui torna-se um filme sobre a memória da perda. O elemento ao qual a atriz reage são as sombras do mistério indissolúvel contaminando o quadro. É no seu rosto onde se inscreve a pressão entre o interior do lar desfeito e a arbitrariedade exterior da ditadura, impedindo que as imagens se tornem apenas planos evanescentes ou comentários limitados à superfície estética. E quando sua fisionomia é elevada ao quadrado por Fernanda Montenegro, eis que se torna palpável a potência da expressão humana como reveladora de uma marca indelével, engrandecendo o registro de Salles a um documento sensível da ausência.
Quanto à próxima awards season, Hollywood não mudou sua operação padrão: está revitalizando grandes nomes de outrora (Demi Moore, Angelina Jolie, Marianne Jean-Baptiste), apostando em estrelas renovadoras (Cynthia Erivo, Karla Sofia Gascón, Mikey Madison) e valorizando a manutenção daquelas ainda com garra mesmo após décadas de carreira (Nicole Kidman, Saoirse Ronan, Julianne Moore, Tilda Swinton). Se depender dos esforços da Sony Pictures na divulgação americana, a indicação para o Oscar como Filme Internacional já pode ser dada como certa. No caso de Fernanda Torres como Melhor Atriz, a competição está acirrada antes mesmo da largada. Seria a carioca capaz de impressionar o mesmo esquadrão de atrizes responsável pela campanha virtual que gerou a inesperada nomeação de Andrea Riseborough em 2023?
Gladiator II/ Gladiador II
de Ridley Scott (EUA/UK, 2024)
De ‘Spartacus’ pós-moderno para ‘Game of Thrones’ oportunista.
Enquanto o filme de 2000 eliminava as meditações de Marco Aurélio ainda no primeiro ato, a continuação tem o seu eixo temático voltado para a crise de identidade. Embora o ponto de partida lembre a estrutura narrativa do longa original, Gladiador II é mais sisudo. Vinte e quatro anos depois, a autoconsciência de Ridley Scott em propor um espetáculo voltado para as massas (tal como os duelos no Coliseu) agora eleva as sequências de ação à uma grandiloquência ainda mais robusta (a recriação das naumaquias, por exemplo) na tentativa de suprir uma audiência já menos atenta e mais exigente. Ora, se “Gladiador” apostava no militarismo filtrado pela lógica do espetáculo como meio de restituir a representação pública na política, a crise existencial que perpassa os novos personagens não deixa de cutucar a alienação, provocando um certo distanciamento quando a narrativa denota como a consciência popular é manipulada a partir dos jogos conspiratórios nas altas camadas do Império. Mea culpa do cineasta?
Enfim, a questão importante é: basta revestir o tema de um tom grave para gerar substância dramática e revitalizar o (bem produzido) parque de diversões nostálgico do filme anterior? Da mesma forma, basta Denzel Washington (o grande ator sempre escalado para papeis grandiosos) declarar por diversas vezes que Paul Mescal é a encarnação da valentia para dissolver o muxoxo no semblante do protagonista (que é um ótimo ator, embora não consiga converter sua circunspecção em instinto primitivo)?
Claro que não.
Gladiador II acumula uma linearidade de sequências isoladamente estonteantes mas desarmônicas no conjunto. São peças promissoras num tabuleiro suntoso de movimentos previsíveis, cujo ritmo é incapaz de promover uma tensão interna englobando os elementos que compõem o filme. O discurso progressista evocado a partir do questionamento dos papeis sociais encontra barreiras na própria linguagem, de estímulo e estilo padronizados, ausente de contrariedade.
Entretanto, cada citação ao longa anterior - da imagem de Russell Crowe ao último plano - não soa apenas reverencial, antes propõe uma constatação cíclica. No nível temático, reafirma a impossibilidade da conjunção entre o mecanismo político e a realização dos desejos individuais, justificando assim a manutenção eterna do mártir. No sentido extrafílmico, confirma o condicionamento de Hollywood em seu movimento entrópico de reciclagem. Agora, Gladiador não se volta apenas ao imaginário de um gênero (à época) letárgico, mas a si mesmo e ao próprio legado. Não à toa, Ridley Scott está empolgado com as possibilidades de uma franquia.
His Three Daughters/ As Três Filhas
de Azazel Jacobs (EUA, 2024)
Uma das etapas mais complicadas da vida adulta é arcar com as necessidades práticas no momento delicado que antecede o óbito familiar, principalmente quando sua iminência se manifesta de forma irrevogável. As Três Filhas assume um viés prático diante do drama para só então, gradativamente, lidar com as inevitáveis sensibilidades contidas nas relações fraternas.
Há um interesse em zelar pelas diferenças particulares, sem limitar os estereótipos das personagens-título (a controladora, a prestativa, a junkie) ao aspecto mais banal. A partir de nuances pouco a pouco manifestadas, o roteiro delineia as similaridades veladas, reanimando a conexão entre o trio de irmãs diante da enfermidade terminal do patriarca numa permuta de responsabilidades e fragilidades. Certos direcionamentos da trama acabam por destacar a personagem de Natasha Lyonne (cujo trabalho de composição é minuciosamente frágil), mas Carrie Coon e Elizabeth Olsen também merecem relevância ao assumir a naturalidade dos gestos, tornando-os em hábito conforme as angústias de cada personalidade.
Como diretor, roteirista e montador, Azazel Jacobs consolida as necessidades de identificação na própria composição fílmica, promovendo uma dinâmica de compreensão empática perante os ressentimentos familiares e as formas próprias de se lidar com a perda. No cenário do apartamento, zonas individuais se estabelecem como um duelo de incomunicabilidade; as respostas silenciadas são expressas pela justaposição da montagem; a ameaça do vazio se prolonga incisivamente, infiltrando a progressão narrativa de modo a cutucar os vetores dramáticos.
Além das escolhas formais tornarem As Três Filhas uma experiência tocante, percebe-se que este é um filme não apenas a respeito da proximidade do luto (e como esse sentimento pode já ser sentido à priori) mas também sobre a possibilidade de tecer novas memórias como um remédio para feridas antigas e/ou manutenção das cicatrizes sensíveis. Neste sentido, a textura do 35mm atribui à imagem uma temporalidade intrínseca. É perceptível um aspecto de reminiscências em progresso; o passado refletindo-se nas atitudes do presente que irão moldar o futuro, ou ainda, um interstício de incertezas onde os arranjos do obituário e do testamento imiscuem-se. O epitáfio de As Três Filhas é a fantasia cinematográfica de representar uma imagem-mental, pondo em circuito o desejo de proximidade em meio à presença inelutável da ausência.
Se a Netflix estiver disposta a dividir o orçamento da campanha para “Emilia Perez” na awards season, quem sabe Lyonne não obtém uma (merecida) chance como Atriz Coadjuvante…
გადასვლა/ Crossing/ Caminhos Cruzados
de Levan Akin (Suécia/Dinamarca/França/Turquia/Geórgia, 2024)
Em busca da sobrinha desaparecida, a professora aposentada Lia (Mzia Arabuli) atravessa a fronteira entre a Geórgia e a Turquia. Sua trajetória se cruzará com a de outros personagens também à procura de algo, ainda que menos tangível.
Detentora de uma absoluta fé nas conexões, a câmera fluida de Levan Akin se integra às ações buscando ultrapassar as zonas limítrofes, a fim de alinhavar uma tapeçaria de pertencimentos. Caminhos Cruzados baseia-se numa teia de encontros e desencontros onde o acaso promove a superação entre diferentes vivências, gerações, identidades e idiomas.
Embora seja uma espécie de “Central do Brasil” invertido, onde quem busca pela reconexão é a personagem já madura conduzida por alguém mais jovem (Lucas Kankava), o filme de Akin transparece também uma inspiração rosseliniana na forma sensível como o diretor particulariza as experiências em Istambul. Identificada como um abrigo para a errância, a cidade turca evolui para o ambiente propício à cicatrização de lacunas afetivas.
Para dar conta das sutilezas do texto, onde as verdades frequentemente se localizam no artifício das mentiras, o diretor sueco tem a sorte de lidar com atores competentes o bastante para transparecer as emoções dos personagens além de suas pretensões, promovendo a mágica da condensação das aparências.
A conclusão disruptiva, contudo, soa menos ambígua do que titubeante. Eis a diferença entre a pura sutileza e a engenhosidade da clareza.
Wicked (Part 1)
de John M. Chu (EUA, 2024)
Um enorme parque de diversões composto por luxuosos brinquedos de ponta (embora nem sempre luzentes, graças ao esforço da fotografia em disfarçar o CGI) capaz de oferecer doses pontuais de excitação com um certo alvoroço e gritaria, mas sempre controlando todos os riscos para manter a euforia devidamente invulnerável.
Em diversos momentos, Wicked lembra o olhar encantatório de Chris Columbus pela descoberta de um mundo onde a mágica é cotidiana, remetendo aos primeiros “Harry Potter”. Já nas sequências musicais, John M. Chu parece se aproximar da grandeza espetacular de Vincente Minnelli. O traquejo operante de Chu, hiperbólico na decoração e eufemístico nas intensidades, raramente alcança um dos maiores méritos daquele mestre hollywoodiano: a fluidez. Apesar das ambições elevadas, a solução das sequências é sempre o refúgio no plano-detalhe, reduzindo a escala da fantasia para o nível do videoclipe. Wicked, então, está mais próximo de “Grease”.
No exercício humano de revelar a sensibilidade do anômalo e comprovar que toda malícia guarda uma pontinha de ingenuidade, o aproveitamento convencional dos atores é a regra geral. Muito se comenta sobre Cynthia Erivo (a lead ideal para suprir as assumidas raízes da Broadway) e Ariana Grande (em sua aptidão para gags superficiais e às vezes supérfluas). Contudo, é Jonathan Bailey, em sua galhardia debochada, quem demonstra a desenvoltura física e cênica ideal para o musical como um formato cinematográfico.
Sem sombra de dúvidas, o resort de imagens pomposas, quase sempre sem textura ou profundidade, foi planejado sob encomenda para encher os olhos de toda a família… mas me pergunto o que John Waters ou até mesmo Baz Luhrmann fariam com a possibilidade de hipertrofiar um material de essência frívola em algo irreverentemente camp.