Greice; Blitz; E a Festa Continua!; A Natureza do Amor; Sorria 2
Cinediário XXI - lançamentos vistos na última quinzena
Dezembro, época de correr atrás daqueles lançamentos do ano que, mesmo promissores, por ventura se perderam de vista…
Por um lado, os streamings mantém o burburinho em torno desses títulos para além do período em cartaz em nos cinemas, cada vez mais curto. Por outro, esse mesmo imediatismo provoca uma profusão de ofertas concomitantes. Há cada vez mais conteúdo audiovisual e menos tempo para usufruí-lo, o que requer do espectador uma peneira finíssima. O desafio é não se deixar levar pela maré revolta de imagens em movimento e ser capaz de reconhecer cada filme em si mesmo (ou por si só) como o empreendimento artístico que ele é, considerando suas propriedades estéticas e narrativas.

Et la fête continue!/ E a festa continua!
de Robert Guédiguian (França/Itália, 2023)
Ao promover uma integração entre a ambientação realista e o conjunto novelístico de pequenas narrativas, Robert Guédiguian dispensa o excedente trivial para propor um envolvimento ativo, onde a produção de sentido considera principalmente a relação contínua entre imagens e sons. Para além da composição naturalista dos personagens, a conexão entre eles se estabelece a partir do ponto de intersecção entre os seus fantasmas, desejos e princípios, à medida que o filme promove ressonâncias através de uma fina parametrização de tempo, espaço e ritmo. O efeito é de uma poesia audiovisual, tornando palpável o caráter cíclico da existência (porém, sem restringí-lo de maneira determinista).
E a festa continua é pautado pelo interesse na capacidade humana de lidar com o vínculo oscilante entre as demandas externas e internas, algo que corre em paralelo com outro tipo de conexão. A relação triangular entre o espectro memorial, a adaptação à atualidade e o vislumbre da presentificação do futuro também é assumida como inerentemente instável. Ou seja, há uma consciência do presente em sua dimensão absoluta e provisória. Isto, contudo, jamais afeta a progressão dramática ou abre espaço para um distanciamento entre as instâncias além daquele que já as caracteriza naturalmente. Pelo contrário, a vivacidade do filme de Guédiguian, que é a mesma dos seus personagens, é fruto daquela flutuação. É a partir dela que a ficção se estabelece como um estímulo entre a reportagem sobre o mundo e a criação da fantasia a partir do verídico.
Tendo como ponto de partida um desmoronamento fatal ocorrido em Marseille há 6 anos, o cineasta (re)constrói uma narração ao vislumbrar a ligação imanente e trágica do ser humano com o mundo à sua volta. A complexidade do discurso, contudo, não está na dramaturgia isolada dos indivíduos ou nos posicionamentos ideológicos perante o cenário social, mas na formatação que os integra em um conjunto homogêneo e, ao mesmo tempo, atento às particularidades de cada elemento (seja ele humano ou conceitual).
Symple Comme Sylvain/ A Natureza do Amor
de Monia Chokri (Canada, 2023)
O maior mérito de A Natureza do Amor é saber lidar com a diferença entre a excitação pela busca e o reconhecimento dela como uma fantasia em si mesma - caso as sobrepusesse, a moralidade da segunda percepção obliteraria o fascínio da primeira. A fantasia, para Monia Chokri, ao invés de mera alienação, serve de superação provisória a um estado recorrente. Seu filme não se reconforta apenas com os apelos das idealizações. Ao pô-las em execução, almeja também cutucá-las a partir de suas dificuldades práticas. Muito do apelo irônico vem do confronto entre as teorias filosóficas sobre as diferenças entre amor e desejo sexual com a prática instintiva das emoções.
Se, por um lado, é inevitável o estabelecimento de arquétipos para fomentar as relações de objeto catalisadoras da fantasia da sedução, por outro, os retratos sociológicos partilham da ternura e do sarcasmo em níveis equilibrados (e às vezes até o faz concomitantemente, como na sequência do pedido de noivado). O aguçado domínio técnico de Chokri promove a diferenciação entre os ambientes sócioculturais, instituindo zonas-limítrofe (a cabana, o carro, o bar). Ao elaborar milimetricamente as sequências atentando-se à formatação dos espaços e dos sons, a diretora alcança um ritmo capaz de expressar não só a percepção como também a psicologia da protagonista. Para além dos efeitos imediatos, a liturgia dos movimentos de zoom opera pela expectativa de detectar nos rostos uma manifestação carnal. A câmera se deixa contaminar por essa busca pela experiência extática, travada a partir da crise feminina diante do matrimônio.
O recomeço dos rituais conjugais implica que a real prova de fogo nas experiências afetivas seria, então, ultrapassar a fantasia romântica em prol daquela existencial. Para a narrativa fílmica de A Natureza do Amor, o desafio autoimposto por Monia Chokri é se apropriar dos esquemas das típicas comédias anedóticas sobre infidelidade (François Truffaut, Woody Allen, Eric Rohmer) e do romance moderno de protagonismo feminino (as madames Bovary, Chatterley e Gautier), a fim de superá-los numa perspectiva própria. Em ambas provocações há uma dose considerável de ingenuidade e de frescor.
Blitz
de Steve McQueen (UK/EUA, 2024)
Mantendo o movimento de deslocamento temático das tragédias onde a luta do indivíduo é travada consigo mesmo para o confronto direto com um sistema indiferente à sua existência (a virada de chave se deu precisamente há dez anos em “12 anos de escravidão”), Steve McQueen explora em Blitz o gênero do melodrama.
Ainda que o diretor domine as construções de escala megalômana, mantendo o estímulo sensível sempre no nível da expressão visual e não meramente dos efeitos grandiloquentes, a essência do filme está no fomento da ligação entre mãe (Saoirse Ronan) e filho (Elliott Heffernan) superando a distância imposta pela II Guerra.
No encadeamento dos fragmentos e, às vezes, até no interior do próprio plano - a fotografia de Yorick Le Saux materializa a falta sentida pelos personagens de Ronan e Heffernan ao recorrer à cor para substanciar a textura dramática -, Blitz se estrutura harmonicamente através dos choques consequentes de um conflito maior, no qual a dimensão emocional ocupa a lacuna do afastamento. Ao fazer ecoar a influência do contexto histórico sobre a autonomia dos personagens, McQueen dá vigor ao substrato melodramático.
Alternando entre o Vittorio de Sica de “Vítimas da Tormenta” e o Douglas Sirk de “Amar e Morrer”, o olhar de McQueen é mais puro quando se concentra no ponto-de-vista de Heffernan em sua trajetória por um submundo londrino que remete à mitologia de Charles Dickens. Já sob a perspectiva de Ronan, mais saudosista do entre-Guerras, o diretor encontra espaço para um certo virtuosismo fagocitador. São momentos onde Blitz exibe suas pretensões. O resultado não chega a ser consumido por tais ambições, mas desvia do classicismo formal e temático em prol de algumas tensões menos profundas do que se pressupõe.
Até porque o elo umbilical não desponta apenas dos personagens em si, sendo uma consequência da narrativa fílmica como um todo. É algo que, à primeira vista, pode despertar uma impressão pontual de neutralidade. Daí o fato de utilizar suas vozes para a projeção de certas reivindicações sociais deslocadas no esquema narrativo soar um tanto burocrático.
Greice
de Leonardo Mouramateus (Portugal/Brasil, 2024)
Em Greice, a busca da personagem-título pela autonomia no construto social (e não só isso, às vezes também da própria sobrevivência em um meio, seja ele acadêmico, profissional ou nativo) é algo que reflete o próprio modo narrativo do filme. Moldar a realidade implica em modelar máscaras, as quais, por sua vez, são irremediavelmente postiças. O mistério sobre a reversibilidade da culpa traçado entre a brasileira Greice (Amandyra) e o português Afonso (Mauro Soares) se desdobra numa espiral de mentiras, espelhando o caráter farsesco da ficção e dando um ar cômico às situações.
A astuta protagonista reconhece as circunstâncias como material para a engenharia de uma fábula em benefício próprio, mas o agenciamento particular desses acontecimentos é algo que lhe escapa aos dedos. O controle da autoficção se esvai à medida que as ações dos demais personagens interferem nas capacidades de Greice, afetando as consequências. O mais interessante, contudo, não é a falha do empreendimento em si, mas a forma como os efeitos de transparência (consequentes da supressão da narração e da representação em prol da diegese) são disponibilizados para a habilidade de storytelling da personagem. Partindo do princípio que a ficção não é uma mentira, mas um simulacro da realidade que o outro (o espectador) percebe como tal, a enunciação jamais suplanta Greice com o intuito de revelar o verídico dentro da ficção. E, como ela, dispensa os joguetes morais. A indeterminação se mantém constante e a operacionalização do quebra-cabeça mobiliza a curiosidade mais do que suas soluções.
Tais questões baseiam a intriga essencial de Greice. O processo de ficcionalização do filme se atrela ao da personagem-título ao limitar a focalização interna da narrativa de acordo com as intenções dela. À medida que outros personagens experimentam intervir nas suas elaborações, a enunciação varia a instância narrativa. No entanto, a articulação com a “mostração” mantém a estratégia de restringir nossa cognoscibilidade a dos personagens.
Logo, o desafio para a dona da história é compartilhar os seus poderes por meio de uma complexa mecânica entre representação e objeto - em último nível, até mesmo junto ao espectador, diante da dupla conclusão ofertada pelo filme.
Greice assume um prazer pelo ato de romancear (ou ainda, romanceia com prazer), numa espécie de movimento reflexivo em relação à composição da protagonista. Além disso, o carisma do elenco, a fluência do texto e a economia da narrativa visual atribuem dinamismo ao exercício estimulante de Leonardo Mouramateus.
Smile 2/ Sorria 2
de Parker Finn (EUA, 2024)
Segundo filme de horror em torno de uma cantora pop em 2024… ecos dos efeitos exorbitantes da “The Eras Tour” no zeitgeist? Talvez. Enquanto a “Armadilha” de Shyamalan se posicionava em torno do palco, a sequência de “Sorria” (2022) assume o centro dos holofotes.
A consciência formalista de Parker Finn é atenta à cosmética dos espaços e à composição das imagens: a massa sonora prolonga os efeitos fantasmagóricos para além dos limites do enquadramento; os planos longos são ritmados conforme a dinâmica temporal particular de cada momento da sequência; as alternâncias de ângulo, os movimentos da câmera e os pontos de corte atingem uma intensidade capaz de reorientar a experiência do espectador; o horror se torna a própria representação do horror.
Tudo isso não é mero virtuosismo decorativo, mas estabelece a recorrência neurótica como o elemento primordial, proporcionando uma atmosfera que contamina a cena e direciona o caos como uma força a ser distendida. Ao promover a indistinção entre o subjetivo e o objetivo, a imagem, então, torna-se algo investido de forças, preenchido por traumas em desvelamento, compulsões reveladoras e delírios acumulados. Ela é, em si mesma, a consequência absoluta para as causas temáticas. As justificativas metafísicas são apenas subterfúgios, o horror é refratado na diegese a partir das obsessões do indivíduo.
A relação da câmera com a personagem principal - a frontalidade, a decupagem, a integração - faz com que o medo e a loucura sejam estabelecidos no mesmo tempo e espaço. O perecimento físico e psicológico da perfeição artificial caracterizadora de uma estrela pop torna-se o próprio espetáculo (no interior da narrativa; no filme em si como produto). É quando a percepção cinematográfica revela sua capacidade reflexiva: ao aniquilar as aparências e promover o retorno alucinatório daquilo recalcado, Sorria 2 se assume como um auto-slasher, um espetáculo da destruição própria.
Contudo, o retrato psicológico não poderia se entregar absolutamente ao sadismo, corrompendo-se. O antídoto a isto, capaz de fornecer uma base à estética da violência (e se distanciando da “estetização da brutalidade”) está em Naomi Scott.
Tamanha operação requer uma protagonista febril, capaz de disponibilizar uma performance atenta ao equilíbrio entre o agenciamento das feições e a espontaneidade reativa dos gestos. Magnetizando no seu corpo toda a carga dramática da cena, Naomi Scott alinha uma série de tours-de-force, entregando uma das atuações mais memoráveis de 2024.
Queria ver o "Greice", mas perdi a oportunidade, quando esteve em exibição em Portugal.