Herege; Jurado Nº2; O Dia Que Te Conheci; Look Back; Crônica de Uma Relação Passageira; Carry-on; Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra
Cinediário XXIII - ultima edição do ano, recheada de lançamentos
“por acaso ou não
o único
grande problema
do cinema
parece ser para mim
onde e por que
começar um plano
e onde e por que
terminá-lo”
o realizador francês Jean-Luc Godard em “História(s) do Cinema”
Chronique d'une liaison passagère/ Crônica de uma relação passageira
de Emmanuel Mouret (França, 2022)
Assim como o romance entre o casal Charlotte (Sandrine Kiberlain) e Simon (Vincent Macaigne), Crônica de uma relação passageira é consciente de seus valores e crenças. O mais encantador no fato de Emmanuel Mouret assumir a franqueza cotidiana é a atenção dada por ele à captura dos momentos mais significativos dessa rotina. Afinal, uma memória afetiva é composta pelas demonstrações de estima mais espontâneas. Basta um movimento de zoom vir interromper os tracking shot e as panorâmicas para tornar perceptível, através da própria câmera, como determinado personagem irá se render à energia da paixão.
Apega-se a alguém pelos pequenos gestos, atitudes e olhares. E é também pelas sutilezas que nos afeiçoamos a um filme, num vínculo para além do deslumbramento inicial. O debate entre o transitório e o definitivo onde se situam os protagonistas traz à tona uma forte influência do cinema de François Truffaut. Constam em Crônica de Uma Relação Passageira os diálogos céleres traduzindo a idiossincrasia dos personagens; os cenários interiores estimulando vários reenquadramentos através de portas, corredores e janelas; a objetividade da câmera abdicando de significações adicionais à performance dos intérpretes; e a recusa ao flashback nos momentos onde o passado é evocado, manifestando-o por meio dos depoimentos.
A própria estrutura do roteiro solicita atenção aos meandros da conexão entre Charlotte e Simon, desenvolvida durante os eventos anedóticos. A eficácia de Mouret é comprovada ao propor uma atenciosa regulação das distâncias espaciais, tanto da câmera em relação ao ator quanto dos corpos entre si e o pano de fundo. Apesar das possibilidades infinitas e da contenção anti-romântica, tão características do mundo contemporâneo, a paixão é (sem dúvidas) uma etapa do amor. Só que essa liturgia não precisa se desenrolar num percurso convencional e normativo - a beleza da cena em que, por ironia do destino, o casal entra numa igreja, é radiante em sua concisão.
Emmanuel Mouret depõe a favor do amor sob uma fascinação dedicada a compreender as particularidades. Apesar dos empecilhos da vida adulta, da ação do tempo e de uma noção ironicamente pragmática que interfere como um sinal dos tempos, o realizador nunca perde a fé no resiliente sentimento entre o casal protagonista. A isto contribui a impecabilidade como Kiberlain e Macaigne compreendem e avivam seus papéis, gerando uma química genuína.
Se ao final restar alguma dúvida quanto à convicção de Mouret, basta se atentar ao desenrolar dos créditos finais. Não há cenas surpresas como nos filmes de super-herói, mas o arremate se dá com o ressurgimento da voz de Juliette Gréco cantando ‘La javanaise’.
Heretic/ Herege
de Scott Beck e Bryan Woods (EUA, 2024)
A árdua tarefa de reanimar a fé nos millennials através do horror elevado…
Em meio às evidências e às propagandas do mundo material, Herege procura compreender a fé como uma sensibilidade interior. Suas operações, contudo, são incapazes de transformar os instigantes questionamentos teológicos do roteiro numa retórica audiovisual capaz de testar os limites da suspensão de descrença. A disputa pelo poder de sugestão é a verdadeira baliza: os diretores arquitetam o palco claustrofóbico mas buscam os indícios menos pela encenação do que por uma lógica gamer. Ao dar prioridade ao engendramento da mágica, o filme jamais abdica da manipulação, minando assim as manifestações feéricas.
Recorrendo a um aproveitamento banal da oratória de Hugh Grant - sua escrupulosa eficiência é reduzida a uma muleta sofisticada - Herege se comprova demasiadamente dependente do texto. Desperdiçam-se as hipóteses de proporcionar uma tensão palpável através do poder do Verbo. O resultado só poderia ser contrário à tentativa de trazer a mitologia da fé para o domínio do fenomenológico, diluindo a apologia pelo autoconhecimento proposta na conclusão. Incapaz de fomentar a crença em si mesmo, Herege permanece atado à superfície dos ídolos.
O esforço de Grant, inclusive, furou a bolha do gênero e o levou à indicação a Melhor Ator no Golden Globes e no Critics Choice Awards.
Carry-on/ Bagagem de Risco
de Jaume Collet-Serra (EUA, 2024)
Um olhar superficial poderia julgar a produção Netflixiana de Collet-Serra como reacionária. Isso se daria por conta do enfoque de suas temáticas superficiais: a apologia pela manutenção da família; o difícil reposicionamento profissional de um cidadão de perfil exemplar; o extermínio da dúvida na consciência (no caso, a instigadora voz de Jason Bateman); e ainda, o intuito de afirmar a imperatividade da força humana sobre as habilidades virtuais. No fundo, Bagagem de Risco promove uma subversão disso tudo: trata-se aqui de um solitário grito de socorro diante dessa realidade prescrita como um modelo a ser seguido, cuja imponência engole as subjetividades.
As artimanhas corporativas; a insegurança estadunidense relacionada ao fantasma do terrorismo; o espírito natalino industrializado; a proliferação descorporificada de uma alta tecnologia que vigia e limita os agenciamentos: estas são grandezas invisíveis a atuar sobre a narrativa, dando-lhe uma dimensão épica. É a elas que o sentido geral de Bagagem de Risco continuamente se reporta, tateando formas de libertação através do raciocínio e do corpo de seu personagem central, atribuindo assim um contexto maior às suas motivações. Ainda que o discurso permaneça distante das raias da artificialização, este viés macro induz o longa a recorrer a pormenores expositivos, empolando o desenvolvimento da trama de espionagem. Collet-Serra, contudo, jamais perde o controle manipulativo do suspense.
Impregnado por uma necessidade de independência em relação às normas, Bagagem de Risco tem por finalidade proporcionar ao segurança de aeroporto vivido por Taron Eagerton a atmosfera propícia para o teste definitivo de sua aptidão como agente policial. Isso estimula uma espécie de refração da figura do protagonista nos pólos perante os quais ele se encontra (no caso, a detetive interpretada por Danielle Deadwyler e o suposto cúmplice dos ladrões, Mateo Flores). Consequentemente, os papeis desestabilizam-se: todos variam entre as funções de adjuvante e oponente. As sequências do embate físico nas esteiras das bagagens despachadas e do capotamento ocasionado pela queda das máscaras no departamento policial são set-pieces enérgicos cujas qualidades provêm não só dos efeitos visuais mas do intercâmbio entre agentes.
A tensão imanente de Bagagem de Risco reside no fato do longa se assumir como uma medida desesperada. É a derradeira tentativa do ajustamento individual entre anseios e responsabilidades em meio a uma gama entrelaçada de fatores inescapáveis: a iminência da paternidade, a urgência das decisões sociais, a pressão econômica e a influência do histórico familiar. Collet-Serra propõe a recusa ao cinismo através do formato espetacular do cinema de ação, um verdadeiro “milagre de natal” para adultos.
O Dia Que Te Conheci
de André Novais Oliveira (Brasil/2023)
Francamente romântico e instantaneamente relacionável em sua fantasia do “acaso controlado”.
Ao mesmo tempo que se apoia no registro espontâneo de um dia-a-dia comum, o filme de André Novais Oliveira busca capturar as possibilidades imaginativas no percurso. Uma percepção não corrompe a outra: as relações visuais articuladas pela montagem e o uso pontual da trilha musical dão um tom onírico à trajetória dos personagens enquanto a naturalidade da interação entre eles e o meio direcionam a atenção ao presente. Essa fluidez adquirida pela desenvoltura cênica dos atores está inserida numa moldura de composição aparentemente simples mas de organização complexa, cuja técnica mobiliza os elementos fílmicos - por exemplo, a capacidade sintática adquirida pelos planos-sequência, capazes de ofertar algo além do prolongado efeito espaço-temporal.
Aqui, os motivos são tão importantes quanto as escusas. Nesta mecânica entre a realidade do mundo e a ilusão fílmica, a organicidade obtida não só valoriza os discursos da narrativa como torna nítida a precisão com a qual o cineasta ajusta o modo econômico de produção, a fim de conformar a matéria disponível à expressão de suas ideias. O cinema se mostra, ao mesmo tempo, uma possibilidade de afinar a nossa percepção em meio à rotina e sintonizar-se com os desejos íntimos, traçando a ponte indistinta entre o subjetivo e o objetivo que caracteriza a densidade artística. Para além das questões trazidas pela temática, a empatia e a identificação junto ao casal vivido por Renato Novais e Grace Passô são consequências dessa relação metabólica entre elasticidade e solidez que visa à compreensão dos personagens. O Dia Que Te Conheci torna palpável a diferença entre conviver e conhecer o outro.
É desta maneira poética que André Novais Oliveira equipara o romance moderno da “tarja-preta” ao mesmo nível do seu método de representação. Aposta-se no reajuste humano diante das circunstâncias indutoras de ansiedades e depressão através de uma outra regulação: a da química entre os afetos.
หลานม่า/ Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra
de Pat Boonnitipat (Tailândia, 2024)
…ou como atestar os laços familiares através dos critérios de propriedade (parabéns para a sagacidade da distribuidora em lançá-lo próximo do natal).
Partindo do conflito de gerações, o enredo de Como Ganhar Milhões Antes Que a Avó Morra transita entre as tradições orientais e a sobrevivência na realidade capitalista. Isso se desdobra numa disputa pelos espaços, onde os jovens encaram a necessidade de garantir posses enquanto a iminência do fim da vida leva os mais velhos a enxergar tal questão como algo menos primordial.
Assumindo o ponto-de-vista de seu jovem protagonista M. (Putthipong Assaratanakul), o filme de Boonnitipat adota uma decupagem caracterizada por planos majoritariamente fixos, estabelecendo o enquadramento como o espaço e o fechamento pertinentes à perspectiva dos personagens de gerações distintas. Através de uma composição demarcada, o diretor mobiliza a variação dos deslocamentos à medida que as relações progridem. Há uma sucessão de comparações e alternâncias a partir da dupla descoberta de M.: o rapaz percebe não só a importância dos valores intangíveis para sua avó (Usha Seamkhum), mas também as reações diversas dos demais familiares em relação à enfermidade da idosa.
Contudo, à medida que o afeto sobrepõe o interesse econômico, o filme parece trair sua perspectiva (ou os ideais do protagonista) ao não permitir uma transformação interna também à nível formal. Ainda que não seja uma diferença correlacionada à questão geracional, pois os personagens intercambiam nestas variações, a tensão narrativa provocada entre o humor pautado pela ironia (a economia na decupagem; os diálogos afiados) e o desenvolvimento do tom melodramático (a onipresente trilha musical direcionando as emoções; as elipses previsíveis suavizando certos conflitos), leva Como Ganhar Milhões… a despersonalizar-se. O longa esvazia a si próprio ao impor os limites circunscritos de uma apologia moral.
Diante daqueles estímulos alternados, a falta de um zelo equiparado por parte de Boonnitipat inviabiliza o equilíbrio. É como se o arco de amadurecimento de M. justificasse uma entrega fácil à influência das emoções, ao invés de depurar a percepção do rapaz perante a incidência ancestral sobre os critérios de propriedade (seja no meio familiar, econômico, social ou cultural). Afinal, é este segundo quesito que atinge outro aspecto com o qual o roteiro lida de maneira cativante: a criação de narrativas nas relações como ferramenta de proteção mútua (até mesmo quando, por vezes, a dureza da realidade nem é tão áspera quanto parece). Há uma docilidade nesse intento que Como ganhar milhões… é capaz de assumir, sendo este o verdadeiro fruto qualitativo de seu drama manipulativo.
Junto com o brasileiro “Ainda estou aqui” e outros 13 títulos, o filme prefigura na pré-lista dos indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional.
Juror #2/ Jurado Nº 2
de Clint Eastwood (EUA, 2024)
No atual cenário cinematográfico regulado pelas polaridades do bombardeamento psicossensorial e da lassidão minimalista, é curioso como o método de Clint Eastwood adquire uma potência impactante. Sua modulação assume o papel de antídoto aos julgamentos sumários em voga.
A cadência na elocução narrativa gera o ritmo propício à uma composição que não se limita à ilustração dos discursos. Com a agudez e a firmeza de um caráter, a expiação da culpa e o desejo de reparação emergem da psicologia precisamente traçada dos personagens. Esta, por sua vez, ressoa no cruzamento entre causas e efeitos da trama e encontra na estrutura o espaço ideal para se locomover entre teses e antíteses. É o que atribui não só uma autenticidade humanista ao empreendimento de Eastwood como possibilita a elucidação dos seus valores temáticos. Jurado Nº 2 se sustenta pela consistência do universo moral que delineia.
Os perfis nos são revelados através das relações entre os personagens (uns com os outros e consigo mesmos). Tais conexões promovem a dissolução das aparências e a consequente inversão dos arquétipos. Uma operação que sucede, ao mesmo tempo, diante dos nossos olhos e dos deles próprios. Graças a estes movimentos, a funcionalidade de Jurado Nº 2 se aproxima mais de uma lógica novelística do que da operação clássica. Claro, há um afiado reconhecimento do peso das importâncias, mas o valor essencial dado ao depoimento enquanto veículo narrativo da ação, assim como a dinâmica dos reenquadramentos, da movimentação cênica e da decupagem, dão um tom mais concentrado à dramaturgia (mesmo nas sequências para além do tribunal).
Ao questionar o sistema institucional para apostar na sensibilidade humana como meio de justiça, a coerência formal de Eastwood comprova seus efeitos de grandeza. Nem esteticamente reacionário, nem didático na palestrinha para já convertidos; é fácil deduzir, com certo pesar, porque Jurado Nº 2 mal encontrou seu espaço nas salas de cinema neste final de ano.
ルックバック / Look Back
De Kiyotaka Oshiyama (Japão, 2024)
Quem cedo descobre uma motivação artística sabe o quão difícil é lidar com isso em meio ao processo de formação, quando as auto-comparações e as influências ao redor inserem o estímulo alheio numa zona nebulosa capaz de confundir expectativa com pressão (e vice-versa).
Tanto na circularidade narrativa quanto nas composições gráficas, Look Back propõe um olhar honesto sobre essa trajetória de amadurecimento onde o ofício se interliga com o desenvolvimento individual. A agilidade do roteiro demonstra uma capacidade de concisão temática ausente na maioria das animações de longa-metragem contemporâneas (em suma, não se distrai e diz o bastante sobre suas verdadeiras intenções em pouco tempo). É como se o próprio filme fundisse a ânsia pela evolução nos procedimentos, tão característica da juventude, com a paciência preciosista de quem já amadureceu.
Prezando pelo valor do estímulo inspiracional, a atmosfera compreensiva de Look Back é, em si mesma, uma prova dessa sensibilidade capaz de promover o interior na exteriorização de seus traços.