Le premier coup: o início do projeto Truffaut
Em ordem cronológica, analisarei os 21 longas-metragens realizados por François Truffaut.
Em ordem cronológica, analisarei os 21 longas-metragens realizados por François Truffaut.
Assisti pela primeira vez a “Os incompreendidos” (“Les 400 Coups”, 1959) em 2001, por meio de um relançamento em cópia restaurada em 35mm exibido no Odeon, sala de exibição já quase centenária, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que vi um filme de Truffaut, a primeira vez que vi um produto da Nouvelle Vague (mais precisamente, a primeira vez que vi um filme europeu per se), a primeira vez que fui a um cinema localizado fora do bairro onde morava. Não era a primeira vez que assistia a um filme em preto-e-branco, já que o dito “cinema moderno” de Hollywood (produzido nas décadas de 1940–1950) e a subsequente Nova Hollywood (entre 1968–1982) eram os meus favoritos — claro, uma preferência bastante intuitiva, numa época em que eu sequer imaginava existir tais categorizações históricas — , o que me fazia ficar noites acordados à espera das reprises da sessão Corujão da TV Globo ou a escavar o acervo das poucas videolocadoras existentes no subúrbio onde eu morava. Foi justamente essa recepção exclusivamente sensorial que eu tinha com os filmes, esse encanto direto tão somente pela via emocional, que me levou ao impacto na experiência com esse filme seminal de François Truffaut. Enxerguei ali uma sensibilidade e, ao mesmo tempo, uma brutalidade realista da imagem, que eu nunca tinha conferido antes. Não sabia decodificar esse traço de forma inequívoca ainda, mas a minha percepção-chave era “sensibilidade”. Provavelmente por ter a mesma idade do protagonista no filme — que mais tarde eu viria a saber que era um autorretrato da própria infância de Truffaut — , resvalando aí na identificação cinematográfica secundária propagada pelo linguista e teórico francês Christian Metz (onde o espectador se identifica, pelo espelho do cinema, com os personagens ou outro elemento qualquer da ficção), o que fez enxergar a mim próprio como Antoine Doinel.

A “sensibilidade” retratada por meio da “brutalidade realista da imagem” me fez intuir pela primeira vez a existência da forma no ato de fazer filmes, que mais eu tarde eu viria descobrir ser a mise en scène. Assistindo a outros títulos de Truffaut, não demoraria muito para eu perceber que “Os incompreendidos”, seu primeiro longa-metragem, já continha os motivos visuais e temas narrativos que guiariam o restante da sua filmografia, sublinhados por meio de pormenores autobiográficos revistos sob o viés de um humor melancólico. No meio de uma renovação e subversão cultural e comportamental do pós-II Guerra, a opção por uma abordagem menos intelectual do que emocional nos sentimentos e nas relações dos personagens, o que não o impedia de manter um zelo formal na sua encenação. A imprescindibilidade da amizade masculina, mais fiel do que os relacionamentos amorosos que inevitavelmente cedem aos adultérios. O platonismo de sua câmera por personagens femininas (algumas sob a máscara irresistível de femme fatale), revelando um endeusamento edipiano em sua essência. A valorização da infância como período primitivo, puro e não corrompido pela sociedade, culminando numa complexa construção da masculinidade e em choques incontornáveis com as figuras de autoridade. Protagonistas que, apesar da timidez e da formalidade em seus tratos sociais, possuem a necessidade de provar que são dignos de ser amados, onde a carícia, cobiçada e ansiada como meio de declaração afetiva, se estabelece como motivo visual frequente em seus enquadramentos. Uma paixão quase religiosa ao cinema e à literatura, ambos vias de escape para a ascendência a um mundo melhor por meio do ofício da criação — o que nos leva ao motivo seguinte: uma reverência iconoclasta aos grandes mestres do cinema (muitos dos quais, realizadores hollywoodianos que o jovem crítico Truffaut, antes de cineasta, defendia com unhas e dentes quando escrevia para a Cahiers du Cinéma).

Em 29 anos de carreira, Truffaut realizou 24 filmes, sendo três curtas-metragens e 21 longas-metragens. Robert Ingram, eu seu livro “François Truffaut: A Filmografia Completa” (ed. Taschen, 2004) categoriza os longas da seguinte forma: os quatro que formam o coming-of-age do personagem Antoine Doinel (“Os incompreendidos”, “Beijos roubados”, “Domicílio conjugal” e “O amor em fuga”, onde inclui-se também o curta “Antoine e Colette”, lançado entre os dois primeiros); os filmes de gênero (o sci-fi “Fahrenheit 451”; os noirs “Um só pecado”, “A sereia do Mississippi” e “A mulher do lado”; os thrillers “Atirem sobre o pianista”, “A noiva estava de preto” e “De repente, num domingo”, baseados em livros policiais; e os históricos “Jules e Jim”, “O garoto selvagem”, “As duas inglesas e o amor”, “A história de Adèle H.”, “O quarto verde” e “O último metrô”). Ingram reconhece o mérito puramente organizacional desse esquema, já que tal classificação, obviamente, é superficial. À margem, ficariam os títulos “Uma jovem tão bela quanto eu”, “Na idade da inocência”, “O homem que amava as mulheres” e o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro “A noite americana”, onde Truffaut foi indicado a Melhor Diretor pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

Nada sabia sobre Truffaut quando, em 2001, recorri à internet discada da época e ingressei na famigerada “blogosfera” , tentando descrever de alguma forma essa tal “sensibilidade” do cinema de Truffaut. Hoje, reconheço isso como um ato de coragem, meramente motivado por uma paixão à sua obra (do que mais seriam motivados os ímpetos?), mas minguado de conhecimento e técnica. Todavia, foi a partir disso que percebi o cinema como um prazer concreto, um possível ofício e até mesmo uma via de existência. Foi o início de uma jornada que, apesar de seus desvios, hoje reconheço como uma devoção. É por meio dela que inicio este projeto pessoal de elaborar simples análises sobre os longa-metragens de Truffaut, que no fundo é uma vontade de reconectar-me tanto com a obra de um diretores instauradores da Nouvelle Vague quanto com o pré-adolescente que eu era, apaixonado por cinema e ansioso por expressar esse sentimento. Não compartilho do famoso corolário evocado no auge da Política dos Autores pelo jornalista Andrew Sarris (e erroneamente atribuído por muitos a Truffaut nos seus tempos de crítico cinematográfico), de que o pior filme de um grande diretor pode ser mais interessante do que o melhor filme de um diretor mediano, sublinhando uma crença de que não existem bons e maus filmes, mas sim bons e maus diretores. O que proponho aqui é uma (re)visão o mais independente possível de cada obra em sua cosmologia particular, ainda que seja impossível dissociar completamente o diretor de seus filmes, sendo o próprio Truffaut um Autor na definição da Cahiers du Cinéma. Não existe artista “perfeito”, a idiossincrasia artística de cada um vive acima de conceitos básicos de “bom ou mau gosto” e a última coisa que pretendo fazer é diagnosticar a obra de Truffaut por meio de uma cartilha de “qualidades” cinematográficas.
Em 1948, ao ser adotado pelo hoje fundamental teórico André Bazin, editor-chefe da Cahiers do Cinéma que se tornou seu mentor profissional e figura paterna, François Truffaut foi salvo do vandalismo juvenil onde se encontrava e fincou de vez os seus pés no cinema, primeiro como crítico, depois como realizador. De forma similar, quase 40 anos depois de sua morte, o legado de Truffaut ainda guia a cinefilia no coração e na mente de diversos iniciantes nessa arte. Eu sou a prova viva dessa influência perene.
“O que espero de um filme é que ele expresse ou a alegria ou o sofrimento de fazer cinema. O que fica no meio disso absolutamente não me interessa” (François Truffaut).