Malu; Robô selvagem; Megalopolis; Late night with the devil; Le Lycéen
Cinediário XIX - lançamentos vistos na última quinzena
(Comentei sobre outras estreias recentes - O Quarto ao Lado, Todo Tempo que Temos e O Aprendiz - na cobertura do Festival do Rio deste ano).
“Eu gosto, eu não gosto: isso não tem importância para ninguém; isso, aparentemente, não tem sentido. E, no entanto, tudo isso significa: meu corpo não é o mesmo que o seu. Daí, nessa espuma anárquica de gostos e desgostos, uma espécie de borrão apático, gradualmente aparece a figura de um enigma corporal, exigindo cumplicidade ou irritação. Aqui começa a intimidação do corpo, que obriga os outros a me suportarem liberalmente, a permanecerem silenciosos e educados diante de prazeres ou rejeições que não compartilham.”
Roland Barthes (“Roland Barthes por Roland Barthes”)
Megalopolis
(EUA, 2024)
de Francis Ford Coppola
Com um elenco estelar, um orçamento de $120 milhões saídos do bolso do próprio diretor e um histórico de produção tão experimental quanto atribulado (e intensamente publicizado), o novo projeto de Coppola chega com ares de “Apocalypse Now” (1979). Ou, pior ainda, alimentando as expectativas cult do mesmo.
A epopeia que traça paralelos entre o Império Romano e o futuro dos Estados Unidos pretende ser como o arquiteto vivido por Adam Driver: um homem do futuro absorvido pelo passado. Tão consumido pelas possibilidades, Megalopolis fragiliza seus ideais megalômanos ao não saber como lidar com o básico de cada extremo.
O poder do protagonista sobre as diretrizes do tempo é refletido na materialidade do espaço; Coppola, por sua vez, pretere a construção da imagem em prol da plasticidade do enquadramento, da mesma forma que deixa de lado a duração particular dos eventos em favor de uma concepção temporal uniforme em sua aleatoriedade.
O resultado é um efeito dominó. A partir da dispersão, o alardeado apelo utópico limita-se à quimera. Carentes de uma dimensão interior que os conecte ao sentido da história, os arquétipos soltos tornam-se refém de uma idealização entrópica, vazia. É quando Megalopolis se revela mais próximo do maniqueísmo que caracteriza o primo manipulador vivido por Shia LaBeouf - não à toa, o componente mais bem ajustado ao filme.
Em sua assumida artificialidade estética, o visual retrofuturista até poderia ser compreendido como uma antítese do Mundo Marvel. Um CGI maneirista, talvez. Acontece que esse exercício centrado não na mise-en-scène mas na própria imagem desliza para uma virtuose barroca exasperada, sem vida. Embora estimulantes no início, os detalhes materiais vão se gastando de maneira irrecuperável. A saída para a conclusão do empreendimento é reduzir a dimensão épica às pretensões de um discurso ilustrado.
Autoindulgente, Megalopolis é, no fundo, um produto mais relativo à tecnologia cinematográfica do que ao próprio cinema. Coppola sabe o que faz ao aproximar-se dos digital influencers no aparato de divulgação mundial do longa: é à reação intempestiva, instantânea e desmesurada que os seus esforços hiperbólicos se direcionam.
Malu
Brasil, 2024
de Pedro Freire
Representante brasileiro no Festival de Sundance deste ano, Malu é uma ficcionalização das memórias do diretor Pedro Freire a respeito de sua mãe, a atriz Malu Rocha, falecida em 2013.
O grande mérito de Malu é a interação entre três atrizes habilidosas de gerações distintas (Juliana Carneiro da Cunha, Yara de Novaes e Carol Duarte), cujas performances de temperamento vulcânico encaram um texto fulminante.
O roteiro, de tom íntimo e afetuoso (mas nada condescendente), proporciona uma compreensão sensível à teia de causas e efeitos que entrelaça os vértices na relação triangular entre avó, mãe e filha. A cada conflito, tais personagens tornam-se vetores de experiências vibrantes, fazendo com que o espaço anímico da atuação contamine toda a cena. O tão sonhado centro cultural da protagonista torna-se um palco de câmara compartilhado para a purgação de ressentimentos e angústias.
Expressar-se é algo vital para Malu e o olhar de Pedro Freire assume tal condição no dinamismo de uma dramaturgia brutal, seca e instantânea. Há, entretanto, uma certa dispersão dessa arbitrariedade. Ao estruturar as elipses por meio de uma instabilidade menos espontânea, fragiliza-se tanto a assumida inclinação teatral (inerente à forma concentrada de sua encenação) quanto as intenções de uma conclusão geracional a partir das influências externas (política, econômica e social) incidindo sobre a trajetória da família.
No último Festival do Rio, o longa foi reconhecido pelo júri com os prêmios de Melhor Atriz (Novaes), Atriz Coadjuvante (Duarte e Cunha dividiram o mérito), Roteiro e Filme (juntamente com “Baby”, de Marcelo Caetano).
Late night with the devil/ Entrevista com o demônio
(Austrália/EUA/Emirados Árabes Unidos, 2023)
de Colin Caimes e Cameron Caimes
Esqueça o gimmick do found footage que se desmantela a cada recorrência ao mockumentary, a traquinagem da falsa textura de vídeo meramente decorativa e o burocrático panorama dos anos 1970 como um período violentamente caótico e distante da romantização hippie. Este aqui até pode ser “o filme de terror mais aclamado de 2024”, mas o broadcasting simulado de “Ghostwatch” (1992) é melhor, assim como a tensão de “O Exorcista” (1973).
O interessante em Late night with the devil é a relação entre o fetiche pela verossimilhança e o apelo do espetáculo, diálogo localizado na dimensão simbólica do filme. A premissa do longa dos irmãos Caimes é o videotape de um talk-show noturno de 1977, onde foi registrado uma possessão demoníaca ao vivo.
O found footage mimetiza o passado para, sob o caráter aliciante e ilusionista da nostalgia (tão reivindicado atualmente) propor, em última análise, um ensaio sobre a absoluta desconfiança diante do conteúdo produzido através das imagens (a verdadeira questão contemporânea). Esse mecanismo onde o falso manipula as texturas do “real” é capaz de espelhar nas expectativas do espectador a neurose de um protagonista (David Dastmalchian) cuja ambição profissional o torna o verdadeiro “Mal”, um demônio dentre tantos outros na escalada pelo controle da audiência.
Se, por um lado, o emprego dos expedientes do talk-show não chega a revigorar as convenções do horror, por outro, é capaz de arejá-las. O resultado promove a circunscrição do ambiente televisivo à uma atmosfera paranoica, instigante em sua capacidade de intimidar o agente receptor das imagens, ao ponto de instrumentalizar a visão. Em Late night with the devil o espaço diegético, na assumida fusão entre o representado e o representante, articula diferentes níveis de representação onde não só a vida privada se mistura com a pública (o nível dramático) como o aspecto sobrenatural contamina o naturalismo por meio da sugestão (na encenação). A relação se dá pelas frestas do extraquadro, onde os efeitos da fantasmagoria vem minar o direcionamento centrípeto da moldura característica da TV, utilizando-se desta forma de comunicação que interpela diretamente o espectador para pôr em funcionamento o mecanismo do suspense.
A ênfase no curto-circuito entre os níveis de representação se dá também no nível ontológico; na desestabilização provocada pelo transe alucinatório, o prólogo se revela algo além de uma mera introdução, tornando-se a maneira como o próprio protagonista simplifica a sua trajetória através de um simulacro de imagens.
Trata-se, em diversas camadas, do exercício de forjar uma imagem - para o filme em si, para o seu personagem principal, para a suspensão da descrença no espectador.
Não dá pra esquecer, contudo, a polêmica acerca da utilização de inteligência artificial na edição de determinadas cenas. Isto atribui uma camada adicional no questionamento à natureza das imagens, mais precisamente no construto de seus efeitos. Difícil defender tal ferramenta como uma possibilidade para a produção de filmes de baixo-orçamento quando a indústria criativa é repleta de profissionais em busca de um espaço. É mais difícil ainda desmerecer o trabalho dos outros artistas envolvidos neste filme por causa do recurso adotado pelos diretores. Além disso, será possível numa sociedade capitalista opor-se ao desmesurado avanço tecnológico, cujo controle pertence a quem detém o maior poder econômico e de influência? Cabe lembrar, o diabo não é o expediente em si.

The Wild Robot/ Robô Selvagem
(EUA, 2024)
de Chris Sanders
Alguns gráficos deslumbrantes e uma dose considerável de fofura são os atrativos desta parábola sobre a razoabilidade da inteligência artificial conforme as capacidades de alteridade e empatia da humanidade. No fundo, tais qualidades derivam menos do desenvolvimento da narrativa (acelerado à toque de caixa e sem o mínimo pudor de enfileirar as convenções mais formulaicas da jornada do herói) do que do próprio confronto entre a natureza primitiva e a tecnologia do futuro. Afinal, o olhar delicado sobre a maternidade, tão caro ao roteiro de Sanders, procede desta premissa-base - a qual, por sua vez, é refletida no nível estético, onde a mistura entre as formas geométricas do CGI e a aparência de pintura à óleo nas paisagens proporcionam à animação um certo ar de “Star Wars” impressionista.
Ocasionalmente didático, majoritariamente sensível. A maioria dos veículos hollywoodianos já apostam em Robô Selvagem como o favorito ao Oscar 2025 de Melhor Animação, desbancando o arrasa-quarteirão Divertida Mente 2 (2024).
Le Lycéen/ Inverno em Paris
(França, 2022)
de Christophe Honoré
Demorou para o 15º longa de Christophe Honoré estrear em território nacional. Seguindo o estilo (narrativas entrelaçadas numa forma complexa, de estética dinâmica) e a temática (atribulações familiares, desejos sexuais enviesados e separações inevitáveis) típicas de sua obra, Le Lycéen gira em torno das consequências do súbito falecimento de Quentin (vivido pelo próprio diretor) na vida de sua esposa (Juliette Binoche) e filhos (Paul Kircher e Vincent Lacoste), cujo acidente pode ter sido, na verdade, um suicídio.
A princípio, Honoré opta por uma expressão realista e imediata. À medida que a cena evolui, o diretor passa a intervir na matéria-prima de forma incisiva, impelindo tendenciosamente os efeitos dramáticos sem a menor sutileza. Tal estratégia dissimula a espontaneidade pretendida no mergulho psicológico da narrativa - a decupagem na cena do colapso nervoso do filho mais novo após o velório do pai é um exemplo claro disso.
Quando finalmente a intimidade entre os personagens alcança o tempo e o espaço devidos, brotam alguns (poucos) lampejos de beleza genuínos. E, em todas essas manifestações, está Juliette Binoche. Incumbida de um papel ingrato que surge pontualmente em cena já numa intensidade emocional bem específica, a atriz é capaz de burlar as premissas apriorísticas de Honoré e se demonstrar frágil, atingindo o fulgor tão almejado por ele.