O Segundo Ato; A Favorita do Rei; Daaaaaalí!; O Bom Professor
cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2024 | 1ª parte
Homenageando Alain Delon e François Truffaut, o 15º Festival Varilux de Cinema Francês apresenta uma diversidade de filmes francófonos inéditos em terras brasileiras, de blockbusters a documentários. Trarei impressões sobre alguns títulos da mostra numa série de três postagens ao longo dos próximos dias.
Compõem esta coletânea inicial: a dose dupla de Quentin Dupieux (a antítese positiva de Michel Gondry está numa deliciosa fase prolífica); a comentada superprodução de Maïwenn com o controverso Johnny Depp; e um drama escolar protagonizado pelo galã François Civil, escrito pelo diretor Teddy Lussi-Modeste (em parceria com Audrey Diwan, autora do elogiado “O acontecimento”), tendo por base um incidente verídico ocorrido com ele próprio.
Jeanne du Barry/ A Favorita do Rei
de Maïwenn (2023)
Com um dos maiores orçamentos do cinema francês de 2022 e parceria junto a Netflix, a diretora Maïwenn se inspirou na “Maria Antonieta” (2006) de Sofia Coppola e no “Barry Lyndon” (1973) de Stanley Kubrick para tecer um retrato da cortesã Madame du Barry, amante do rei Luís XV. É dela o papel principal, enquanto Johnny Depp interpreta aquele cujo reinado ficou marcado pelo desenvolvimento na história da decoração de interiores e mobiliários. Este é o primeiro papel de Depp após ser inocentado das acusações de Amber Heard em um dos maiores escândalos midiáticos da década.
A cena em que Jeanne du Barry por trás do espelho assiste a rotina matutina do rei Luís XV até poderia indicar a vivência real como uma imagem falsa ou mesmo determinar o deslocamento da cortesã diante daquela realidade monárquica, sendo ela uma eterna espectadora no teatro das vaidades. Esse momento, todavia, é apenas um sintoma do auto-deslumbramento pelo qual o filme padece, entorpecido pela opulência dos decórs de Versalhes, pelas poses de Johnny Depp, pela coreografia de um passado nobre e pela fixação em comprovar a beleza de Maïwenn.
Tais ambições decorativas não chegam sequer a propor uma estética da fascinação. Jeanne du Barry aglutina um acúmulo de cenas sem nuances ou profundidade, sendo incapaz de significar um funcionamento expressivo, sacrificando o sentido em prol do controle de um êxtase pleonástico. A repetitiva intempestividade dos movimentos de zoom nada tem a ver com a liturgia kubrickiana. Ao invés de penetrar o vazio de um mundo pautado por veleidades, apenas reafirmam o caráter supérfluo das construções. Como resultado, as paixões são corroídas pelo narcisismo das performances, a rebeldia aos costumes vira uma cerimônia anunciada por discursos didáticos, a ironia torna as dissimulações dos rituais da corte real em pontuações grotescas e o joie de vivre da protagonista se limita à frivolidade (sendo o oposto à subversão da alienação proposta por Sofia Coppola em seu olhar sobre Maria Antonieta).
Ao fazer do seu filme um grande motivo para justificar a escolha final de Luís XV, Maïwenn sabota as próprias intenções. Considerando a obra da cineasta, Mon Roi 2 seria um título mais apropriado a Jeanne du Barry.
Le Deuxième Acte/ O Segundo Ato (2024)
de Quentin Dupieux
A partir da premissa do uso de inteligência artificial na produção cinematográfica, Dupieux mobiliza um confronto entre dois extremos - a automatização apática e o descontrole emocional - mas a tensão gerada se volta para um questionamento essencial. O que torna a mágica do cinema possível em meio aos paradigmas da criação?
Transparência ou opacidade dos meios; realidade ou ficção; estereótipo ou subjetivo; condicionamento mecânico ou ativação sensorial. Localizado entre esses parâmetros está aquilo que Dupieux elege como a matéria-prima cinematográfica, o ator, elemento vivo capaz de abrigar uma série de potencialidades nem sempre positivas. Ao atribuir o papel de condutor dos movimentos aos intérpretes (o célebre quarteto Louis Garrel, Léa Seydoux, Vincent Lindon e Raphaël Quenard) diante da passividade da câmera, Dupieux clarifica a ambivalência estrutural dos níveis de representação. O filme-dentro-do-filme assume um estado de suspensão, transbordando para dentro do filme ao qual pertence.
É nessa zona limítrofe da metalinguagem que O Segundo Ato supera a artificialidade dos procedimentos técnicos a fim de tatear suas questões. Não para diluí-las, mas antes provocar uma dialética, evidenciando o aspecto ficcional e ilusório das construções para alcançar um coeficiente real. A beleza da arte (ou aquilo que a torna original) seria a consequência da organização particular de seus elementos, conforme a compreensão individual do espectador. Ou seja, algo além dos elementos em si, mais concernente ao diálogo criativo entre o artista e o seu receptor.
A cada momento onde se julga que Dupieux está estabelecendo uma definição, logo em seguida o autor a desintegra. A inteligência do seu humor fantástico não é nada econômica e, ao mesmo tempo, extremamente concisa em sua busca pelo cerne da questão. Na conclusão, o fluxo do travelling espectral (numa consideração epistêmica do movimento de câmera ausente de perspectivismo) carrega uma inesperada potência lírica e põe em prática a efetividade retórica de um cineasta muitas vezes erroneamente resumido à apenas um enfant terrible do atual cinema francês.
Daaaaaali! (2024)
de Quentin Dupieux
Se a missão é representar Salvador Dali, Dupieux assume em seu empreendimento o próprio desafio surrealista: o tema se apresenta como uma escolha estética, equiparando o trabalho de significação aos valores plásticos e negando a rasteira da citação fetichista. Menos interessado em se comprovar um connoisseur, Dupieux experimenta o surrealismo de Dali não só como conteúdo, mas também forma e expressão. Contudo, isso não restringe o filme ao modo de representação uniforme de uma imagem que é ao mesmo tempo mental e perceptiva. Em meio a estratégias particulares de interpretação e de relação com o mundo, a lógica do absurdo se manifesta de maneira límpida e concentrada e, ao mesmo tempo, célere e persistente.
Nesta dinâmica, Daaaaaali! não desintegra o mito, dispensa a investigação de suas origens e se poupa da necessidade de suprir demandas rasas de admiradores. O resultado se aproxima de uma intersecção entre o olhar do artista e o do público em relação à obra, alternando entre o choque pela estranheza e o maravilhamento diante dela. Ou seja, uma consciência resultante do encontro entre o pintor e uma ex-farmacêutica iniciante no jornalismo (Anaïs Demoustier).
Ao invés de propor um documento, o interessante a Dupieux é devanear pelas múltiplas possibilidades oferecidas pelo ícone, (re)modelado por vários atores (Jonathan Cohen, Gilles Lellouche, Pio Marmäi e Edouard Baer). Entre idiossincrasias e contradições, o diretor faz da instabilidade a base principal para a construção em abismo. O cinema é como um sonho infindável e a intenção de desvendar uma mente artística sempre encontrará limitações. Na organização diacrônica dos eventos, uma ironia cósmica orienta Daaaaaali!, radicalizando a estrutura a fim de revelar a lucidez de seu conceito.
A partir desse cruzamento pulsante entre o escatológico, o feérico e o hiperbólico, Dupieux produz a comédia mais sagaz do ano, nonsense no sentido libertário do termo. É possível enxergar as influências de Borges na narração, de Buñuel na representação e de Resnais na forma, mas o estilo e o discurso são, patentemente, Quentin Dupieux.
Pas de Vagues/ O Bom Professor (2024)
de Teddy Lussi-Modeste
O final triplo dividido entre a ética, a moral e o existencial (não de forma ramificada mas catalogada mesmo), por mais que busque uma perspectiva diferenciada sobre o trauma, denuncia um entendimento titubeante. Como um filme tão preocupado com os efeitos da injúria acaba se dedicando menos a absorver as sequelas do que a assegurar os indutores do tormento?
Afinal, o ponto central de O Bom Professor não é o incidente entre aluna e professor em si, mas a inversão de papeis quando o acusado é, no fundo, a vítima - ou ainda, o mestre é aquele rebaixado. Como sugere a sequência inicial na sala de aula, a intenção seria evidenciar a necessidade de interpretação dos fatos numa contemporaneidade caracterizada por polarizações e julgamentos sumários.
Na prática, as estratégias de Teddy Mussi-Modeste (mais atinentes ao extradiegético do que à construção da cena) limitam o protagonista à moldura do mártir. É como se o filme necessitasse oprimi-lo tal como o texto o faz. O saldo majoritário dessa sobreposição é a humilhação, algo bem distante do isolamento, do ressentimento ou da apreensão diante do senso de gravidade claustrofóbico da difamação. A própria linguagem de O Bom Professor não põe em xeque as questões normativas de autoridade e/ou responsabilidade, apenas as reforça indiretamente.
Ainda que o tom circunspecto da atuação de François Civil como um alter-ego de Mussi-Modeste possa dissimular, a questão da empatia, ao invés de compartilhada, é continuamente reivindicada. Não só por estratégias banais de identificação como também por certas inversões maniqueistas que atenuam ambiguidades identitárias. O homem padece para que o professor seja bom.