Encerrado o Projeto Truffaut, a ideia é usar o espaço para textos mais longos sobre filmes variados (lançamentos, clássicos descobertos e revisões), deixando o Letterboxd para impressões mais breves. Ocasionalmente devo retornar aos panoramas sobre cineastas, mas o mergulho na obra de François Truffaut era um misto de meta com condição pessoal (falo mais sobre isso aqui), do qual tenho orgulho em concluir. Significa a manutenção de um acordo particular ainda do período pandêmico e é prova de que o infinito percurso de conhecimento sobre o Cinema não foi interrompido.
Que 2024 seja um ciclo prolífico em experiências cinematográficas estimulantes para todos nós!
Eis os meus dez favoritos de 2023, considerando a data de lançamento no Brasil:
Knock at the cabin/ Batem à Porta
M. Night Shyamalan [EUA]
02/02/2023
Boa parte da narrativa põe à prova nossa própria confiança; o suspense deriva menos de sustos do que de uma habilidosa dramaturgia alicerçada em confrontos de perspectivas. É aí que reside o desafio do espectador cético. Se em ‘Sinais’ a moral era “ver para crer”, aqui é necessário acreditar para ver o milagre. Não no paranóico fanatismo religioso do quarteto invasor, nem no pragmatismo de Andrew, mas em algo maior e extremamente delicado: a inocência de Wen. Que é a mesma dos alunos de Leonard, do filho pequeno de Adriane, da irmã mais nova de Sabrina e da criança interior de Redmond, que nunca superou os seus traumas. Há de se crer no zelo dessa inocência como a maneira possível de recuperar o mundo, protegendo-a da corrupção promovida pela intolerância. A possibilidade disso proveria unicamente de uma genuína conexão emocional, onde o afeto se sobrepõe aos laços sanguíneos e à manutenção das convenções sociais.
TÁR
Todd Field [EUA]
26/01/2023
Cate Blanchett é uma atriz tão vaidosamente consciente de sua própria entrega performática (algo na linha Faye Dunaway de atuação) que tal minúcia calculada funciona melhor em papéis que permitem uma dissociação do sujeito, podendo beirar o nível psicótico; já que o ato de atuar é uma opacidade indelével contida no seu desempenho, a evidência da farsa faz jus à composição de um comportamento delirante. Logo, há aqui o encaixe perfeito. Uma vez que Lydia Tár se utiliza de mentiras e artimanhas para manter incólume a perfeição superficial tanto de sua carreira quanto de seu casamento, ao mesmo tempo que Blanchett atua, Lydia finge - e quando o preço do karma é cobrado, a diva entra em crise nervosa, onde a atriz performa em meio a pesadelos, perturbações sonoras e compulsões sexuais.
Roter Himmel/ Afire
Christian Petzold [Alemanha]
02/11/2023
O gesto deixa de ser o elemento central na articulação típica de Christian Petzold para dar lugar ao olhar. Leon é, provavelmente, o personagem principal mais oblíquo de sua obra. Uma vez que o olhar do personagem julga silenciosamente e suas convicções se manifestam em momentos de reações instintivas, a identificação do espectador com Leon se torna delicada, até porque o diretor não cede à simplificação nos questionamentos que o rodeiam. A opção pelo enquadramento mais aberto concerne o posicionamento da visão do próprio espectador perante os micro-eventos. Por isso a inquietação identitária - um dos temas mais caros a Petzold - discretamente adquire um transbordamento diegético ao manifestar-se na relação entre espectador e personagem.
Passages/ Passagens
Ira Sachs [França]
17/08/2023
Sob a moldura do melodrama, um triângulo amoroso que se alicerça no interesse autocentrado de cada um dos seus vértices. Ou seja, não é mais o melodrama essencialista conservador ou o romântico pós-freudiano, mas um tipo contemporâneo já consumido por um certo distanciamento pós-moderno, que se identifica tematicamente com o painel do amor líquido de Zygmunt Bauman. O discurso de Ira Sachs se revela contundente: a fluidez das relações na sociedade líquida colide com a impossibilidade em desapegar das idealizações particulares - um desafio constante ao longo dos tempos, que se torna ainda mais marcante na era onde o consumo e a imagem vêm em primeiro lugar.
خرس نیست/ Sem Ursos
Jafar Panahi [Irã]
11/05/2023
A condição particular de Panahi é o estopim para um tratado sobre as restrições das tradições e os costumes arcaicos de uma realidade social cerceadora; a consequência disso é a redução das fronteiras entre criador e obra em progresso. É um filme sobre arquitetar formas de sobre-existir apesar das restrições do meio (no caso, através da criação cinematográfica). Exercer esse ofício é uma função reconhecida como um ímpeto que se manifesta naturalmente, como se qualquer elemento ao redor tivesse um apelo a ser registrado, algo que brota de maneira tão espontânea como a afeição amorosa entre dois indivíduos. Tais forças sociais gravitacionais, aos poucos, impelem o próprio criador a transformar-se na sua obra.
Close
Lukas Dhont [Bélgica]
02/03/2023
Discordo da opinião acusa CLOSE de explorar o seu protagonista de maneira sádica. O sentimento do medo da rejeição é o que norteia a direção de Lukas Dhont (e é daí também que derivam as questões sobre homofobia, depressão e suicídio propostas pelo enredo). A câmera está sempre colada em Leo, mas a decupagem não lida de maneira impessoal com a progressiva distância entre Rémi e ele, pelo contrário. Nos diversos planos em que o olhar parte de Leo para procurar Rémi pelo ambiente à medida que a separação vai se aprofundando, é como se Dhont insistisse em operar contra as razões externas por enxergá-las em sua natureza intolerante - ou, simplesmente, por ter absoluta fé na genuinidade da ligação entre as crianças. Daí o desnorteio visual a partir do evento trágico que os separa materialmente, desorientação que culmina numa tela preta que é misto de luto e penitência.
John Wick: Chapter 4/ John Wick 4 - Baba Yaga
Chad Stahelski [EUA]
23/03/2023
É preciso se atentar aos intervalos entre os setpieces para sacar que JOHN WICK 4 não cede gratuitamente às prerrogativas contemporâneas de intensificação generalizada. Em resposta ao constante modo de sobrevivência que rege o comportamento dos corpos em cena, a dramaturgia é reduzida ao essencial: seu motivo característico é a face impositiva do decurso do tempo. A simplicidade narrativa permite que os confrontos físicos - estes sim, espetaculares - atinjam uma eficácia catártica, estruturando-se através de preliminares que levam a ação ao paroxismo. Stahelski emoldura a composição do espaço para depois atuar sobre a cosmética da imagem. Ao mesmo tempo, explora uma temporalidade particularmente frenética só depois de estabelecer uma dinâmica própria de eventos, introduzindo a geografia dos espaços e instituindo a relação entre os personagens antes de abrir espaço para a ação.
The Killer/ O Assassino
David Fincher [EUA]
26/10/2023
A expressão formalista que orienta O ASSASSINO através de um regimento empírico continuamente interrompido por demandas externas, culmina numa distância intransponível que resiste ao longo de sua trajetória. O vazio é a solução concreta desta espiral de impessoalidade - o protagonista, ele próprio o modelo arquetípico do anti-herói estóico e metódico (onde a fascinação sóbria de Jean-Pierre Melville e Walter Hill é a influência evidente), flutuando em um universo contemporâneo composto por “não-lugares” e identidades descartáveis, maquinando diversas elaborações falidas. Algo não tão distante do papel de um cineasta, mais precisamente aquele que se vê confrontado por expectativas distintas do que está disposto a entregar. Fincher nunca foi tão autoderrisório e a impassibilidade fisionômica de Fassbender, tão cristalina.
Kuolleet lehdet/ Folhas de Outono
Aki Kaurismäki [Finlândia/ Alemanha]
30/11/2023
FOLHAS DE OUTONO não almeja o status de panfleto ideológico antiburguês através do discurso anti-ilusionista, sendo o oposto de um texto verborrágico e prolixo. O cotidiano desvalido do proletariado é comunicado pela própria estrutura do filme, tornando-se parte dela como o é da existência de seus personagens. O que o longa busca é a possibilidade do romance integrar-se a esta mecânica como uma forma máxima de cooperação. Só a partir disto é que se poderia viabilizar as possíveis mudanças sociais, mesmo que na esfera micro. Kaurismäki reivindica os códigos da idealização romântica sem transfigurá-los; o happy end não é privilégio hollywoodiano e opera de acordo com o regimento do diretor finlandês. É uma aposta pelo direito humano à idealização possível da tábua de salvação, mesmo que aos trancos e barrancos. Um milagre que assume a forma do enlace amoroso, ao mesmo tempo que exige o esforço humano mútuo.
Mato Seco em Chamas
Adirley Queirós, Joana Pimenta [Brasil]
23/02/2023
As heroínas de MATO SECO EM CHAMAS sobrevivem apesar das (im)possibilidades, situações que o próprio filme confronta e ultrapassa através de um dispositivo que reconhece o poder expressivo da imagem, que recorre à estilização e à opacidade com exatidão, e que, principalmente, se apropria do espaço e da duração com o rigor necessário para estabelecer sua narrativa. Por isso se torna possível um discurso que reconhece e adota os paradoxos do Brasil dentro de uma mesma cena (e, nisso, a longitude social Brasília-Ceilândia vira o país inteiro), assumindo múltiplas perspectivas e singularizando-as sem necessariamente carregá-las de significado.