Os 24 filmes favoritos de 2024, parte 1
no fim de ano, como não ceder aos apelos das rabanadas e das listas retrospectivas?
No geral, 2024 foi um ano cinematográfico dos menos frutíferos. Suas poucas preciosidades, contudo, são inestimáveis (e se revelarão na segunda parte deste texto). À medida que o tempo passa, aposto na primeira década dos 2000 como aquela de maior qualidade no século corrente. Foram anos menos auto-centrados, ainda distantes da idolatria da nostalgia e pouco carentes de estímulos incessantes, desses que demandam inúmeros finais dentro de uma mesma narrativa. Estarei eu sendo nostálgico? (risos)
Fazer uma lista é mais do que um mero esforço de compilar aqueles títulos responsáveis por manter a cinefilia ativa nos corações e nas mentes (e falo aqui no sentido etimológico do termo, o do “amor pelo cinema”). Rankear é apostar na intemporalidade e encarar o reflexo das suas próprias preferências, com toda a incoerência e as coincidências inevitavelmente reveladas no exercício. Quanto mais despretensioso o critério, mais aparentes são os sintomas.
Inclusive, simples foi o meu método: destacar filmes munidos de frames que ficaram marcados na retina e/ou sequências fascinantes capazes de mobilizar o espírito. Em meio à ansiedade de um tempo recheado de efemeridades, priorizo aqui aquelas experiências estéticas capazes de me impelir à expressão textual. Trata-se de um ingênuo esforço de tentar contribuir à imperecibilidade dessas manifestações audiovisuais tão fugidias e impactantes (como o são todas as manifestações artísticas, afinal). Para quem quiser prolongar a leitura, inseri em cada título um link direcionando ao texto na íntegra.
Diante da abundância de segmentos que nos permitem o contato com o audiovisual diariamente em qualquer hora ou lugar, considerei como método de corte a data de estreia da obra em território brasileiro (seja nos cinemas ou via streaming). Pareceu-me o menos indevido, mesmo me sentindo na obrigação de destacar algumas menções honrosas àquelas produções ainda sem espaço no calendário de estreias nacional (também a conferir na continuação deste texto). Apesar do ímpeto discricionário, fico satisfeito com a variedade de gêneros, cineastas e tendências nesta lista.
Sem mais delongas… em ordem decrescente, os meus filmes favoritos de 2024:
24) Joker - Folie à Deux (Coringa: Delírio a Dois)
de Todd Phillips [EUA] — estreou em 03/10
O mérito aqui não é o da auto-sabotagem, mas do desmantelamento do mito erigido pelo filme anterior. É nesta veia iconoclasta que se percebe o contrabando ideológico no interior de uma indústria blockbuster em decadência, deslocando a figura do Coringa de um romantismo anti-heróico para uma posição anarquista. Aposto que será valorizado futuramente, como outros fracassos de bilheteria e crítica da História.
23) El auge del humano 3 (O Auge do Humano 3)
de Teddy Williams [Taiwan, Argentina, Portugal] — estreou em 15/08
Propondo uma investigação ontológica através da própria fabricação da imagem, Williams vai além de um recorte do mundo. A densidade de El auge del humano 3 é estabelecida conforme os passos da busca por uma clareza de cosmovisão. A consciência prática das incessantes possibilidades renovadoras do cinema digital convive com uma sensação de curiosidade que remete aos primórdios desta invenção óptica.
22) Il sol dell'avvenire (O melhor está por vir)
de Nanni Moretti [Itália] — estreou em 04/01
A transgressão de Moretti não está no otimismo declarado do título (O sol do futuro, no original) pintado em rubras letras garrafais já na abertura. Está na dispensa dos extremos, na partilha da compreensão pelos anseios e na recusa da demanda de identificação que é mero reforço do ego. O filme político-poético necessita do filme romântico-musical para existir, assim como o profissional e o particular se retroalimentam na existência do protagonista Giovanni.
21) Furiosa
de George Miller [EUA] — estreou em 23/05
Testemunhamos aqui a confirmação de um cinema de ação mais cristalino, de ferocidade anti-didática, lacônico em suas descrições e capaz de uma excitação hipnótica. Ou ainda, um cinema visualmente poético. É inevitável recorrer a hipérboles para traduzir Furiosa porque assim é sua natureza.
20) The first omen (A primeira profecia)
de Arkasha Stevenson [EUA] — estreou em 04/04
Stevenson propõe um sentido litúrgico orientado por sussurros, elipses, simetrias, reflexos cinéticos e símbolos. A Primeira Profecia confirma, em forma e fundo, sua proposta de originalidade em relação aos pontos-de-vista já adotados pela velha franquia. Em seu longa de estréia, a diretora demonstra domínio sobre a proeza de um certo tipo de mistério que é estimulante e, ao mesmo tempo, incômodo.
19) O Dia Que Te Conheci
de André Novais Oliveira [Brasil] — estreou em 26/09
Para além das questões trazidas pela temática, a empatia e a identificação junto ao casal vivido por Renato Novais e Grace Passô são consequências da relação metabólica entre elasticidade e solidez que visa à compreensão dos personagens. O Dia Que Te Conheci torna palpável a diferença entre conviver e conhecer o outro.
18) Past lives (Vidas passadas)
de Celine Song [EUA/Coréia do Sul] — estreou em 25/01
A liquidez que orienta as relações pós-modernas não seria algo meramente fugaz; ela também poderia propor uma determinada ressurgência beneficiada pelos efeitos da distância temporal, cujo retorno é tão impactante quanto o movimento das ondas. O filme de Song parte da banalizada premissa dramática do triângulo amoroso para propor uma analogia universal. O olhar abrangente da cineasta oferta compreensão perante todos os vértices.
17) Simple comme Sylvain (A natureza do amor)
de Monia Chokri [Canadá] — estreou em 25/04
Sua grande qualidade é saber lidar com a diferença entre a excitação pela busca e o reconhecimento dela como uma fantasia em si mesma (caso as sobrepusesse, o filme obliteraria o fascínio da primeira em prol da moralidade da segunda). Para Chokri, a fantasia não é mera alienação, mas a superação provisória de um estado recorrente.
16) His three daughters (As três filhas)
de Azazel Jacobs [EUA] - estreou em 20/09
O epitáfio de As Três Filhas é a fantasia cinematográfica capaz de representar uma imagem-mental, pondo o desejo de proximidade em circuito apesar das sombras inelutáveis da ausência.
15) The room next door (O quarto ao lado)
de Pedro Almodóvar [EUA/Espanha] — estreou em 24/10
Nos enquadramentos impecáveis de Almodóvar brota o milagre da estética existencial. Em tempos fatalistas de neoliberalismo avançado e extremas-direita em voga, a atenção do realizador se volta para a matéria fina da vida.
14) Trap (Armadilha)
de M. Night Shyamalan [EUA] — estreou em 08/08
É na oscilação entre as dinâmicas de identificação e auto-estranhamento que, partindo das diretrizes psicológicas hitchcockianas, Armadilha se aproxima mais do universo de Brian de Palma: a percepção obcecada pela formatação das aparências, distraidamente ignorando a proximidade daquilo que as põe em risco.
13) Greice
de Leonardo Mouramateus [Brasil, Portugal] — estreou em 18/07
Greice assume um prazer pelo ato de romancear (ou ainda, romanceia com prazer), numa espécie de movimento reflexivo em relação à composição da personagem-título. O carisma do elenco, a fluência do texto e a economia da narrativa visual dão dinamismo ao exercício estimulante de Mouramateus.
12) Et la fête continue! (E a festa continua!)
de Robert Guédiguian [França] — estreou em 18/04
A complexidade do discurso não está na dramaturgia isolada dos personagens ou nos posicionamentos ideológicos perante o fundo social, mas na formatação que os integra em um conjunto homogêneo e, ao mesmo tempo, atento às particularidades de cada elemento (seja ele humano ou conceitual).
11) Smile 2 (Sorria 2)
de Parker Finn [EUA] — estreou em 17/10
A consciência formalista de Finn é atenta à cosmética dos espaços e à composição das imagens. Não se trata, contudo, de mero virtuosismo decorativo. Estabelecida como elemento primordial, a recorrência neurótica propõe uma atmosfera que contamina a cena e direciona o caos como uma força a ser distendida.
Na próxima postagem, os dez primeiros lugares e uma menção honrosa. Até logo!