Projeto Truffaut I: “Os incompreendidos”
“Les 400 coups”, FR/1959. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Georges Charlot. Roteiro: François Truffaut, Marcel…
“Les 400 coups”, FR/1959. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Georges Charlot. Roteiro: François Truffaut, Marcel Moussy. Fotografia: Henri Decaë. Música: Jean Constantin. Montagem: Marie-Josèphe Yoyotte. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Albert Rémy, Claire Maurier, Patrick Auffay, Guy Decomble.
Lá pela metade de “Os incompreendidos”, há uma cena em que o protagonista Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), na primeira fuga de casa, tenta ajudar uma moça a encontrar o seu bichinho de estimação que fugiu, mas é afastado por um transeunte com segundas intenções pra cima da jovem, que quer aproveitar da fragilidade da situação. Uma cena aparentemente solta da narrativa, que poderia servir apenas para as cameo luxuosas de Jeanne Moreau e Jean-Claude Brially, mas que revela bastante sobre o retrato que François Truffaut faz deste menino, de si próprio quando criança, quiçá da infância como um todo. Aos 13 anos de idade, Doinel é como um animalzinho fugidio cerceado pelas castrações das instituições sociais. Um ser em vias de ser corrompido pela domesticação, que preza instintivamente pela liberdade como forma de vida: por isso a busca constantemente, pelas ruas de Paris e pela ânsia em conhecer o mar, muito além das escolas, dos reformatórios ou dos claustrofóbicos apartamentos médio-burgueses. O zoom no rosto de Antoine Doinel em seu habitat natural, no frame final do filme, é o mais belo registro da liberdade que o cinema já fez.

Sendo François Truffaut um diretor e roteirista cujos sentimentos e relações dos personagens lhe são mais caros do que outras investigações intelectuais, é evidente que “Os incompreendidos” se desdobra por meio dos elos de Antoine Doinel. Com os pais (Albert Rémy e Claire Maurier), é uma via de mão-dupla complicada — principalmente com a Sra. Doinel. Inicialmente, ele a venera, mas depois de flagrá-la na rua em um furtivo amoroso com o seu chefe, tudo muda. É sintomático que, no dia seguinte, quando precisa se explicar no colégio por ter cabulado aula, num ímpeto, Doinel diz que sua mãe morreu. Tal invenção é menos uma mentira do que uma constatação moral de que seu lar está desfeito e, mais perto do final do filme, vamos descobrir que a busca por uma unidade familiar era algo almejado já há tempos. Seu único amigo, René (Patrick Auffay), é o seu porto-seguro e companheiro infalível, que o abriga em sua casa sempre que possível e o acompanha em suas peregrinações pelas ruas e (muitas) sessões de cinemas parisienses. O hábito de Truffaut pontuar seus filmes com pormenores autobiográficos já começa nesta obra seminal: filho de uma mãe solteira de 17 anos, teve uma relação complicada com ela e com o padrasto, foi criado pela avó durante a infância e faleceu sem conhecer o pai biológico. René é o retrato de seu melhor amigo na pré-adolescência, Robert Lachenay, com quem chegou a fundar um cineclube que faliu rapidamente.
Com a amplitude visual usufruída pela da lente de câmera anamórfica Cinemascope, Truffaut conduz as externas em Paris basicamente por meio de reenquadramentos por movimentos de panorâmica em planos longos, resultando numa fluidez que transmite uma grande sensação de liberdade, em oposição aos enquadramentos mais fechados na escola e no pequeníssimo apartamento de Antoine Doinel, onde os atores são geralmente esquadrinhados por molduras e a decupagem é mais ativa. A alusão à prisão é um constante motivo visual em “Os incompreendidos”, da escola com suas enormes grades na porta de entrada ao cantinho insalubre em que Antoine dorme em casa. Essas associações ficarão mais explícitas ao rimarem imageticamente com a breve prisão do menino e a consequente temporada no reformatório. Não à toa os créditos iniciais são apresentados tendo ao fundo esse retrato espontâneo de Paris: é a liberdade que já se introduz como tema principal do filme, irá se metamorfosear na diversão das cenas em locações de feiras, cinemas, bares e parques e vai se afirmar como primordial na conclusão, no contato imediato com a natureza. A fotografia em preto-e-branco torna o inverno nas ruas parisienses à noite mais evidente: as perambulações do fugitivo Antoine Doinel, que rouba uma garrafa de leite e se encolhe na gola alta do pulôver para se aquecer, o assemelha a um bichano que zanza pela cidade, mas se enrosca no rabo para fugir do frio. Com inegável inspiração nos diretores Jean Vigo (em “Zero de Conduite”, 1933, de onde “furtou” a cômica cena em plongée da aula de educação física pelas ruas de Paris) e Vittorio de Sica (em “Sciuscià”, 1946), Truffaut filma de maneira instintiva as crianças, simplesmente a observá-las como se fosse uma delas, sem uma complacência afetada ou um julgamento pedagógico coercivo. O aprofundamento no particular leva ao universal: o registro dos minuciosos detalhes comportamentais das crianças na sala de aula, tão banais e típicos, e por isso mesmo, tão relacionáveis, gera uma inevitável identificação da memória afetiva de um espectador já adulto. É o tipo de coisa que é tão singelo que só pode ser criado pela própria vida.

A iconografia referencialmente explícita no momento em que René e Antoine roubam do lobby um cinema uma fotografia de “Mônica e o desejo”, filme de Ingmar Bergman, evoca desde já, a famosa cena final de “Os incompreendidos”: o ápice em que o protagonista quebra a quarta parede como forma máxima de expressão alude ao mesmo movimento que a Mônica bergmaniana faz na metade do filme e que afetou o jovem crítico Truffaut imensamente. Há também a vela que Antoine Doinel acende para o escritor Honoré de Balzac, que apesar de gerar um pequeno incêndio no apartamento, como um milagre, dá fruto ao único momento genuinamente feliz do menino com os pais: os três vão ao cinema assistir a um filme de Jacques Rivette. A iconografia que cita visualmente os mestres de inspiração se revelará um motivo visual e narrativo recorrente na filmografia de Truffaut, assim como a visão da criança como elemento puro e indomesticável, a câmera que endeusa a figura da mulher numa relação quase edipiana, o protagonista com a necessidade de provar que é digno de ser amado e a sala de cinema como refúgio, meio de ascendência para uma realidade superior.

É curioso também como certos frames de “Os incompreendidos” são tão especificamente proféticos em sua mise en scène que menos apontam uma reiteração do que antecipam futuros trabalhos de François Truffaut, como “Jules e Jim” (no parque, Antoine e René caminham de mãos dadas com uma menina no centro), “Fahrenheit 451” (René destrói o guia Michelin do pai de Antoine, página por página, para cuspi-las nas pessoas à distância por meio de uma carabina), “A sereia do Mississippi” (a já citada cena da ida ao cinema é replicada no filme posterior quando Catherine Denueve e Jean-Paul Belmondo saem para assistir a “Johnny Guitar”) e “Na idade da inocência” (os planos focados nas reações de Antoine, René e um enorme grupo de crianças assistindo à uma peça de marionetes). A metalinguagem do ofício de fazer cinema, de “A noite americana” (1973), também está antecipada aqui. Há uma divertida cena em que Antoine e René, numa feira de diversões, entram num brinquedo que remete a um Zootrópio gigante, máquina de 1834 que produzia imagem em movimento ao apresentar desenhos numa tira de papel que giravam através de um tambor rotativo, antes mesmo da invenção do filme. Os três amantes do cinema tornam-se, eles mesmos, moving pictures. Quem é o terceiro? O próprio Truffaut, fazendo um cameo a la Hitchcock. É a sequência mais inventivamente formal de “Os incompreendidos”, onde o efeito sensorial do espetáculo anti-gravidade eleva a significação do cinema como válvula de escape.

Na terça parte, o filme abandona de vez a atmosfera gazeteira e seu desenvolvimento narrativo fica mais grave. São passagens do roteiro também autobiográficas: após ser pego por roubar uma máquina de escrever, Doinel é levado para a polícia pelo próprio padrasto, que o entrega como se devolvesse um bicho de estimação que não se adaptou à vida doméstica. Após uma noite encarcerado ao lado de prostitutas e trapaceiros, o garoto é levado para o reformatório. Como na fracassada tentativa da visita de René a Antoine, o amigo Robert Lachenay levava exemplares da revista Cinemonde para Truffaut durante sua clausura. “Os incompreendidos” encaminha-se para a conclusão: no reformatório, Antoine é entrevistado por uma psicóloga. A cena é filmada num plano médio fixo, sem contracampo. Não vemos a imagem da mulher, apenas a ouvimos, e Antoine responde suas questões olhando para fora do campo, mas de frente para o espectador. Nessa conversa, informações essenciais sobre a sua primeira infância nos são reveladas, ainda que o garoto assuma que minta às vezes (porque se ele contasse a verdade, ninguém acreditaria mesmo). Instintivamente Truffaut faz uso da poderosa ferramenta de identificação cinematográfica primária, identificada pelo teórico francês Christian Metz, que trata da identificação do espectador com o próprio olhar da câmera, com a instância que dá-a-ver. Para a nossa percepção, nessa altura da história, já não há diferença entre as verdades e mentiras de Doinel: nossa identificação é completa. Truffaut revelou que sabia que o espectador se identifica com o rosto com o qual cruza com mais frequência na tela, com o ator que é mais fotografado de perto; essa relação da câmera com Jean-Pierre Léaud é reforçada nos últimos dez minutos da metragem. O derradeiro plano de fuga para o mar de Antoine Doinel é motivado por um rapaz fugitivo que é apanhado e levado de volta para o reformatório. Na solitária, com o rosto severamente castigado, ao reencontrar os colegas de confinamento por trás das grades, ele diz que faria tudo de novo por mais cinco dias de liberdade.
“Os incompreendidos” é dedicado à memória de André Bazin, editor-chefe da Cahiers du Cinéma, que mais do que amigo de Truffaut, foi seu mentor profissional e figura paterna que, junto com a esposa, o adotou em sua casa por dois anos. Bazin faleceu em Paris, no primeiro dia das filmagens. Truffaut estava na Normandia, rodando a cena final de Doinel e, ao retornar, ficou profundamente abalado. Nesse período, sua esposa estava grávida de sua primeira filha, Laura, que viria a nascer duas semanas após a conclusão das filmagens. Ao mesmo tempo em que o diretor fazia esse acerto de contas in loco com a infância por meio de seu primeiro longa-metragem, as grandes mudanças na sua vida pessoal já sinalizavam uma transição ainda maior. “Os incompreendidos” catapultou Truffaut, aos 27 anos, para o mundo: ele ganhou o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes e foi indicado ao Oscar pelo Roteiro, o longa foi eleito o Melhor Filme Estrangeiro pela crítica de Nova York e o 5º melhor filme do ano pela Cahiers du Cinéma. Elogiado por Akira Kurosawa, Fritz Lang e Orson Welles, tornou-se um grande sucesso de bilheteria mundial e entrou para o cânone do cinema como a obra que despertou a atenção da crítica e do público para os métodos espontâneos e a linguagem inventiva e dinâmica da Nouvelle Vague. O cinema torna-se tão vasto quanto o mar para François Truffaut.

“Jamais serei capaz de fazer um outro filme tão eficaz” (François Truffaut, 1962).