Projeto Truffaut II: “Atirem no pianista”
“Tirez sur le pianiste”, FR/1960. Direção: François Truffaut. Produção: Pierre Braunberger. Roteiro: François Truffaut, Marcel Moussy…
“Tirez sur le pianiste”, FR/1960. Direção: François Truffaut. Produção: Pierre Braunberger. Roteiro: François Truffaut, Marcel Moussy, baseado no romance de David Goodis. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Georges Delerue. Montagem: Claudine Bouché, Cécile Decugis. Elenco: Charles Aznavour, Marie Dubois, Nicole Berger, Michèle Mercier, Albert Rémy, Claude Heymann.
Os créditos iniciais de “Atirem no pianista” não mostram nem o piano, nem o pianista, mas as teclas internas do instrumento e a música que provêm delas. Em uma entrevista de 1962, François Truffaut disse que “Os incompreendidos” é um filme Hitchcockiano, porque as pessoas se identificam com Antoine Doinel já na primeira vez em que ele aparece na tela e assim seguem até o final. Pois o seu filme subsequente, “Atirem no pianista”, clama por sua filiação a “Um corpo que cai” (1958). A presença de dois dos motivos prediletos de Alfred Hitchcock estão presentes aqui: a presença do duplo, no protagonista vivido pelo cantor Charles Aznavour, e a doutrina do eterno retorno nietzscheano. Camuflado como Charlie, um discreto pianista de um bar noturno, Edouard esconde seu célebre passado, cujo sucesso foi interrompido por uma tragédia pessoal. Ao longo do filme, o personagem será obrigado a lidar com as forças do universo que implicam para que os fatos retornem da mesma maneira em vários momentos de nossa existência. A corda que liga Edouard a Charlie não é apenas as do teclado do piano, mas também o seu fluxo de consciência, que nos revela as ansiedades, inseguranças e medos do artista que, como música, saltam aos nossos ouvidos.

O roteiro é baseado no livro hard-boiled “Down there” (1956), do escritor obscuro David Goodis. Após o êxito literário de “Dark passage”, que se tornou filme noir nas mãos do diretor Delmer Davies, Goodis foi recrutado como roteirista em Hollywood. Seu casamento não resistiu às mudanças e Davies caiu em depressão profunda; “Down there” é dessa fase melancólica. De maneira típica nas adaptações do roteirista Truffaut, ele pegou o original e utilizou só o que o interessava. O plot serviu como brecha para uma subversão generalizada dos gêneros clássicos Hollywoodianos, menos uma paródia do que um pastiche apaixonado. Como o disfarce de Edouard, na narrativa, o fake transborda.
A sequência inicial sugere uma perseguição de filmes de gângsters, com suas ruas escuras e molhadas, até que o fugitivo dá de encontro com um poste, cai no chão e é auxiliado por um passante simpático, com quem vai batendo papo tranquilamente até chegar ao seu esconderijo. Na falsa atmosfera do noir, a prostituta Clarisse (Michèle Mercier) poderia ser a femme fatale, mas é uma mulher de bom coração com jeito para cuidar de crianças. É um arquétipo subvertido, assim como o próprio anti-herói loser Edouard/Charlie, que é menos Humphrey Bogart do que Edward G. Robinson, e a proatividade quase agressiva da mocinha Lena a faz mais Katharine Hepburn do que Grace Kelly. Há também alusões adulteradas à screwball comedy (a dupla de gângsters é tão atrapalhada que todo sequestro feito por eles vira um passeio divertido com as vítimas, ao ponto delas fugirem com tranquilidade), ao drama criminal (a esposa do dono do bar assassinado encobre o culpado) e ao western (o enredo se conclui num tiroteio no ermo de uma floresta nevada), mesmo que Charlie, como um bom protagonista Truffautiano, seja contra a violência e só recorra a armas por autodefesa. As ironias narrativas de François Truffaut assumem o deboche explícito na cena em que, antes de fazer amor com a prostituta, o pianista cobre os seios dela com o cobertor. Reprimindo-a, afirma: “No cinema americano se faz assim!”.

Charlie brinca que aprendeu com o seu pai que “as mulheres são todas iguais… saiu com uma, saiu com todas”; apesar do tom jocoso, é uma lição que amarra o seu destino com força centrífuga. Mesmo tímido e inseguro, Charlie se envolve com Lena (Marie Dubois), garçonete do bar noturno em que ambos trabalham. Ela revela que sabe do passado dele como Edouard, motivando, como todo bom noir, um flashback que explicita o passado do protagonista. Nessa época, casado com a também garçonete Theresa, o ainda desconhecido pianista conhece o empresário Lars Schmeel (Claude Heymann) durante um almoço no restaurante onde ela trabalhava. Disposta a ajudar Edouard, e sem que ele saiba, Theresa comete um sacrifício que sairá bem caro, apesar de dar certo. Ela cede às investidas de Lars para que seu marido ganhe uma audição. Nessa passagem, Truffaut executa mais uma astúcia: “Schmeel” trata-se de uma referência direta a Lars Schimidt, produtor sueco com quem a atriz Ingrid Bergman se envolveu durante o fim do escandaloso casamento com o diretor neorrealista Roberto Rossellini, que o cineasta francês venerava. Truffaut também deixa escapar algo de pessoal na relação de Edouard com o sucesso. O pianista, apesar da carreira de êxito, tem um ego frágil que se abala com a menor crítica. Ele carece de elogios constantes e não tem o menor carisma para lidar com os apelos da imprensa. A união com Theresa, já estremecida pelo estresse incontrolável dele e pelo enorme remorso dela, terá um desenlace fatal. Após saber de tudo isso, Lena decide apoiar Charlie para que ele volte a ser um pianista famoso… assim como Theresa no início do casamento. Lena quer que Charlie torne a ser Edouard. Quando os acasos da história passam a exigir um suporte cada vez mais incondicional de Lena, ainda que a dedicada paixão dela não aceite obstáculos, o pianista faz de tudo para impedir uma nova tragédia.

A aura deste filme de Truffaut que remete imediatamente ao estilo de “Acossado”, de Jean Luc-Godard, cujas filmagens terminaram dois meses antes de “Atirem no pianista” ser rodado. Isso provém da fotografia de Raoul Coutard, que trabalhou em ambos. Coutard filmou com Dyaliscope, a versão francesa do Cinemascope, buscando assim uma imagem mais profissional que rimasse com o espírito de subversão das convenções clássicas americanas. Como um exemplar oficial da Nouvelle Vague, “Atirem no pianista” foi rodado em locações externas, com iluminação natural, e adota uma edição frenética que utiliza jump-cuts e quebra a regra do eixo de 180º diversas vezes. A mise en scène cita diretamente Abel Gance: a visão policromática do efeito Polyvision, que envolvia três projetores para criar um efeito panorâmico em 1927, é repetida aqui quando Truffaut aponta para nós o personagem Plyne (Serge Davri) como o dedo-duro que entregou Charlie para os gângsters. Há acenos também para Jean Renoir (a encenação frequentemente faz o uso de janelas para emoldurar personagens dentro do frame), além de momentos com uma alta profundidade de campo fluida e neutra, como William Wyler fazia (inclusive, a fatídica briga entre Charlie e Plyne no beco remete bastante a algumas cenas de “Dead end” (1937), dirigido por ele). A aceleração das imagens e o excesso de referências funcionam como ferramentas visuais que potencializam o jogo de subversão narrativo executado por Truffaut, que pede um espectador afeito a cinefilia. Inclusive, como em “Acossado”, temos também uma referência direta à Cahiers du Cinéma (revista onde Godard e Truffaut trabalharam como críticos), cujo enorme banner aparece na traseira de uma kombi.

Atribuem a Oscar Wilde o aforismo “Não atire no pianista… ele está fazendo o melhor que pode”. A arte é sempre o único refúgio possível dos personagens de Truffaut. Por isso, ao final de tudo, nosso protagonista retorna ao bar não para ser nem Charlie, nem Edouard, mas apenas o pianista. No caminho do camarim para o piano, ele é apresentado pela proprietária do bar à jovem nova garçonete do recinto. Ciente da fatalidade de um destino irreversível, ele caminha para o banquinho, senta e começa a tocar. Num niilismo reticente, Truffaut mira a câmera para um close-up embaçado como os olhos marejados do nosso desiludido personagem, e clama: por favor, atirem no pianista antes que ele faça tudo outra vez.

“Com a tendência que eu tenho para os anti-heróis e as histórias de amor agridoce, sinto que seria capaz de fazer o primeiro filme de James Bond que perderia dinheiro. Alguém gostaria de estar envolvido nisso?” (François Truffaut)