Projeto Truffaut III: “Jules e Jim: Uma mulher para dois”
“Jules et Jim”, FR/1962. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berber. Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault…
“Jules et Jim”, FR/1962. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berber. Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault, baseado no romance de Henri-Pierre Roché. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Georges Delerue. Montagem: Claudine Bouché. Elenco: Jeanne Moreau, Oskar Werner, Henri Serre, Vanna Urbino, Serge Rezvani, Marie Dubois.
Em meio ao otimismo coletivo e a excitação cultural da Belle Époque parisiense, o austríaco Jules (Oskar Werner) e o francês Jim (Henri Serre), grandes amigos e parceiros de boemia, conhecem a jovem francesa Catherine (Jeanne Moreau). Ambos ficam estupefatos porque Catherine possui exatamente o mesmo sorriso de uma estátua pela qual os dois haviam se encantado, que fora apresentada pelo também boêmio e dândi Albert (Serge Rezvani). Mais do que um sorriso ao mesmo tempo sereno e enigmático, Catherine é a própria euforia viva da beleza que Jules e Jim buscavam em diversos artifícios da Paris do começo do século XX.
Apesar do título original, o filme de François Truffaut é Catherine — e, por isso mesmo, é um hino à vida não meramente contemplada, mas de fato vivida. “Jules e Jim” é uma das obras em que a idealização da mulher como motivo visual e narrativo é mais evidente, ainda que tal característica percorra toda a filmografia deste realizador irremediavelmente apaixonado pelo feminino. Mulher independente, Catherine reivindica para si o direito de construir o próprio destino (quiçá escolher até a hora e a maneira de sua morte), ancorando-o unicamente na liberdade para fazer o que quiser. Absolutamente certa do potencial de seus adjetivos femininos, ela não se inibe em travestir-se de homem, caso precise de um cadinho mais de liberdade do que as restrições machistas da sociedade européia da época são capazes de lhe permitir. Com um quê da insolência meiga de Brigitte Bardot (em “E Deus criou a mulher”) e da impunidade sedutora de Marilyn Monroe (em “Nunca fui santa”, de onde Truffaut surrupiou algumas falas para a sua personagem), Catherine é um desses típicos espíritos inquietos que vivem intensamente cada momento, e, por isso mesmo, são também imprudentes, egoístas e impulsivas. Mas o turbilhão da vida transborda tanto em sua alma passional que só um amor é incapaz de dar conta desta mulher. Quando a paixão dá uma leve esmorecida, ela vai buscar uma nova fonte para manter acesa a sua exuberância voraz: seja Jules, Jim ou — por que não? — Albert.

No auge da Nouvelle Vague, Truffaut recria a euforia da Idade de Ouro francesa por meio de cortes rápidos, saltos na montagem e interpolação entre os formatos da tela, firmando sua mise-en-scène numa encenação planimétrica que remete ao visual dos curtas dos irmãos Lumière. É tudo tão acelerado que certos congelamentos de frames são evocados para os próprios personagens recuperarem o fôlego. Contudo, um choque atinge visualmente a narrativa quando a Primeira Guerra Mundial explode: cinejornais da época nos indicam a severidade do acontecimento que separa Jules e Jim nos dois lados do front. A inserção dessas imagens, por sua natureza documental, ampliam o impacto psicológico no espectador. Tão desestabilizada quanto nós, Catherine percebe que a vastidão da natureza é o único ambiente capaz de comportar a sua liberdade. A derrota da Tríplice Aliança traz Jules de volta da guerra: Catherine se casa com o austríaco e os dois se refugiam no campo, próximo ao rio Reno. A montagem do filme desacelera e os quadros se tornam mais abertos: a duração média dos planos aumenta de forma significativa.
Como nos longas de Jean Renoir, os elementos naturais aderem à encenação de “Jules e Jim” como personagens. Eles preenchem os amplos quadros filmados em Cinemascope, estabelecendo um diálogo com a dinâmica física de Catherine, que levita na lente da câmera fixa de Truffaut, encantada por seu joie de vivre. Ao contrário de Brigitte Bardot e de Marilyn Monroe, que serviam à narrativa como objetos eróticos destinados tanto para os personagens quanto para os espectadores, Truffaut não espetaculariza o corpo de Jeanne Moreau por meio de uma decupagem onipotente de fascinação fetichista. Nevoeiro, fogo, vento, água: como um cataclisma, Catherine se une visualmente a tais elementos.

Quando Jules recebe uma carta de Jim e, em resposta, o convida para visitá-los, Catherine percebe a oportunidade de reviver os alegres tempos. O passar dos dias torna o convite de Jules em uma instância por parte de Catherine: Jim passa a morar com eles, deixando sua noiva Gilberte (Vanna Urbino) sozinha em Paris, em modo de espera. O código é estabelecido através da novela de Goethe, “As afinidades eletivas”, em que a pacata existência de um casal que vive numa propriedade idílica é perturbada com a chegada de dois visitantes e a vulcânica química sexual desenvolvida entre o quarteto. Jules empresta o livro a Jim. Sem saber, Catherine (que tem bastante da intempestividade sexual do protagonista de Goethe), pede o livro emprestado a Jules. Como um termo de guarda compartilhada, o austríaco, já ciente da atração entre eles, pede a Jim que o entregue à esposa ao entardecer. Ao receber o livro, Catherine se entrega ao francês.
Apesar do enredo se firmar nas relações entre o trisal, “Jules e Jim” não é uma obra libertina; não há uma cena de sexo sequer em sua metragem. Para Truffaut, a sugestão é mais potente do que a exposição, por isso utiliza Goethe como alavanca para a sequência mais sensual do filme. A presença ativa de livros na engrenagem narrativa é um dos traços marcantes da filmografia do realizador, amante da literatura desde criança: “Minha mãe não suportava barulho. Ou melhor, ela não suportava a mim. Eu deveria ficar sentado lendo… Não podia brincar ou fazer barulho, devia fazê-la esquecer de que eu estava ali”.

Escrito por Truffaut em parceria com o dialoguista Jean Gruault, o roteiro é baseado no livro homônimo de Henri-Pierre Roché, a primeira obra desse escritor já então septuagenário. Se “Jules e Jim” foi interditado por meses na Itália, além de condenado pela Igreja Católica nos Estados Unidos, provavelmente chocaria ainda mais o conservadorismo da época se descobrissem que a história deste senhor era autobiográfica, tratando da antiga amizade de Roché com o escritor Franz Hessel, casado com a tradutora Helen Grund. Truffaut achou um exemplar por acaso num sebo em Paris e ficou encantado. Ele tentava desenvolvê-lo desde antes de realizar “Os incompreendidos” (1959), mas esbarrava tanto na censura, que encrencou com o tema, quanto na própria paixão pelo livro, temendo não saber adaptá-lo da forma correta. “Jules e Jim” foi filmado com bastante improvisações de cena, mas muito do texto original consta na narração em off do filme (a voz é do ator Michel Subor), que, num distanciamento quase Brechtiano, estabelece um vínculo entre o público e os personagens, repelindo possíveis julgamentos morais por meio de uma confidente ironia. Para François Truffaut, o método ideal de adaptação é fazer uma espécie de leitura filmada, alternando passagens que podem ser visualmente representadas de maneira eficaz, com diálogos e cenas narrativas, através de comentários em off.

No segmento final, Jules e Catherine vão ao cinema e, por acaso, encontram Jim na mesma sessão. Mais uma vez, François Truffaut subverte a ideia da sala de exibição como fuga da realidade: o cinejornal nos revela a brutalidade de um mundo onde simpatizantes nazistas queimam livros. Uma segunda guerra mundial está por vir. Jules e Jim lamentam a situação sentados, de braços cruzados. A discrepância em relação ao passado idílico é tão dolorosa para Catherine que ela definitivamente não aceita o conformismo dos homens. Num derradeiro ato de liberdade, Catherine decide cair fora deste mundo, aturdindo não só os dois amigos, como nós também.

O escritor Henri-Pierre Roché faleceu antes das filmagens de “Jules e Jim”, mas estava bastante satisfeito com a escalação de Jeanne Moreau. Catherine se tornaria um dos desempenhos mais emblemáticos da carreira da atriz francesa. O espírito libertário da personagem tem muito da própria intérprete e ambas possuem uma forte personalidade que suscita mais admiração do que amor; mas ao contrário do prematuro fim de Catherine, Jeanne Moreau, faleceu com 89 anos muito bem vividos. A atriz favorita de Orson Welles, Michelangelo Antonioni e Louis Malle foi homenageada em vida no Oscar, ganhou prêmios pelo conjunto da obra nos Festivais de Cannes, Berlim e Veneza e teve uma carreira musical de êxito, performando ao lado de Frank Sinatra no Carnegie Hall. Helen Grund, a Catherine da vida real, recusou o livro de Roché, mas disse que Moreau encarnou seus sentimentos de maneira cirúrgica. Tanto Catherine quanto Helen sobrevivem por meio dos frames do legado eternizado de Moreau, símbolos da liberdade da mulher moderna, recém-emancipada na revolução sexual dos anos 1960. Mulheres que não são amorais, mas que constroem uma moral própria, fundada na autonomia e na ausência de julgamentos. Por meio de Catherine, “Jules e Jim” é uma lírica a seres humanos com plena ciência da efemeridade da vida e que por isso precisam ser livres para aproveitá-la a cada instante.

“Sempre tive uma relação muito difícil com minha família, em particular com minha mãe, e somente há alguns anos é que percebi que fiz “Jules e Jim: Uma mulher para dois” para agradá-la e conseguir a sua aprovação. O amor tinha uma grande importância na vida dela e, como “Os incompreendidos” fora para ela como que uma apunhalada nas costas, fiz “Jules e Jim: Uma mulher para dois” na esperança de mostrar que a compreendia” (François Truffaut, 1978).