Projeto Truffaut IX: “O garoto selvagem”
“L’Enfant sauvage”, FR/1970. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado nos…
“L’Enfant sauvage”, FR/1970. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut e Jean Gruault, baseado nos relatórios de Dr. Jean Marc Gaspard Itard. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Antonio Vivaldi. Montagem: Agnès Guillemot. Elenco: François Truffaut, Jean-Pierre Cargol, Françoise Seigner, Jean Dasté, Claude Miller.
A dedicatória ao ator Jean-Pierre Léaud na abertura não deixa dúvidas: em “O garoto selvagem” François Truffaut acena para onze anos atrás, precisamente na direção de “Os incompreendidos” (1959), seu longa-metragem seminal. Ambos os filmes compartilham o tema da criança vista como ser humano puro, porém indômito, com dificuldades de adequação em um mundo criado por e para adultos. E se a construção do garoto Antoine Doinel (o protagonista interpretado pelo então jovem estreante Léaud no filme de 1959) é um retrato confessional da própria infância atribulada de Truffaut, “O garoto selvagem” parte deste ponto para tecer uma reflexão particular sobre o papel paterno no desenvolvimento infantil. Aos 38 anos, o cineasta se projeta menos na criança indisciplinada do que no adulto responsável pela sua educação. Além de diretor e roteirista do filme, François Truffaut desempenha pela primeira vez o papel de ator ao encarnar o Dr. Jean Itard, personagem verídico que designou-se a adotar e educar o “selvagem da floresta de Aveyron” — codinome pelo qual ficou conhecido o garoto órfão do título — que cresceu isolado de outros seres humanos e foi acidentalmente descoberto por camponeses desta aldeia francesa em 1798.

Uma sequência tipicamente Truffautiana inicia o “O garoto selvagem”: um grupo de caçadores bárbaros persegue o menino (Jean-Pierre Cargol) em meio à floresta. Depois de capturado, ele é internado em um instituto de crianças surdas-mudas, onde é importunado pelos funcionários do local, que gozam de sua atitude animalesca e o utilizam como atração para parisienses burgueses dispostos a pagar para vê-lo. Se no prólogo o movimento de zoom out da lente, ao tornar os planos do filme cada vez mais abertos, insere o garoto como elemento inapto da natureza (sendo esta o espaço propício à sua liberdade, como Antoine Doinel nas ruas de Paris), o roteiro passa a enfatizar o lado cruel da sociedade civilizada que insiste em bestializa-lo. Um novo turning point vem com a entrada de Dr. Jean Itard em cena, que será o elemento responsável por humanizar o garoto selvagem. Itard não é só o primeiro adulto a conduzi-lo em cena pelo braço ao invés de usar uma coleira, como também se preocupa em averiguar as cicatrizes que ele tem pelo corpo. Um corte de faca no pescoço fará o médico deduzir que adultos pretendiam matá-lo quando pequeno. Crendo que a razão para sua condição de mudo é o longo isolamento que viveu na floresta, Dr. Itard resolve adotá-lo, ignorando a descrença dos demais médicos em relação ao menino aparentemente débil: o preguiçoso consenso geral é que ele seria incapaz de viver em sociedade. Itard intui que ele foi abandonado na floresta pela mãe por ser uma cria ilegítima. Rapidamente o tratamento se metamorfoseia em um processo educacional. Itard, de cientista num caso investigativo, passa a assumir um papel paterno, atribuindo ao garoto selvagem uma identidade. Com base na sílaba tônica que mais lhe chama a atenção, ele o batiza de Victor.

O roteiro do filme é baseado nos relatórios médicos escritos pelo verdadeiro Dr. Jean Itard. Por isso, se em “Os incompreendidos” a história é contada a partir do ponto de vista da criança, o coração da narrativa de “O garoto selvagem” se estabelece no processo de construção da personalidade social de Victor por meio da perspectiva de seu preceptor, que registra suas reflexões em um diário (ao qual temos acesso por narração em off). Ao condensar o período de dois anos abrangido pelos relatórios em nove meses, o roteiro salienta a importância parental na evolução do menino, atestando que uma formação propícia não provém necessariamente das instituições, mas sim de um procedimento geracional familiar — perspectiva que rima com a conclusão de “Fahrenheit 451” (1966), quando um idoso transmite para o seu neto uma obra de Robert Louis Stevenson, uma das liberdades da adaptação de Truffaut ao livro de Ray Bradbury.

Apesar da dedicatória ser para o ator a quem Truffaut apadrinhou, e que construiu uma sólida carreira a partir do sucesso de seu protagonismo em “Os incompreendidos”, ao transferir sua projeção pessoal no garoto desprotegido para a figura do pai educador em “O garoto selvagem”, o cineasta se reporta à figura de André Bazin. Este influente jornalista cultural foi quem adotou Truffaut tanto pessoalmente quanto profissionalmente na década de 1950, resgatando-o da prisão militar e possibilitando o início da sólida carreira de Truffaut como crítico cinematográfico na revista Cahiers du Cinéma (tanto que foi para Bazin quem ele dedicou o seu primeiro longa-metragem). Este jogo metalinguístico de figuras paternas — Bazin para Truffaut e Truffaut para Léaud — é encarnado na relação entre Dr. Itard e Victor. O objetivo principal do médico é possibilitar ao garoto um meio de comunicação através de uma linguagem, para que possa canalizar o seu espírito indômito de forma civilizada e posteriormente obter uma forma eficaz de moldar a realidade vivida como facilitadora da sobrevivência em sociedade — algo similar à função do diário no dia-a-dia do próprio médico, válvula por onde ele desabafa suas alegrias e angústias durante o processo de educação de Victor.

A mise-en-scène de “O garoto selvagem” é emoldurada pela presença de janelas que se estabelecem como meio de intermediação entre a civilização (confinamento) e o silvestre (liberdade). É uma unidade estilística que se instala logo no começo do filme, quando Victor é mantido em cativeiro pelos caçadores, prosseguindo durante todo o processo de educação empreendido por Dr. Itard, cuja residência, embora situada nas redondezas de Paris, é cercada por vegetação, pássaros e recebe constantemente a luz do sol. Se para Victor a janela representa algo a ser transposto, cabe a Itard transformá-la em um elemento de hibridização dos ambientes, guiando tanto a intermediação entre a criança indômita e o mundo adulto civilizado, quanto sua evolução de figura selvagem para ser humano instruído. Inclusive o conceito de amálgama está presente na forma e no conteúdo de “O garoto selvagem” já que Truffaut agrega em si os papéis de diretor, roteirista e ator da obra, assim como as funções de Itard se confundem entre médico, professor e pai. Os diversos planos-sequência, em que a câmera permeia o interior e exterior da residência transpondo portas e janelas, concretizam na encenação o objetivo de Dr. Itard em ensinar a Victor que a união dos dois ambientes é possível: para tornar-se civilizado, basta canalizar seu espírito selvagem.


Assumir o papel de Dr. Itard não significa que Truffaut renega o passado construído com Antoine Doinel. Para o médico, é primordial garantir em Victor um senso de contestação para que o menino saiba se proteger no mundo. De forma deliberada, Itard o castiga injustamente e vê-lo se rebelar é gratificante: “Ao provocar esse sentimento, havia elevado o selvagem a altura de um ser moral com o mais nobre de seus atributos”. Quando a compensação de Victor lhe é alienada (o garoto perde os passeios no campo devido às crises de reumatismo do Dr. Itard que o mantém acamado), sua reação é pular a janela e fugir de casa. Todavia, ele não consegue mais caçar e está desabituado ao frio da noite. Perdendo o traquejo de suas antigas capacidades instintivas, Victor reconhece que seu habitat agora é outro. No dia seguinte, o médico ouve bater à sua janela: é Victor que retorna à casa por vontade própria.

Em sua cena conclusiva, “O garoto selvagem” mais uma vez remete a “Os incompreendidos” de maneira incontornável: enquanto a imagem congela no rosto de Antoine Doinel quando este foge do reformatório para a praia, a lente da câmera faz um movimento de zoom e isola o rosto de Victor numa íris, logo após Dr. Itard avisá-lo de que as aulas serão retomadas. A diferença é que aqui a câmera continua a se movimentar em um tracking shot: a íris acompanha o rosto de Victor enquanto ele sobe as escadas. Se a liberdade de Antoine Doinel era a única garantia num ambiente incerto e solitário, onde a comunicação eficaz com os adultos revelava-se inviável, Victor, com o auxílio de Dr. Itard, torna-se ciente de como se relacionar no mundo civilizado. François Truffaut reafirma então a educação e a cultura como métodos inequívocos de redenção, ou, ainda especificamente, o cinema como um meio de comunicação que possibilita a subsistência de um ser humano; lição aprendida com André Bazin que ele repassou a Jean-Pierre Léaud.

“A decisão de fazer eu mesmo o Dr. Itard é uma escolha mais complexa do que eu pensava na época… essa foi a primeira vez que me identifiquei com o adulto, com o pai, a ponto de no final da montagem, resolver dedicar o filme a Jean-Pierre Léaud porque essa passagem, essa mudança, ficou perfeitamente clara para mim.” (François Truffaut)