Projeto Truffaut V: “Fahrenheit 451”
“Fahrenheit 451”, UK/1966. Direção: François Truffaut. Produção: Lewis M. Allen. Roteiro: Jean-Louis Richard, François Truffaut, baseado no…
“Fahrenheit 451”, UK/1966. Direção: François Truffaut. Produção: Lewis M. Allen. Roteiro: Jean-Louis Richard, François Truffaut, baseado no livro de Ray Bradbury. Fotografia: Nicolas Roeg. Música: Bernard Herrmann. Montagem: Thom Noble. Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack, Anton Diffring, Bee Duffell, Alex Scott.
Da mesma forma que um escritor utiliza sua caneta, o diretor de cinema possui a câmera como via de expressão artística. Era essa a perspectiva central defendida pela revista especializada Cahiers du Cinéma, no que seus jovens críticos, dentre eles François Truffaut, Jean-Luc Godard e Jacques Rivette, batizaram de “Política dos Autores”. O diretor, estabelecido como autor do filme, transforma a unidade de encenação, antes mero meio de ilustração do enredo, em uma verdadeira escritura. A moral de um filme passa a estar menos em sua história do que na forma pela qual o enredo é contado pelo diretor através da mise-en-scéne. Esse Truffaut crítico, em um artigo de 1958, afirmou que não existe fórmula mágica para uma boa adaptação de um livro para o cinema: o único método válido seria a reconversão, em termos de linguagem cinematográfica, das ideias literárias. Ou seja, a adaptação do cineasta, ligada diretamente à sua personalidade artística. Truffaut era contra o roteiro que transforma mecanicamente romances em peças de teatro, que apela para um enxugamento da construção dramática literária por meio de uma simplificação exagerada, onde os diálogos ficam encarregados de exprimir o máximo possível do enredo. É precisamente na distopia totalitária do romance de Ray Bradbury “Fahrenheit 451”, em que a posse e a leitura de livros é proibida e a sociedade é dominada por uma proliferação de imagens, que o Truffaut diretor vai discorrer, por meio de seu ofício, sobre a concepção de autorismo, ou seja, a identificação da assinatura pessoal de um autor em sua obra.
Apesar de já ter adaptado dois romances anteriormente, era a primeira vez que o Truffaut roteirista lidava com uma obra bastante popular. “Atirem no pianista” (1960) e “Jules e Jim” (1960) eram derivados de livros praticamente desconhecidos do grande público, enquanto “Fahrenheit 451” já era aclamado em 1954 como um dos melhores lançamentos da década. Acostumado com equipes pequenas e grana curta, era também a primeira vez em que François Truffaut disponibilizava de um orçamento de US$ 1,5 milhões, numa produção de larga escala bancada pela norte-americana Universal Pictures, em sua primeira experiência europeia. Apesar do investimento, o maior projeto da carreira de Truffaut fracassou nas bilheterias e seria a única incursão do diretor francês na língua inglesa.

A limitação da comunicabilidade gerada pela proibição aos livros numa sociedade que sofre o esvaziamento das palavras como meio de significado é o tema principal do roteiro de “Fahrenheit 451”. Truffaut não falava inglês e escreveu tudo em francês, com o auxílio do ator e roteirista Jean-Louis Richard. Os diálogos foram traduzidos para o inglês, vertidos de volta para o francês e, então, novamente traduzidos para o inglês, mantendo seu papel de significante, mas destituindo o valor do significado imediato das palavras. De forma deliberada, este método imprimiu certa artificialidade nas falas entre os personagens deficientes da linguagem escrita, com uma bagagem cultural limitada.
Seria impossível para Bradbury escrever “Fahrenheit 451” sem palavras, mas Truffaut reflete sobre a interdição dos livros de maneira essencialmente imagética. Com os diálogos funcionando menos como artifícios de engrenagem narrativa do que uma manifestação da alienação social, “Fahrenheit 451”, o filme, estabelece sua comunicação com o espectador por meio de sua unidade estilística visual. Não há letreiros na abertura, nem animação ou imagem em movimento. Os créditos iniciais são narrados por uma voz masculina autoritária, mas de entonação mecânica. Vemos frames repetitivos de antenas de televisão no telhado de residências, em contínuos zoom-in. A ausência de palavras numa ocasião em que elas são comumente empregadas causa um impacto incontornável no espectador, funcionando como uma imponente convocação para a sociedade totalitária onde a história se passa. As antenas e os repetitivos movimentos da lente da câmera indicam a relação entre a massa e a autoridade nesta distopia: os indivíduos estão tão absorvidos pelas telas de televisão que não percebem a manipulação pela mídia e as interferências na comunicação social derivadas do excesso dos receptores. Dentre as diversas características desse mundo, a interdição dos livros já se estabelece como motivo principal para o cineasta.


François Truffaut conscientemente se distancia dos códigos visuais recorrentes do sci-fi; por vezes em sua obra ele utiliza o filme de gênero como válvula de expressão para preocupações pessoais. Por isso, o realizador evita o futurismo pitoresco para criar o visual dessa sociedade totalitária. Ao invés disso, os cenários são uma mistura do moderno com o retrô: a arquitetura geométrica é de influência modernista, as viaturas parecem saídas de um filme mudo e os aparelhos de telefone tem um quê de Art Deco. O único elemento essencialmente futurista na encenação são os policiais-voadores, que surgem no horizonte faltando menos de 15 minutos para o fim da projeção. Não há espaço para chansons no filme; em consonância com essa prospecção austera está a trilha musical composta por Bernard Herrmann (um dos arranjadores favoritos de Alfred Hitchcock e Orson Welles), cujo tema tradicional de cordas agudas dramáticas, sem traços eletrônicos ou modernos, ajuda a humanizar as relações entre as personagens, além de reforçar a sensação atemporal da história.
Apesar de não estabelecer um país ou um ano específico para a narrativa, trata-se de uma sociedade de aparências bastante familiares, só que com os valores desordenados; por exemplo, as placas nas ruas utilizam unicamente símbolos, há uma linha-direta dedicada exclusivamente à alta demanda das tentativas de suicídio e os bombeiros são piromaníacos fascinados que ateiam fogo ao invés de apagá-lo. Nessa Europa descaracterizada de “Fahrenheit 451”, há diversas referências visuais ao nazismo: os bombeiros arianos saúdam-se esticando os braços, vestem uniformes bastante parecidos com os dos soldados da SS e têm como função principal queimar livros. É como se esse totalitarismo fosse o futuro do qual a personagem Catherine impetuosamente opta por escapar no final do filme “Jules & Jim”, ao assistir durante um cinejornal simpatizantes nazistas atirando livros numa fogueira, no limiar da Segunda Guerra Mundial.



Não há discernimento entre os tipos de livros, todos estão destinados ao fogo. Para a autoridade em “Fahrenheit 451”, os livros tornam as pessoas antissociais e infelizes. Ironicamente citando o autor Gustave Flaubert em “Madame Bovary”, cuja protagonista idealiza demais sua vida adulta por causa dos romances que lera na adolescência, crê-se que as pessoas que consomem livros tornam-se anti-sociais, infelizes com a mediocridade de suas próprias vidas. A filosofia não passa de uma moda de estação, onde um novo filósofo contradiz o anterior. Biografias são meras histórias irrelevantes de mortos. O único caminho para uma sociedade feliz é a igualdade absoluta entre os indivíduos; então, ao queimar os livros, elimina-se as diferenças de opinião. Para mais, as escolas remetem visualmente às prisões dos campos de concentração: o que é desconcertante quando percebemos que as crianças mostram-se curiosas quanto aos livros, acenando para uma rebeldia ainda embrionária. Se no mundo real um carrinho de bombeiro é um brinquedo típico de um menino, nesta distopia a sirene das viaturas dos bombeiros incute medo. Desde o seu primeiro longa-metragem, François Truffaut sublinha a infância como representação da inocência, adotando crianças como elementos ainda não corrompidos pelo status quo e inseridos na narrativa como porta-vozes de uma liberdade inata.


Os personagens não gozam de sua existência, apenas sobrevivem. O entretenimento vem das televisões, que funcionam menos como fonte de informação do que veículo manipulador. A alienação geral é promovida por um programa popular chamado “A Família”, que estabelece uma ilusória mas ininterrupta interatividade com os espectadores, interferindo em qualquer brecha para uma mínima reflexão ativa — uma crítica incisiva à sociedade dos anos 1960, quando a TV se estabelecia como meio de consumo popular. “Fahrenheit 451” nos mostra uma população em disfunção: sem o estímulo mental da literatura, a libido escorrega em queda livre. Para Truffaut, cuja filmografia se abstém de cenas gráficas de sexo, é elementar que o erotismo esteja diretamente conectado à psique. Uma população que se vê constantemente refletida em telas torna-se egocêntrica e narcisista, daí as cenas de jovens acariciando a si mesmos durante o trajeto no monotrilho, ao invés de flertarem. O prazer solitário é amplificado pela incomunicabilidade: as pessoas falam entre si, mas não conversam. É um diálogo regulamentar de perguntas-e-respostas, referindo-se umas às outras em terceira pessoa, tornando o sujeito em objeto. Por isso, quando a jovem Clarisse aborda o tímido bombeiro Montag (Oskar Werner) no monotrilho, ele fica aturdido com sua iniciativa.


Funcionário exemplar, Montag será promovido em breve pelo Capitão da brigada (Cyril Cusack). Isso atiça o consumismo de sua esposa Linda: com o aumento da renda, ela poderá comprar uma segunda televisão, o que é essencial para aumentar “A Família” e interagir com mais personagens. Dona-de-casa, Linda segue com afinco todos os padrões normativos: além de assistir infalivelmente os programas televisivos, toma todas as pílulas necessárias para se manter estável. Ela é tão vidrada na tela que mal consegue desviar sua atenção para falar com o marido quando ele chega do trabalho. Já Clarisse, professora, mora na única casa da vizinhança sem antenas de TV. Além de se apresentar a Montag como “um poço de palavras”, passa a instigá-lo com sua curiosidade, questionando o porquê dele trabalhar queimando livros e, principalmente, se ele já leu algum exemplar antes de destruí-lo. Desperta a atenção de Montag o fato de Clarisse ser a única pessoa que ele conhece que não sofre de perda de memória; sua esposa até já se esqueceu como eles se conheceram. Um belo dia, ao chegar em casa, o bombeiro encontra Linda desmaiada por ter exagerado nas pílulas. Um telefone para o disque-suicídio resolve o problema com uma transfusão de sangue imediata, trazendo imediatamente a dona-de-casa de volta ao seu dia-a-dia robótico, como se nada tivesse acontecido. Representadas pela performance dupla da atriz Julie Christie, Linda e Clarisse atuam como os dois lados de uma mesma moeda que será fundamental no juízo de valores que desperta Montag para o questionamento da eficácia do sistema em que vive.



A decupagem de “Fahrenheit 451” é bastante ágil, com predominância de quadros fechados e acelerações em jump-cuts, mas, logo na primeira sequência do filme, uma cena em slow-motion chama a atenção. Durante uma inspeção, o Capitão dos bombeiros joga um saco cheio de livros da varanda de um apartamento. Como se fosse um corpo sendo assassinado, a câmera registra com angústia o impacto da queda. Além de Montag, os livros assumem-se os verdadeiros protagonistas de “Fahrenheit 451”: em quantidade abundante, eles são atraídos pela lente da câmera que cheira suas páginas em extremos planos-detalhes quase lascivos. É constante nos filmes de Truffaut que o protagonista busque constantemente provar que é digno de ser amado. As belas capas dos livros, atrativos para os compradores em lojas, são aqui um apelo de sedução tanto aos espectadores quanto aos bombeiros da história. Por isso o fogo, apesar da destruição, serve imageticamente como o ápice de uma paixão que entra em combustão — no caso, a devoção pessoal de François Truffaut aos livros. Antes objetos inanimados, eles tornam-se vivos, seres portadores de memórias e emoções. Ao invés de abordá-los por um viés acadêmico como tratados intelectuais, este cineasta apaixonado por vocação encharca os livros de sentimento — mas se abstém de discursos e argumentações moralistas a favor da literatura. A palavra escrita é um motivo tão caro a Truffaut que ela frequentemente aparece com destaque em seus filmes, geralmente assumindo-se como um elemento que interliga os personagens, movendo a narrativa. Em “Fahrenheit 451”, no cenário onde ela é mais censurada do que nunca, a imagem da palavra brilha por si só.




Montag cede à curiosidade e rapta “David Copperfield”, de Charles Dickens, antes de queimá-lo. Como se portasse uma revista adulta, ele o esconde da vista de sua esposa e espera que ela durma para sorrateiramente levantar da cama e folheá-lo. É no momento que o bombeiro lê a primeira página de “David Copperfield” que vemos então a primeira palavra surgir em cena em “Fahrenheit 451” (antes, apenas as capas dos livros haviam aparecido). A câmera de Truffaut torna-se subjetiva, acompanhando as palavras como se nossos olhos fossem os de Montag: sentimos o primeiro contato profundo do bombeiro com um livro. “David Copperfield” é conhecido como um retrato da vocação literária, fundamental na tradição do grande romance realista. Se no livro de Ray Bradbury “As viagens de Gulliver” (de Jonathan Swift) cumpre tal papel, no filme, a escolha deste livro autobiográfico de Charles Dickens como veículo para o despertar de Montag reflete em si mesma a concepção do autorismo adotada por François Truffaut, ressoando até o próprio amadurecimento intelectual do personagem. Ao contrário do fatalismo imposto pelo regime totalitário, o bombeiro inicia agora o percurso de descoberta do livre-arbítrio para tornar-se o autor de seu próprio destino. A irretorquível iluminação racional de Montag é representada por um brilhante fade-out branco, que conclui a cena.


A partir de então, as invasões do Corpo de Bombeiros ao domicílio de suspeitos leitores tornam-se pesarosas para Montag. Antes um soldado notável, ele passa a observar as ações com certa distância, mantendo-se alheio o máximo possível. Mas a reação inesperada de uma idosa leitora capturada será um turning point irremediável para a crise de Montag — e uma das cenas mais emblemáticas de “Fahrenheit 451”. Num ato derradeiro, a própria senhora ateia fogo não só em sua biblioteca como em si mesma, na frente dos bombeiros. Capturado por multicâmeras em um plano aberto, o sacrifício máximo eleva-se como um emblema da resistência passiva. Na cena, as enormes labaredas tomam o quadro por completo, atingindo até a lente da câmera: em cumplicidade, sacrificam-se também a película e o seu autor. É um registro de potência imagética tão forte que Truffaut passará a reinserí-la como um motivo em si mesma: em sequência, Montag terá um pesadelo onde Clarisse executa a mesma ação suicida, além do próprio bombeiro, que também será enquadrado nessa mesma mise-en-scène, destacando os personagens à margem da sociedade manipulada.



O amarelo vivo do fogo combina-se com a onipresença do vermelho na fotografia de “Fahrenheit 451”, o primeiro filme a cores de François Truffaut. A cinematografia é do britânico Nicolas Roeg, que em menos de uma década se tornaria um cineasta bastante cultuado, realizando obras como “Inverno de sangue em Veneza” (1973), “O homem que caiu na Terra” (1976) e “A convenção das bruxas” (1990). O vermelho em high-key sobressalta-se em meio à paleta de cores predominantemente pastel de maneira ambivalente, representando tanto a presença ameaçadora dos bombeiros quanto a paixão reprimida pelos livros, cuja interdição potencializa sua volúpia.
O envolvimento com a literatura desperta Montag não só para o questionamento de sua realidade, mas para a sua atração por Clarisse. Apesar de retribuída, é uma paixão que não evocará um beijo sequer em cena: a relação dos dois é consumada através do amor mútuo pelos livros. Por isso, é sintomático que a esposa de Montag, ao descobrir sua pequena biblioteca formada por exemplares resgatados, aja como uma mulher traída, dando um típico ultimato ao seu cônjuge: “ou eles ou eu”. É o ponto inequívoco em que o bombeiro se divorcia do status quo da sociedade opressora de “Fahrenheit 451”, constatando que não possui condições de manter a sua profissão. Ao descobrir que os bombeiros invadiram e incendiaram a residência de Clarisse, mas que esta conseguiu escapar, Montag resolve protegê-la. Clarisse o informa da existência dos “book-people” (ou “good-people”, como Montag entende o termo pela primeira vez), que operam como uma sociedade alternativa. São pequenos grupos de fugitivos, que se escondem numa floresta e individualmente tornam-se livros ao gravá-los integralmente em sua memória para resguardar os seus conteúdos. Clarisse migra rumo à floresta enquanto Montag opta por retornar uma última vez para o Corpo de Bombeiros para pedir sua demissão.

Montag, entretanto, desconhece que Linda opta por denunciá-lo anonimamente e fugir de casa. Ao chegar na Brigada e pedir o seu desligamento, Montag é solicitado pelo Capitão para que participe de uma última invasão. Aquiescente com o pedido, o bombeiro, de maneira surpresa, é levado até a sua própria residência para incendiar a pequena biblioteca clandestina. Mesmo que não ateie fogo ao seu próprio corpo, Montag destrói a sua persona: ele queima sua cama, a televisão de Linda e o próprio Capitão. O grau de destruição elimina a identidade construída para a devida integração social naquele mundo autoritário e ocluso, tornando sua própria personalidade em uma página em branco pronta para ser reescrita. Os livros atuam em Montag não só como um despertar de consciência, mas apontam o caminho para uma alternativa de vida, um ideal que se conecta diretamente com o questionamento da Contracultura aos padrões conservadores e aos valores sociais capitalistas na década de 1960. Pelas mãos de Truffaut, “Fahrenheit 451” torna-se menos um ato político anti-totalitarista do que um manifesto anti-administrativo, descrente da funcionalidade prática de um regime de estrutura social padrão.


Fugindo, Montag busca a natureza como último recurso, lembrando o menino Antoine Doinel na conclusão de “Os incompreendidos” (1959), o primeiro filme de Truffaut (o movimento de tracking shot da câmera em ambas as cenas reforça ainda mais tal semelhança, sublinhando o motivo da fuga como o atalho imediato para se obter o essencial). Se Doinel procurava o mar, o objetivo de Montag é chegar à floresta dos “book-people’’. Paralelamente, a mídia se empenha em transformar a perseguição do bombeiro desertor num show de entretenimento: recorrendo à concepção da montagem de “geografia criativa” do cineasta soviético Kuleshov e utilizando um dublê bastante parecido com o bombeiro, a TV manipula as imagens falsificando sua captura, a fim de garantir à população não só o controle da situação, mas também a devida penalidade aos rebeldes. “Fahrenheit 451” assume aqui uma complexa metalinguagem a respeito do autorismo no cinema: François Truffaut teve inúmeras dificuldades profissionais com o ator Oskar Werner, que se recusou a filmar diversas cenas, obrigando o diretor a recorrer a um dublê para concluir as filmagens. Uma das recusas foi justamente a falsa captura do bombeiro, cena que Montag assiste num televisor cuja pequena tela remete a um monitor de mesa de montagem de filmes em película.

O autorismo é, mais uma vez, manifestado no destino final de Montag. Os “book-people” à margem da sociedade decoram os livros revertendo a escrita em oratória, utilizando suas vozes, memórias, gestos e olhares para difundir as ideias literárias. Este ato, que remete à tradição oral da Grécia antiga antes do advento da escrita, será o alicerce das fundações de uma nova sociedade. Se por trás dos livros há homens, como diz Montag, a partir de agora os livros tornam-se humanos em si mesmos, atingindo o clímax do antropomorfismo da mise-en-scène de Truffaut, fielmente dedicada a fazer dos livros os protagonistas de sua obra. A última cena de “Fahrenheit 451” mostra os “book-people” caminhando pela neve, operando em sua lenta, mas precisa revolução cultural enquanto aguardam o momento exato de ebulição em que poderão sair e recitar seus respectivos livros para que estes sejam impressos novamente. Contra os revezes violentos da militância ativa que anseia por uma revolução instantânea, Truffaut assina sua crença filosófica de resistência à autoridade por meio do elogio da astúcia.

Embora queimem os livros após decorá-los, a comunidade dos “book-people” se difere da sociedade de “Fahrenheit 451”, já que esta estimula ao máximo o consumo de produtos que permitam a manutenção da alienação social, enquanto aquela impõe o conteúdo como o valor essencial a ser adquirido. Para além da cremação, as obras tornam-se imortais, perpetuando como valores que passam de pais para filhos, agindo como instrumentos essenciais para a manutenção da memória e da educação. Trata-se não só do uso da astúcia da mente como forma de resistência contra a repressão, mas também da crença na criança como elemento renovador que propulsiona uma evolução na sociedade — afinal, ao longo do filme, elas constantemente demonstram interesse pelos livros, apesar dos sinais de perigo. Na conclusão desta distopia simbolizada pela transposição dos significados, ao inverso da escritura, as vidas passam a registrar os livros. Montag torna-se “Contos de imaginação e mistério”, de Edgar Allan Poe (nada mais apropriado do que histórias mais curtas para quem começou a ler há pouco tempo), enquanto Clarisse, que não sobrevive no livro de Ray Bradbury, assume “Memoires de Saint-Simon”, a obra póstuma de Louis de Rouvroy.


Publicamente, Bradbury aprovou com louvor a versão cinematográfica de seu livro. Sua cena favorita era a de um idoso “book-people” moribundo transmitindo a seu neto a obra-prima inacabada “Weir of Hermiston”, sobre uma atribulada relação entre pai e filho durante as guerras Napoleônicas. Truffaut, assim como Charles Dickens, frequentemente incluía pormenores autobiográficos em suas obras. O cineasta, que nunca conheceu o pai biológico que abandonou sua mãe grávida, reflete-se na imagem do menino que decora através do avô, recitando por duas vezes em sequência enquanto a câmera o registra em close-up: “Eu não amo o meu pai. Pergunto-me, às vezes, se não o odeio. Eis a minha vergonha, talvez o meu pecado. Pelo menos, e aos olhos de Deus, não a minha culpa. Como eu poderia amá-lo? Ele nunca falou comigo, nunca sorriu para mim”. “Fahrenheit 451" inicia com a mecânica voz do autoritário narrador dos créditos iniciais, mas conclui com uma diversidade de vozes em vários idiomas, contando várias histórias; diversas memórias proferidas por uma variedade de almas. Se a câmera se sacrifica ao fogo na metade do filme, agora o autor transcende a si mesmo como um book-people. Por meio de seu ofício, a voz de Truffaut amplia o alcance da obra de Ray Bradbury ao aglutiná-la em sua mídia. Mesmo em uma realidade proliferada por telas como a nossa, onde a literatura corre o risco de um dia tornar-se preterida pelas massas, a memória da importância basilar da palavra escrita está salvaguardada.

“Não sou contra a violência por idealismo por adesão à ideia de não-violência. Sou contra porque a violência significa afrontamento. É como a discussão, algo de que também não gosto. Se quero alguma coisa, o meu desejo é tão intenso que não perco tempo com discussões.” (François Truffaut)