Projeto Truffaut VI: “A noiva estava de preto”
“La Mariée était en noir”, FR/1968. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert, Oscar Lewenstein. Roteiro: François Truffaut…
“La Mariée était en noir”, FR/1968. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert, Oscar Lewenstein. Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, baseado no livro de William Irish. Fotografia: Raoul Coutard. Música: Bernard Herrmann. Montagem: Claudine Bouché. Elenco: Jeanne Moreau, Michel Bouquet, Jean-Claude Brially, Claude Rich, Charles Denner, Michel Lonsdale, Alexandra Stewart, Serge Rousseau, Daniel Boulanger.
“I die with him, again and again/ And I’ll feel good in my revenge/ I’m gonna fill your head with lead/ And I’m coming for you!”, canta Kate Bush na faixa “The wedding list”. Sexto longa-metragem de François Truffaut, “A noiva estava de preto” não apenas inspirou a composição desta música escrita pela cantora inglesa em 1980, como também é uma referência adotada tanto por Quentin Tarantino (a protagonista intitulada “A Noiva” de “Kill Bill”, 2003) quanto RuPaul (em um desfile das drag queens na 12ª temporada de seu reality show), além de ecoar em “Bela vingança” (“Promising young women”, de Emerald Fennell), grande sucesso do ano passado. Este é provavelmente o maior legado do cineasta francês na cultura pop, o que se deve ao fato do próprio filme aglutinar em sua icônica protagonista vários arquétipos do filme noir já entranhados na história do cinema norte-americano. Interpretada por Jeanne Moreau, Julie Kohler (ou “colérica”, como sugere seu sobrenome francês), assume ao mesmo tempo os papéis do anti-herói enredado numa atmosfera de pesadelo, da mocinha ingênua que é irremediavelmente prejudicada e da femme fatale que manipula os rapazes ao seu bel prazer — daí a sensação de absolutismo que sua imagem exala em cena.

O roteiro é baseado no thriller de William Irish (que também escreveu o livro que deu origem à “Janela indiscreta”, de Alfred Hitchcock). Provavelmente por ter sido o primeiro filme lançado por Truffaut após concluir o ambicioso projeto de entrevistas sobre a obra de Hitchcock que resultou em um best-seller, diversos críticos imediatamente leram “A noiva estava de preto” como uma carta de amor ao cineasta inglês. É inegável que alguns frames fazem alusões diretas a “Psicose” (1960) e “Um corpo que cai” (1958), por exemplo. Mas depois de esclarecer a motivação das ações da protagonista logo na primeira meia hora de filme, o roteiro não desenvolve um subplot, nem se torna uma longa investigação policial, já que os próprios personagens evitam discutir a intriga em si. “A noiva estava de preto” não é como um filme de Hitchcock, mas segue um princípio de narração à la Hitchcock ao se voltar para a elaboração e a execução dos crimes perpetuados por Julie Kohler, manipulando o raciocínio do público. Inclusive, a estilizada atmosfera de conto de fadas dark que Truffaut constrói em sua encenação se assemelha mais ao estilo feérico do multiartista visual Jean Cocteau do que ao do diretor de “O homem que sabia demais” (1956).

François Truffaut constantemente joga com as expectativas do espectador, utilizando os elementos que estão fora de campo para criar suspense; por isso, neste que é um de seus filmes de decupagem mais lenta, priorizou planos-sequência que o permitem reenquadrar informações com a precisão exata. Esses planos mais longos, além de proporcionar espaço para um desenvolvimento genuíno das relações imediatas entre os personagens que, devido à estrutura episódica da narrativa, possuem breve tempo de tela, alicerçam Jeanne Moreau como elemento central da encenação. Sua protagonista arquiteta a mise-en-scène ideal para pôr em prática o seu roteiro de vingança, criando mini-narrativas de acordo com as exigências particulares de cada vítima. Tanto as aparições quanto as saídas de cena de Julie Kohler são espectrais: o filme é colorido, mas ao surgir para os homens de sua kill list sempre vestindo preto ou branco, ela ascende ao status de entidade fantasmagórica que surge e desaparece do plano. Como seu “parente distante”, Charles Koller (personagem-título de “Atirem no pianista” (1960), segundo longa de Truffaut), que não consegue superar o trágico desfecho de seu casamento, Julie está sob o feitiço do tempo de seu trauma, revivendo constantemente o fatídico momento em que, por questão de minutos, passa de noiva para viúva.

A história se inicia na cerimônia de casamento de Julie com David Kohler (Serge Rousseau), no exato momento em que uma tragédia causada por cinco homens transforma seu sonho em um verdadeiro pesadelo — mas o filme em si começa em paralelo com o plano concebido pela viúva. Levada à estação de trem por sua sobrinha (que, num flashback, descobrimos ter sido sua dama de honra no funesto casório), Julie embarca para uma viagem destinada à Paris mas sai pelo outro lado do vagão antes mesmo do veículo dar a partida, descendo às escadas da estação para dar início à vingança que irá eliminar, um por um, os cinco responsáveis pela morte de David. O vaidoso Sr. Bliss (Claude Rich), se acha um conquistador irresistível que tem por hábito fetichizar suas amantes. Já o Sr. Coral (Michel Bouquet) é um solteirão que está à espera da dama perfeita que se encaixe em sua idealização inalcançável. O terceiro, o pretensioso Sr. Morane (Michel Lonsdale), vive diminuindo sua esposa e faz uso de seu cargo político para dar em cima das mulheres.

Enquanto o livro de William Irish dedica mais atenção ao detetive que investiga Julie Kohler, Truffaut centra os eventos do roteiro sob o ponto de vista da viúva e da reação de suas vítimas. Os personagens masculinos de “A noiva estava de preto” são homens lascivos, não confiáveis e com visões estereotipadas sobre o feminino. Por outro lado, são também fracos, imaturos e hesitantes. Neste ponto, o filme de Truffaut se diferencia ao abster-se de um discurso meramente acusatório, dando uma maior complexidade ao jogo entre caçador e presa. Ele não absolve a figura masculina – e a conclusão do filme confirma isso –, mas atribui uma amplitude emocional a esses personagens através de uma franca tentativa de compreensão ao reconhecer estes desvios de comportamento como uma fraqueza humana (bem ao estilo do escritor Honoré de Balzac) com a qual eles não possuem inteligência emocional para lidar. E é por meio dessa ineficiência que Julie sabe exatamente como penetrar a mente dos homens, manipulando-os através de seus desejos. Ao pôr a câmera sob a perspectiva também das vítimas, François Truffaut, que em sua vida pessoal possuía uma infindável necessidade de seduzir e de ser amado, revê sua própria relação com a natureza do desejo, ressignificando mais uma vez o filme de gênero como um veículo para expor suas preocupações particulares.

Ainda que momentaneamente, Julie Kohler deixa escapar a quarta vítima, o trapaceiro Sr. Delvaux (Daniel Boulanger), pulando para o próximo e último item da lista. Fergus (Charles Denner), pintor, é um compulsivo libertino. Para atraí-lo, Julie torna-se a representação viva de uma enigmática musa que o rapaz incessantemente reproduz em suas telas. Motivado por seu fascínio desmedido, Fergus pinta um enorme retrato de Julie que remete à Olímpia de Manet — é como se o artista a enxergasse para além do disfarce. Em paralelo com o filósofo alemão Walter Benjamin, que conclui em uma famosa tese que a reprodução técnica destitui a autenticidade da obra original por descaracterizar a sua aura, o afresco apaixonado de Fergus dialoga com os créditos iniciais do filme, quando vimos uma série de fotos desta mesma pintura de Julie sendo copiadas mecanicamente, em preto-e-branco. Destituída do encantamento de seu relacionamento com o marido falecido, a protagonista se torna uma morta-viva que, cega em sua obstinação, sobrevive ao assassinato de David apenas com o intuito de vingá-lo. Ao contrário do avatar do machismo composto no filme, que trata a mulher como mero objeto caçado por meio de sentimentos ilusórios, Julie caracteriza seu amor como algo exclusivo e insubstituível.

Tanto a fotografia depressiva de Raoul Coutard, onde o azul é onipresente nos cenários, quanto os tons dramáticos da trilha musical de Bernard Herrmann com variantes da marcha nupcial de Wagner pontuam a trágica atmosfera passional da protagonista. A percepção aguçada de Fergus quase a faz fraquejar em sua vingança (o que é manifestado visualmente pelo jogo das superposições entre preto e branco no seu figurino ao longo desta sequência). Ao contrário das outras vítimas manipuladas por Julie, Fergus é o único que diz que a ama e, num instinto falho de confiança, coloca em suas mãos a própria arma com a qual será assassinado.

Estabelecendo uma visionária conexão com a insurgência dos debates sobre gênero no século XXI, a jornada de Julie ganha amplitude como um manifesto feminista quando, mesmo descobrindo que o assassinato de seu marido fora um grotesco acidente, ela não suspende seu plano de vingança; afinal, apesar do crime culposo, os homens não cessam de corromper as mulheres. Retratada como a real vítima da situação ao invés do arquétipo da assassina louca, a protagonista alinha-se diretamente à esposa traída Franca, personagem de “Um só pecado” (1964, terceiro filme de Truffaut), que resolve dar um basta definitivo na humilhação usando as próprias mãos. Progredindo nesta intersecção, pode-se analisar “A noiva estava de preto” como uma parábola sobre a desilusão da mulher com o marido cujo encanto galanteador e sedutor se esvai após o casamento; evitando sofrer esse trauma novamente, ela mesma irá matar seus futuros pretendentes antes da união ser consumada.
Mais uma vez opondo-se ao livro original de Irish, Truffaut não pune Julie em seu roteiro. Num ato que escapa à compreensão do próprio delegado de polícia, a viúva se permite ser capturada com o objetivo de completar a sua lista de vingança — e Truffaut, fã da astúcia como arma para o triunfo, presenteia sua protagonista com um atalho para o Sr. Delvaux, o item remanescente. Nesta prisão, todas as mulheres também vestem preto. Embora encarceradas numa sociedade machista, elas não devem ser subjugadas: como Julie Kohler, Franca, A Noiva de Quentin Tarantino ou Carrie, a protagonista de “Bela vingança”, elas também são astutas o bastante para virar a mesa a qualquer momento.

“O ponto comum entre todos os meus filmes é que as mulheres comandam os acontecimentos, diante de homens que são mais fracos.” (François Truffaut)