Projeto Truffaut VII: “Beijos proibidos”
“Baisers volés”, FR/1968. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Claude de…
“Baisers volés”, FR/1968. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Claude de Givray, Bernard Revon. Fotografia: Denys Clerval. Música: Antoine Duhamel. Montagem: Agnès Guillemot. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade, Delphine Seyrig, Michael Lonsdale, Harry-Max, Daniel Ceccaldi, Claire Duhamel.
Há um sentimento de nostalgia que permeia a película de “Beijos proibidos” e que chega aos nossos ouvidos através da sentimental chanson de Charles Trenet, “Que reste-t-il de nos amours”: “Uma velha foto da minha juventude/ (…)/ Uma lembrança que me persegue sem parar”. Depois da experiência amarga vivida por François Truffaut ao adaptar “Fahrenheit 451”, seu grande projeto inglês financiado pela Universal que teve uma fria recepção de crítica e público, o cineasta recorreu a um movimento de volta às origens — onde “A noiva estava de preto” (também de 1968) foi o primeiro passo, mas que se deu de fato com este que é o terceiro empreendimento da saga sobre o amadurecimento de Antoine Doinel, seu personagem alter-ego interpretado por Jean-Pierre Léaud. Precedido por “Os incompreendidos” (1959), o longa seminal de Truffaut que retrata o fim da infância de Doinel, e pelo curta-metragem “Antoine e Colette” (1962), com enfoque na sua adolescência, “Beijos proibidos” se volta para o início da vida adulta do personagem, sedimentando o reencontro de Truffaut não só com o seu ator favorito, mas também com referências basilares de sua formação cultural como Honoré de Balzac, Jean Renoir e a Cinemateca Francesa, seu habitat cinéfilo na juventude que, na função de porto-seguro afetivo, se estende à cidade de Paris como um todo.

Como Truffaut na adolescência, Antoine Doinel é dispensado do serviço militar devido à sua personalidade instável. O menino que foge do reformatório ao final de “Os incompreendidos” permanece inadequado aos padrões sociais. Ciente de que sem o certificado de boa conduta do Exército não conseguirá um emprego no serviço público, nem numa grande empresa privada, Doinel busca estabelecer-se por meio de diversas tentativas frustradas. Sua filosofia de vida é se posicionar de maneira arbitrária ao acaso, deixando que o imprevisível tome as rédeas tanto no lado profissional quanto no afetivo. Ao mesmo tempo em que se reconecta com a jovem Christine (Claude Jade), uma paixão pré-serviço militar, o rapaz, por mera intervenção do destino, recebe uma oferta de emprego como detetive particular na agência Blady. Novamente, Antoine demonstra inaptidão para o serviço, mas, numa última tentativa, seu chefe o escala para atender ao M. Tabard (Michael Lonsdale). Dando expediente no caso, Antoine acaba conhecendo a Mme. Tabard (Delphine Seyrig), por quem se apaixona perdidamente. Ele idealiza a esposa de seu cliente como a Condessa de Mortsauf em “O lírio do vale”, escrito por Honoré de Balzac, seu autor idolatrado: uma mulher madura, possuidora de todas as virtudes, por quem o jovem Felix nutre um exasperante amor platônico.

Se “A noiva estava de preto” é frequentemente interpretado como uma carta de amor de François Truffaut para Alfred Hitchcock, “Beijos proibidos” se endereça a Jean Renoir. Ao estilo do cineasta de “A regra do jogo”, Truffaut deixa sua câmera ativa em torno da mise-en-scène: os movimentos de panorâmica e tracking buscam enquadrar Doinel, flaneur urbano que atua errante na própria encenação. A decupagem das cenas permite sobressair a importância do que está fora do campo de visão, nos indicando que a ação se estende num mundo que continua além do que conseguimos enxergar. Não à toa, mesmo que a câmera não esteja perseguindo Doinel, ele reaparece no quadro de surpresa: o rapaz estava à margem o tempo todo, mas não o tínhamos notado.
Antoine é tímido, mas impetuoso o bastante para se agarrar ao que quer que seja; em paralelo, o roteiro também se põe a mercê do efêmero. Em “Beijos proibidos” é impossível prever o que acontecerá em seguida: de matriz errática, a narrativa é menos linear e dependente do enredo do que focada no jogo de casualidades que intervêm na trajetória dos personagens. Como na vida real, o imprevisível subsiste. A fluidez da câmera e a ambiência realista do enredo dão ao filme um tom de crônica urbana onde os personagens e suas anedotas são soberanos, em contraponto ao noir “A noiva estava de preto” (1968) e ao sci-fi “Fahrenheit 451” (1966), cujas histórias são moldadas pelos específicos traços estilísticos de seus respectivos gêneros. A enorme liberdade que Truffaut deu ao elenco para construir os personagens e improvisar seus diálogos também contribui para a atmosfera leve que caracteriza o filme; mais uma vez ele remete à Renoir, que prezava imensamente seus atores a ponto de não se importar que a personalidade deles influísse diretamente nos papéis.


Além de Renoir e Balzac, outro fator remete de forma direta à formação de François Truffaut. A abertura do filme, pontuada pela melancolia da canção de Charles Trenet, nos mostra a interdição da Cinemateca Francesa, celebrado ponto de encontro de cinéfilos (incluindo o próprio Truffaut em sua adolescência). Durante as filmagens de “Beijos proibidos” o Ministério da Cultura exonerou Henri Langlois, visando se apropriar do acervo formado por ele durante 30 anos como diretor artístico desta organização sem fins lucrativos. Truffaut e seus colegas da Nouvelle Vague se uniram em um movimento em sua defesa, mobilizando realizadores do mundo inteiro. Os protestos tiveram reações violentas da polícia, mas após inúmeras reuniões do Ministério com o Comitê formado pelos cineastas, a Cinemateca Francesa reabriu suas portas. Com a volta de Henri Langlois, “Beijos proibidos” pode ter ali sua première. Esses atos, ocorridos no início de 1968, serviram de presságio para os acontecimentos sociais do histórico mês de maio na França.

Apesar da enunciação, “Beijos proibidos” não é um filme de tom revolucionário como as obras de Jean-Luc Godard lançadas no mesmo período e também protagonizadas por Jean-Pierre Léaud — assim como François Truffaut e Antoine Doinel também não são militantes. Truffaut acreditava que a vida era anarquista demais para ser encaixada em qualquer doutrina política; isto posto, o cinema foi a única motivação para os raros episódios em que o cineasta se dispôs a protestar ativamente ao longo de sua existência. Em consonância, Antoine Doinel não se preocupa em defender causas sociais (para ele, manifestações é sinônimo de guardas, cassetetes e violência). Apesar de sua ambientação realista, “Beijos proibidos” passeia à margem das convulsões políticas francesas daquele momento, mas o fato de Truffaut não ser engajado politicamente não significa que suas obras sejam neutras. Por exemplo, o cineasta deixa claro sua posição anti-militarista quando retrata visualmente Antoine Doinel saindo do quartel como estivesse sendo libertado da prisão, uma deserção automática que foi gerada por sua inatividade na instituição (eis aqui um elogio à perspicácia como forma de resistência, algo recorrente na filmografia de Truffaut). Ao celebrar a liberdade do rapaz durante um jantar, o pai de Christine reduz o Exército a “um anacronismo fantástico como o teatro”.

Para Antoine, a agência de detetives Blady funciona como uma graduação na sua educação sentimental. Todos os casos investigados são da ordem afetiva, envolvendo adultérios, sentimentos não correspondidos, crimes passionais e frustrações sexuais. A paixão idealizada pela esposa de seu cliente o colocará no papel clássico do amante enrascado. Em resposta à uma declaração de amor escrita por Doinel e enviada de forma expressa por pneumático, Mme. Tabard aparece em seu apartamento. Num diálogo que desmistifica as idealizações do rapaz, ela lhe dá a lição primordial: todo mundo, a seu modo, é excepcional e insubstituível. De maneira objetiva, ela propõe um contrato: os dois deverão se amar uma única vez e depois, nunca mais irão se encontrar. Tal assertiva impressiona Doinel e ancora de vez os pés dele no chão. O jovem desiste de ser detetive, torna-se técnico de aparelhos de televisão, e, ao contrário do que presenciamos no começo do filme, não se magoa mais quando uma prostituta não quer beijá-lo ou prefere ficar de roupa para não perder tempo.

O destino ainda opera para o recém-amadurecido Doinel: ele reencontra o pai de Christine por meio de um acidente de carro. Sabendo do seu novo emprego, a própria garota intervém na sorte: durante um telejornal que noticiava as manifestações, quebra sua televisão como justificativa para uma visita. O plano dá certo: Antoine e Christine reatam. O rapaz, que antes escrevia 19 cartas por semana, pede Christine em noivado com um bilhetinho na mesa do café-da-manhã. Tudo parece devidamente ajustado às normas sociais, até que, na última cena, Doinel é confrontado por uma proposta que o deixa inseguro. Não somos realmente capazes de saber se sua disposição será o bastante para adestrar seu espírito fugaz e encaixar-se no mundo repleto de ilusões perdidas da clientela adulta da agência Blady.

O refúgio de Truffaut às suas origens foi frutífero. Além de ser um sucesso de bilheteria, “Beijos proibidos” foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e recebeu diversos prêmios da crítica ao redor do mundo, sendo eleito um dos dez melhores de 1968 pela Cahiers du Cinéma; o cineasta só fora aclamado assim na época de “Os incompreendidos”. À primeira vista, é de espantar que um filme não-engajado sobre jovens no período contestador do final dos anos 1960 tenha sido tão bem recebido. Mas, como Truffaut, o coração de Antoine Doinel não é revolucionário; o rapaz segue seu caminho à margem como um eterno solitário, desconfiando da estrutura social e buscando ser aceito por quem ama e admira. E a reflexão de Truffaut sobre a realidade por meio de uma perspectiva nostálgica é assumidamente afetiva, centrada em um apreço genuíno tanto por seus valores pessoais quanto seus personagens — especialmente por Antoine Doinel, cujo physique-du-rôle de Jean-Pierre Léaud imprime um romantismo puro e anacrônico que o mantém incorrigivelmente deslocado neste universo contemporâneo. A entrada do seu alter-ego na fase adulta torna-se um elogio do cineasta à fase da vida que talvez seja o último momento em que o ser humano possa realmente caminhar ao sabor do vento de maneira despreocupada, degustando seus sonhos antes que o outono os torne em lembranças.

“Sou nostálgico, minha inspiração está sempre voltada para o passado. Não tenho antenas para captar o que é moderno, caminho pelas sensações; eis por que meus filmes — e mais particularmente “Beijos proibidos” — são repletos de lembranças e tentam ressuscitar as recordações de juventude dos espectadores que os assistem.” (François Truffaut)