Projeto Truffaut VIII: “A sereia do Mississippi”
“La Sirène du Mississippi”, FR/1969. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut…
“La Sirène du Mississippi”, FR/1969. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, baseado no livro de William Irish. Fotografia: Denys Clerval. Música: Antoine Duhamel. Montagem: Agnès Guillemot. Elenco: Catherine Deneuve, Jean-Paul Belmondo, Michel Bouquet, Nelly Borgeaud, Marcel Berbert, Roland Thénot.
Após o bem-sucedido retorno ao personagem Antoine Doinel em “Beijos proibidos” (1968), o cineasta François Truffaut voltou-se para um outro tema de adoração: o film noir, que lhe fez encantar com o cinema norte-americano na década de 1940. Durante a produção de “A noiva estava de preto” (1968), baseado em um livro de William Irish, Truffaut leu toda a sua bibliografia, a fim de se deixar impregnar pelo estilo noir do autor. Nessa jornada, Truffaut descobriu o thriller “Waltz into darkness”, que forneceu a base para o roteiro de “A sereia do Mississippi”, e que três décadas depois também daria origem ao filme “Pecado original” (2001), estrelado por Antonio Banderas e Angelina Jolie. Truffaut iniciou o projeto antes mesmo das filmagens de “Beijos proibidos” (esta pista é dada na cena em que Antoine Doinel lê o romance de Irish), mas complicações com os produtores devido ao alto orçamento da produção o fizeram adiá-lo por um ano.
Desde o lançamento de “Um só pecado” (1964), o cineasta desejava colaborar novamente com a atriz Françoise Dorléac ao final da década; contudo, um acidente automobilístico em 1967 tirou a vida da jovem no auge de sua carreira cinematográfica. Num movimento inconsciente, Truffaut vislumbrou Catherine Deneuve, irmã mais nova de Dorléac, como a protagonista ideal de seu novo filme, que finalmente começou a ser rodado em 1969. Trocando a ambientação urbana do livro pelo idílio tropical da ilha de Reunion e trazendo a história para os dias atuais, Truffaut ancora a unidade estilística de “A sereia do Mississippi” em um universo de disfarces, refletindo a mecânica da relação entre os personagens encarnados por Deneuve e Jean Paul-Belmondo.

A dedicatória de François Truffaut a Jean Renoir que sucede os créditos iniciais é a primeira pista para o jogo de falsas aparências que engendra o seu longa. As imagens ficcionais de “La Marseillaise” (1937), filme de Renoir, são forjadamente inseridas como um registro documental da ilha de Reunion, confundindo a atitude ficcionalizante por parte do espectador. Apesar da enunciação, a mise-en-scène de “A sereia do Mississippi” exercitará de maneira constante em sua forma uma outra influência basilar para Truffaut, Alfred Hitchcock, apropriando-se de diversos sintagmas do diretor inglês com o objetivo de subvertê-los. O enredo compartilha com Hitchcock o tema do amor subjugado por mentiras e culpas mas, enquanto este resolve os dilemas em proveito da intriga e em detrimento dos personagens, Truffaut os prioriza, atribuindo-lhe diversas nuances. De maneira similar à estrutura de “Psicose” (1960), o mistério principal de “A sereia do Mississippi” é desvendado logo na primeira parte; contudo, o fim do disfarce não é um MacGuffin que irá gerar uma alteração inesperada na história. Enquanto as prioridades de Hitchcock o fazem operar sob a mecânica da razão, a abordagem psicológica de Truffaut é menos intelectual do que passional. A narrativa de “A sereia do Mississipi” irá focar nos desdobramentos do envolvimento entre a golpista Marion (Deneuve) e o romântico Louis (Belmondo), para quem o amor torna-se sinônimo de abjeção absoluta.

Herdeiro de uma bem-sucedida fábrica de cigarros, Louis busca uma esposa através dos classificados dos jornais, atraindo a suspeita e a curiosidade dos nativos da ilha onde reside. Ele finalmente irá ao encontro de sua eleita: após uma dúzia de cartas, Julie Roussel vem a bordo do navio Mississippi. Surge então em cena, como uma aparição, Catherine Deneuve acompanhada por uma gaiola de pássaros (de maneira similar à Tippi Hedren em “Os pássaros” (1963), que leva um casal de periquitos para Ray Milland em Bodega Bay). É uma loira deslumbrante que se difere bastante da delicada morena registrada na fotografia que Julie outrora remeteu ao empresário. Tanto o espectador quanto Louis já começam a suspeitar do golpe: Deneuve não é a verdadeira Julie, e sim Marion Vergano. Esquivando-se, a moça diz que não se acha bonita o bastante, por isso enviou a foto de uma vizinha. É o começo de um jogo de manipulações operado pela personagem que inevitavelmente instaura uma aura de desconfiança na relação com o seu futuro noivo — uma atmosfera bastante similar a de “Suspeita” (1941), o thriller de Hitchcock centrado na tenso matrimônio entre Joan Fontaine e Cary Grant. Mas, enquanto nós aguardamos ansiosamente o passo em falso para que Marion seja desvendada (assim como Fontaine em relação às intenções de Grant), Louis deixa-se levar pela situação a ponto de oficializar sua união com ela, como pretendendo adiar o máximo possível tal revelação. Para ele, o casamento em si é o mais importante. Inúmeros serão os papéis que Marion assumirá para manter sua posição como Julie: indefesa, sedutora e até dona-de-casa eficaz. Contudo, quando Berthe Roussel (Nelly Borgeaud), a irmã da verdadeira Julie, procura o empresário para saber sobre o paradeiro da jovem que nunca mais a contatou, a situação torna-se insustentável. Marion abandona o lar, surrupiando o saldo da conta conjunta que Louis passou a dividir com ela.
O rapaz une-se à Berthe e, juntos, contratam o detetive Comolli (Michel Bouquet) para capturar Marion e resgatar Julie. Esta sequência do roteiro alude ao empreendimento formado por John Gavin e Vera Miles em “Psicose”, que buscam o paradeiro de Janet Leigh com a ajuda de Martin Balsam. Contudo, apesar do destino de ambos os detetives ser o mesmo (e a vítima estar de fato morta), Louis irá se aproximar de Anthony Perkins, ou melhor, da personagem que opera o duplo. Uma vez que seu foco narrativo são os personagens, Truffaut funde as referências em sua unidade estilística, tendo o doppelganger como elo: “Psicose” metamorfoseia-se em “Um corpo que cai”. Em meio à investigação, Louis tem um colapso nervoso e vai parar num centro de repouso em Nice — atribulação similar a de James Stewart após o abrupto rompimento com Kim Novak. Lá, enquanto assiste TV com os outros enfermos, uma matéria sobre acompanhantes de luxo da boate Phoenix, em Antibes, lhe chama a atenção: sua esposa é flagrada dando expediente. Ensandecido, Louis sai do hospital com o objetivo de assassiná-la. Após um breve período de tocaia em Antibes, ele invade o seu quarto à noite, escalando as varandas do prédio (como Cary Grant na Riviera Francesa em “Ladrão de casaca” (1955), também de Hitchcock). Tentando salvar sua pele, Marion narra sua versão sobre os acontecimentos para Louis, mimetizando a mecânica entre James Stewart e Kim Novak depois que esta revela sua farsa. Contudo, ao contrário de “Um corpo que cai”, Louis não a manipula para que ela volte a ser Julie, a esposa-troféu. Ele se apaixona genuinamente pelo contraponto que Marion representa: uma verdadeira hustler, mulher ativa, insolente e hedonista, cuja ganância a torna extremamente prática em sua obsessão por dinheiro — uma personagem da mesma linhagem da cleptomaníaca interpretada por Tippi Hedren em “Marnie” (1964).



A expressão plácida de Catherine Deneuve permite aos espectadores projetar sobre seu rosto qualquer sentimento desejado. Louis também é vítima deste encanto. Truffaut buscava uma inversão nos arquétipos de gênero entre os personagens: Marion age como um destemido rapaz vadio, cujo espírito livre lhe proporcionou inúmeras experiências de vida, enquanto Louis, a mocinha romântica, centra suas expectativas na estabilidade social de uma relação amorosa idealizada. Sob esta perspectiva, torna-se crível quando Marion conta detalhes de seu crescimento difícil, aglutinando em si pormenores autobiográficos do próprio Truffaut (um traço constante de seus roteiros): cresceu como órfã em instituições públicas e, em meio à fugas, cometeu pequenos crimes para sobreviver, terminando presa num reformatório, onde, no intervalo das rondas dos guardas, praticava concursos de masturbação com suas colegas. Em paralelo, esta inversão de gênero atuando sob o véu do disfarce, cerne da forma e da narrativa do filme, põe em cheque a ingenuidade de Louis ao requisitar uma esposa através dos classificados: o rico empresário da pequena ilha de Reunion poderia estar à procura apenas de um casamento de conveniência.
O primeiro ato do roteiro, ambientado em um retrato de tom burocrático da ilha de Reunion, foca o casamento entre Louis e Marion (ainda como Julie) de maneira bastante casta, num romantismo artificial propositadamente clichê. O rapaz nutre tamanha adoração por sua beleza a ponto de pôr o retrato da esposa na embalagem de sua marca de cigarros. Contudo, a relação entre os dois só irá consumar-se em Aix-en-Provence, quando Louis cai de amores pela verdadeira Marion; surge um desejo sexual latente. Para enfatizar a crescente intimidade da relação entre o casal, Truffaut liberta as pulsões em cena, desvencilhando-se de Hitchcock, cuja perspectiva é sempre a de observar pelo buraco da fechadura. A mise-en-scène torna-se passional, revelando de maneira explícita a mecânica do casal que agora se permite a provocação mútua em jogos de excitação e ciúmes (o que é ainda mais evidente na versão sem cortes de “A sereia do Mississippi”, com 13 minutos adicionais).

Complicações com a investigação do detetive particular e, subsequentemente, com a polícia, levam Louis e Julie a planos de fuga cada vez mais complexos, a ponto do empresário ter de vender sua parte da fábrica de cigarros para o sócio. De volta para a ilha de Reunion para efetuar a transação, após observar brevemente a rotina familiar doméstica do amigo, ele confessa: “Não posso voltar a essa vida… não sou um homem normal, vivo à margem da sociedade”. O espírito livre de Marion trouxe à tona em Louis a coragem para o rompimento com as limitações normativas daquela pequena região, agora claustrofóbica.


Na metade de “A sereia do Mississippi”, Louis diz à Marion que vai ao cinema assistir “Arizona Jim” — um longa que não existe; é uma citação a um personagem ficcional de Jean Renoir em “Le crime de Monsieur Lange” (1936). Se Renoir reaparece para sublinhar a cosmologia do falso aparente, há outra referência cinematográfica (esta verdadeira) que irá se coadunar com a conclusão do filme. Louis leva Marion ao cinema para assistir “Johnny Guitar” (1954). Na voz de seus personagens, Truffaut exprime sua própria visão sobre a obra de Nicholas Ray: não é um faroeste banal, mas uma história de amor, onde os personagens têm sentimentos. Ao sair do cinema, o casal vê numa vitrine o casaco de plumas que é um antigo objeto de desejo de Marion. Será o último presente dado por Louis, o qual ela usará na sequência final da história.


Encurralados pela polícia em Lyon, o casal se vê sem acesso ao dinheiro obtido por Louis. Cansados de vagar, eles abrigam-se numa abandonada cabana nas redondezas glaciais de Grenoble, ponto que será o último refúgio. A falta de dinheiro deixa Marion ressabiada: ela encara a necessidade de mudar suas prioridades, caso queira manter o relacionamento. Após uma tentativa fracassada de fugir com o pouco que restou, opta por envenenar Louis aos poucos (solução idêntica à encontrada por Claude Reins para o mesmo impasse vivido junto à Ingrid Bergman em “Interlúdio”, 1946). Nos filmes de Hitchcock, as mulheres são as vítimas em potencial; em Truffaut, Louis, indefeso por sua subjugação passional, rende-se ao controle de Marion. Vemos um novo movimento de subversão formal à referência Hitchcockiana: Louis assume sua passividade para a esposa, dizendo que sabe o que ela está fazendo, mas, mesmo assim, não se arrepende de amá-la. A confissão desta afeição incondicional sensibiliza as inseguranças de Marion, que genuinamente passa a priorizar Louis acima daquilo que lhe era mais caro.

Como Joan Crawford e Sterling Hayden que, após se refugiarem numa cabana finalmente enfrentam seus algozes num árduo tiroteio, Louis e Marion descobrem o acesso ao amor verdadeiro por meio de uma via dolorosa — ainda que o confronto destes seja de caráter íntimo. “Johnny Guitar”, com o seu final colorido e esperançoso onde o casal atravessa junto uma cachoeira rumo ao “felizes para sempre”, torna-se uma referência ilusória, imageticamente contrastante ao de Louis e Marion na conclusão de “A sereia do Mississippi”. No livro de William Irish, Louis não sobrevive. Mas a empatia de Truffaut por seus personagens permite que a esperança resista na turva fronteira entre Grenoble e Suíça: Marion, usando seu desejado casaco de plumas, não segue rumo à Paris, mas tateia com Louis a possibilidade de uma sobrevivência em união, mesmo que seja tarde demais para ansiar por um final lírico de conto de fadas.

“Johnny Guitar é um falso western, da mesma maneira que A sereia do Mississippi é um falso filme de aventuras. Meus gostos me levam a parecer que me submeto às leis dos gêneros hollywoodianos. No interior de uma limitação desse tipo, experimento uma grande liberdade de ação durante todo o meu trabalho” (François Truffaut).