Projeto Truffaut X: “Domicílio conjugal”
“Domicile conjugal”, FR/1970. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Claude…
“Domicile conjugal”, FR/1970. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Claude de Givray, Bernard Revon. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Antoine Duhamel. Montagem: Agnès Guillemot. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade, Hiroko Berghauer, Daniel Ceccaldi, Claire Duhamel, Daniel Boulanger, Silvana Blasi.
Além de “O garoto selvagem”, François Truffaut realizou um segundo longa-metragem em 1970. Trata-se da quarta parte sobre o amadurecimento de Antoine Doinel, seu personagem alter-ego, intitulada “Domicílio conjugal”. Após dois longas (“Os incompreendidos”, 1959, e “Beijos proibidos”, 1968) e um curta-metragem (“Antoine & Colette”, 1962), Doinel, agora adulto e casado, enfrenta uma crise matrimonial enquanto se vê às voltas com o nascimento de seu primogênito. Truffaut, que sempre priorizou as conexões afetivas dos personagens em seus roteiros, faz da paternidade um assunto proeminente naquele ano: se em “O garoto selvagem” era o próprio realizador que, atuando como o Dr. Jean Itard, avocou para si o papel de tutor do personagem-título, agora é Doinel, encarnado em Jean-Pierre Léaud, que será responsável por seu pequenino Alphonse: “vou fazer dele o que eu nunca pude ser, um grande escritor!”.

Dando continuidade de onde “Beijos proibidos” (1968) parou, a história começa com Antoine Doinel e Christine (Claude Jade) recém-casados. Trabalhando como florista, o rapaz investiga combinações de cores aplicando pigmentos nas plantas à procura do tom ideal, que ele batiza como “vermelho perfeito”. Mas certas coisas nunca mudam: como no filme anterior, não vai demorar para Doinel se desestimular profissionalmente e cair de para-quedas numa empresa norte-americana de hidráulica, onde passa o dia efetuando testes através de barquinhos de controle-remoto em maquetes enormes. É lá que, por obra do destino, o protagonista irá conhecer a bela Kyoko (Hiroko Berghauer, top model de Pierre Cardin em seu primeiro e único filme). Esta japonesa tentará Doinel a ponto de fazê-lo pôr em crise o núcleo familiar estável que ele mesmo ansiava desde muito novo (como visto em “Os incompreendidos”), então recém-estabelecido com a chegada de seu filho.

Tão jovem quanto Doinel, Christine rapidamente concilia sua nova rotina de mãe e esposa enquanto dá aulas particulares de violino. A cena que abre “Domicílio conjugal” é bastante representativa: uma câmera baixa enfoca as pernas de Christine, juntamente com o violino e a sacola azul de mercado que carrega nas mãos, enquanto a ouvimos corrigir os interlocutores que cumprimentam-na: “Senhorita não, é senhora!”. Em contraponto à perspectiva madura e responsável da moça, Doinel, cronicamente instável, continua a ceder aos impulsos de suas idealizações. Construída sob o (estereotipado) arquétipo comportamental do Oriente, a personagem Kyoko representa não só a curiosidade de um mundo desconhecido e até então inalcançável, como também evoca indiretamente o passado do próprio protagonista. Similar ao Doinel recém-saído da adolescência de “Beijos proibidos”, a jovem japonesa é afeita a um romantismo clássico que remete à idealização, baseada nos livros de Honoré de Balzac, que caracterizava a paixão de Antoine por Mme. Tabard naquele filme. Também em consonância com as memórias líricas do novo pai-de-família é o papel da escrita como principal forma de comunicação de Kyoko, que declara seu amor por ele através de micro-bilhetinhos escondidos dentro de tulipas, meio pelo qual Christine descobrirá a infidelidade do marido.

Truffaut se inspirou nas comédias americanas dos anos 1930 de Ernst Lubitsch e Leo McCarey para a dinâmica amorosa entre os personagens de “Domicílio conjugal”, estabelecendo um contraponto a “Um só pecado”, seu filme de 1964 que aborda a infidelidade conjugal sob um viés noir. Entretanto, sendo o choque de Christine tão gravemente doloroso para caber no tom ameno de crônica urbana deste filme, Truffaut adota uma rara estilização impressionista em sua mise-en-scène, desviando do verniz realista. Ele recorre a uma trucagem para mostrar o desabrochar concomitante das tulipas, numa montagem alternada com o espanto de Christine, ao mesmo tempo em que ouvimos a japonesa assumir em voice-over: “O nome dela é Kyoko e ela te ama”. Um fade out leva à cena seguinte e Doinel chega em seu apartamento após jantar com a amante. Ao acender as luzes da sala, vemos num plano aberto Christine vestida de japonesa. O movimento de zoom-in da lente, intercalado com os planos de reação de Doinel, vai focando progressivamente o rosto de Christine, chamando nossa atenção para as suas lágrimas. O que em tese poderia ser uma reação ridícula da esposa, passa a denotar sua desilusão ao compreender que é incapaz de concorrer com as eternas idealizações inalcançáveis de Doinel.



O casal se separa e Antoine vai morar num hotel. Quanto mais tempo passa ao lado de Kyoko, Doinel percebe-se inadaptável à cultura dela. O encanto da novidade se dissipa. Ao não se encaixar nas estruturas sociais tanto do Oriente quanto do Ocidente, o personagem nunca se viu tão perdido em toda a saga de filmes empreendida por Truffaut. Sua saída é recorrer à paixão de sempre, a literatura, e escrever um romance baseado nas memórias de sua adolescência. Esta revisitação o reconecta afetivamente à Christine: uma das sequências mais sensíveis da filmografia de François Truffaut mostra o casal saindo do apartamento que compartilhavam e conversando francamente sobre seus sentimentos. O eterno carente e confuso Doinel diz que Christine é sua irmã mais nova, sua filha, sua mãe. Ela responde dizendo que só queria ser sua esposa.

Além da ambiência urbana do filme predecessor da saga Doinel, permanece em “Domicílio conjugal” a câmera fluida ao estilo de Jean Renoir, que evita os cortes e promove sutis reenquadramentos nos planos via panorâmicas, aliando-se à uma alta profundidade de campo para agregar diversas situações na mesma cena e enfatizar a sensação de rotina que caracteriza o dia-a-dia do casal principal. Doinel e Christine moram num prédio de apartamentos com um longo pátio, onde a interação constante dos moradores por meio das janelas abertas e do vai-e-vem no térreo propiciam um senso de comunidade que interliga a galeria de personagens secundários do roteiro. Bastante idiossincráticos entre si, eles são a válvula de Truffaut para expiar tanto observações do comportamento social quanto uma certa perplexidade nostálgica em relação às novidades da década que se inicia. Além deste cenário, que remete à mise-en-scène de “O crime de Monsieur Lange” (1936), outra característica bastante Renoiriana é a evocação de um determinado personagem em cena por meio da trilha-sonora: os exercícios vocais do cantor de ópera (Daniel Boulanger), vizinho de porta de Antoine Doinel, são ouvidos sempre que o protagonista percorre as escadas para entrar ou sair do apartamento. Surgindo em cena logo no início do filme, o impaciente tenor tem um método inusitado para lidar com a demora de sua esposa (Silvana Blasi) em se arrumar: ele vai na frente e joga a bolsa e o sobretudo dela nas escadas do prédio, fazendo com que finalmente a mulher saia de casa.

É justamente a mecânica desse casal maduro que se revelará um ponto norteador para a conclusão da narrativa de “Domicílio conjugal”. Ao fim de tudo, o amadurecimento impõe-se como sinônimo de envelhecimento, sendo um destino incontornável para Antoine Doinel conquistar a estabilidade alienada de seu desenvolvimento pessoal. Ele não se recusa a aceitar tal rumo; pelo contrário, depois de seu “percurso” frustrado ao outro lado do mundo, ele opta por fazê-lo de bom grado. A experiência dos mais velhos, popular quociente benéfico do amadurecer, atua como elemento auxiliador na narrativa: o telefone, outrora instalado no apartamento por insistência do pai de Christine, à revelia de Antoine, é o meio que possibilitará a reconstituição definitiva do lar do casal. Coadunando-se às atitudes dos mais velhos, tanto Antoine quanto Christine não só ingressam de vez na vida adulta, mas tornam-se também elementos da mesma engrenagem social. E se o comportamento se repete de forma tão óbvia e clichê, talvez seja porque nele resida algo objetivamente genuíno, ainda que os desvios sejam uma perda de tempo inevitável para o desenvolvimento de qualquer espírito minimamente inquisitivo.
“Vejo claramente que Antoine Doinel não é anti-social. Claro, é alguém à margem sim, mas não revolucionário (…) Doinel não quer mudar a sociedade. Desconfia e se protege dela, mas é cheio de boa vontade e desejoso, me parece, de se fazer aceitar.” (François Truffaut)