Projeto Truffaut XI: “As duas inglesas e o amor”
“Les deux anglaises et le continent”. FR/1971. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: Jean Gruault, François…
“Les deux anglaises et le continent”. FR/1971. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: Jean Gruault, François Truffaut, baseado no livro de Henri-Pierre Roché. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Georges Delerue. Montagem: Yann Dedet. Elenco: Jean-Pierre Léaud, Kika Markham, Stacey Tendeter, Sylvia Marriott, Marie Mansart, Philippe Léotard, Mark Peterson.
A filmografia de François Truffaut caracteriza-se por um cerne centrífugo irrefutável. Seu 11º longa, “As duas inglesas e o amor” (1971), é baseado no romance homônimo de Henri-Pierre Roché lançado quinze anos antes e agrega passagens dos volumosos diários pessoais do escritor francês como também de seu livro anterior, “Jules e Jim”, cuja adaptação cinematográfica de Truffaut em 1962 contribuiu para renovar os leitores desse autor até então relativamente esquecido. Sub-expostos aos créditos iniciais. a abertura de “As duas inglesas e o amor” exibe diversos exemplares do livro de Roché, numa montagem de cortes rápidos que alterna diversos ângulos do objeto em si (tanto por fechado quanto aberto, onde vemos as anotações do próprio Truffaut, que serviram de base para o roteiro adaptado). Se o frenesi da edição revela uma ânsia imagética em dar vida ao inanimado, a incorporação das marcações do diretor-roteirista mira o processo de criação formal da adaptação literária para o cinema — algo que Truffaut já abordara tangencialmente em “Fahrenheit 451” (1966), filme baseado na ficção-científica de Ray Bradbury. Contudo, naquele o tema era o impacto da ausência da escrita sobre a linguística; em “As duas inglesas e o amor”, que mapeia os encontros e desencontros amorosos entre o jovem francês Claude (Jean-Pierre Léaud) e as irmãs inglesas Anne (Kika Markham) e Muriel (Stacey Tendeter), Truffaut honra a escrita por meio da celebração do livro. Nenhum outro longa do cineasta é tão assumidamente literário no sentido de integrar à narrativa polifônica os livros, as cartas e os diários das personagens, para as quais a escrita é, além de um meio de comunicação fundamental, a maneira menos inequívoca de compreender a si mesmas.

“Esta noite, revivi a nossa história. Um dia escreverei um livro. Muriel acredita que contar a nossa história poderá ajudar os outros”. Findo os créditos iniciais, a voz do protagonista Claude atua como breve prólogo para a história e serve de reflexo para as obras de Roché e Truffaut, ambos irremediavelmente autobiográficos: as memórias, registradas no livro de 1956, deram origem ao filme de 1971. Esta breve meditação em off dará lugar à narração do próprio Truffaut, cuja perspectiva onisciente dos personagens enfatiza o aspecto literário do longa-metragem, dando continuidade à reflexão sobre o processo criativo de adaptação já sinalizado na abertura. A narração distanciada dos acontecimentos, como se afetada pelo desencanto da onisciência, colide com o estilo lírico e passional das imagens, mas sedimenta a gravidade do tempo como agente definitivo no destino das paixões. O coração do filme está na literatura por meio da devoção visual às várias dimensões da palavra escrita, impressa e falada: os planos longos parelham-se ao ritmo do discurso fluido de um extenso parágrafo (cuja utilização do efeito de fechamento da íris ao final da cena sugere o término de um capítulo), enquanto uma rima cênica de referências e semelhanças atuam como vírgulas. Os personagens parecem viver em ritmo literário, cujos incessantes diálogos são poéticos e extremamente românticos; durante a preparação do filme, Truffaut leu avidamente a biografia das irmãs Brontë, uma influência que recaiu principalmente no desfecho da personagem Anne Brown.


A história acompanha, por cerca de vinte anos, as conexões amorosas entre o trio. Apresentado por Anne, Claude apaixona-se por Muriel, mas, diante da desconfiança de ambas as mães, impõe-se ao jovem casal um afastamento por doze meses, com o objetivo de testar a solidez da reciprocidade de seus sentimentos. Vetado o hábito de remeter declarações amorosas por cartas, os dois combinam de manter diários pessoais, para trocá-los depois da separação. Contudo, envolvido com a efervescência cultural da Belle Époque parisiense, Claude se torna um crítico de arte e desiste do compromisso; Muriel quase enlouquece. Anos depois, Anne, trabalhando em um ateliê em Paris, reencontra Claude e os dois têm um caso. No fundo, Anne deseja que ele e sua irmã reconectem o antigo idílio, mas, ao saber do romance dos dois, Muriel adoece severamente e foge. Diante de um caos emocional e inspirado por uma carta confessional de Muriel, Claude recorre à criação e escreve um livro, intitulado “Jeróme et Julien”, abandonando o jornalismo cultural (aqui é inevitável mais um paralelo com o próprio François Truffaut, que deu início à carreira de cineasta após anos dando expediente como crítico na celebrada revista Cahiers du Cinéma).

As referências literárias são breves indicativos da personalidade das personagens: Anne se entretém com as poesias hedonistas de Paul Verlaine enquanto Muriel estuda a Bíblia; a mãe (Sylvia Marriott) as obrigou a ler uma tradução inglesa do cânone de Victor Hugo “Os miseráveis” antes da visita de Claude. Já “Jeróme et Julien” é o registro efetivo do triângulo amoroso pela ótica do rapaz, incorporando suas memórias em uma protagonista feminina que ao longo da vida amou, de maneira intensa, dois homens simultaneamente. Esta obra de Claude é um ponto convergente da narrativa para a unidade estilística de tons literários adotada por François Truffaut, que objetiva lidar com a alquimia da experiência pessoal convertida em texto: vemos trechos do diário de Muriel sendo escrito, depois anexados à carta entregue a Claude, que os dita à sua datilógrafa; na sequência, assistimos às prensas da editora e uma livraria expondo o exemplar já pronto na vitrine. Tal sequência coaduna-se à abertura do filme e à subsequente fala em off de Claude Roc, agora escritor. As confissões sexuais de Muriel provocam mais curiosidade do que sensibilidade no protagonista: apesar da desautorização dela em publicá-las (ainda que anonimamente), Claude não cede à sua fixação pela escrita, atento às possibilidades literárias de tais declarações incorporadas em seu manuscrito.

“As duas inglesas e o amor” é uma love story com começo, meio, mas sem fim. A ideia de eternizar uma história conecta-se à conclusão da distopia “Fahrenheit 451” (1966), onde os personagens memorizam o conteúdo dos livros com o intuito de preservá-los para a posterioridade, até o indefinido dia em que estes possam ser publicados novamente. Ambos os filmes revelam-se ainda mais intrínsecos nas referências literárias de seus respectivos protagonistas, Claude e o bombeiro Montag (que por sua vez também estava dividido entre duas mulheres, mas prezava a literatura acima de tudo): se “David Copperfield” é a obra responsável pelo despertar intelectual de Montag, Claude identifica-se com o protagonista de Charles Dickens por nunca ter conhecido o pai; no final, o bombeiro torna-se responsável por memorizar uma coletânea de contos de Edgar Allan Poe, já Claude é presenteado anonimamente com um exemplar de “Eureka”, ensaio filosófico do mesmo escritor, durante a estadia na casa das irmãs inglesas. Já a auto-reflexão sobre o processo de criação se tornará ainda mais específico em “A noite americana” (1973), seu filme metalinguístico sobre o dia-a-dia em um set de filmagens. Para além da coletânea de filmes focada em Antoine Doinel, seu alter-ego, a obra completa de François Truffaut apoia-se em um contínuo movimento interno de referências e motifs que, destinados à repetição, frisam aquilo que é tematicamente caro ao autor e estabelecem de maneira sólida uma evidente assinatura estilística.

A escultura do escritor Honoré de Balzac, feita por Auguste Rodin, que inicialmente fora ridicularizada mas tornou-se celebrada com o passar dos anos, é a ampulheta narrativa de “As duas inglesas e o amor”. O percurso de crítico de arte a escritor literário de Claude Roc é inerente ao seu amadurecimento. Introduzido ao filme brincando em meio a crianças como uma delas, 22 anos depois, o protagonista se despede da história em um plano também preenchido por um grupo de meninas ao seu redor, mas ressaltando sua desintegração. O epílogo surge como um rápido folhear de um livro: uma amálgama de acontecimentos anteriores da história constituído por objetos-fragmentos da memória. Claude está vagando pelo Museu Rodin, onde durante um passeio Anne lhe apresentou Muriel por meio de uma fotografia dela ainda pequena. “Eu pareço velho esta tarde”, pensa Claude ao ver seu próprio reflexo numa janela — entretanto, quem profere a frase não é Jean-Pierre Léaud, mas o próprio François Truffaut, num ato que perpassa a estrutura diegética do filme ao emparelhar sua função como narrador, diretor e roteirista de “As duas inglesas e o amor” à imagem-palimpsesto do rosto de Jean-Pierre Léaud, a qual, no âmbito do inconsciente cultural, acumula em si as feições de Antoine Doinel, personagem que o ator já encarnara quatro vezes ao longo da carreira. No último minuto do filme, um travelling enquadra “O beijo”, escultura de Rodin inspirada pelo intenso romance que o artista teve com Camille Claudel. Em Truffaut, como em Rodin, o sentimento do criador imortaliza-se por meio de sua obra.

“O cinema tinha que se recuperar desses cinquenta anos de hipocrisia e mentiras por omissão, no domínio das relações sexuais (…) Mais do que um filme sobre o amor físico, tentei fazer um filme físico sobre o amor” (François Truffaut)