Projeto Truffaut XII: “Uma jovem tão bela quanto eu”
“Une belle fille comme moi”. FR/1972. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: Jean-Loup Dabadie, François Truffaut…
“Une belle fille comme moi”. FR/1972. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: Jean-Loup Dabadie, François Truffaut, baseado no livro de Henry Farrell. Fotografia: Pierre-William Glenn. Música: Georges Delerue. Montagem: Yann Dedet. Elenco: Bernadette Lafont, André Dussollier, Claude Brasseur, Charles Denner, Guy Marchand, Philippe Léotard, Anne Kreis, Jérôme Zucca.
No início da década de 1970, Truffaut insere mais uma figura no seu squad de fortes protagonistas femininas que, de alguma maneira, buscam superar um status quo moralmente repressor de raízes machistas. Interpretada por Bernadette Lafont, a tal jovem bela Camille Bliss é descendente de Catherine (que é a figura em que os personagens-título de “Jules e Jim” orbitam), Julie Kohler (a obstinada vingativa de “A noiva estava de preto”) e Marion (a loira Hitchcockiana de “A sereia do Mississippi” que subverte seu próprio molde). Inclusive geograficamente, a narrativa de “Uma jovem tão bela quanto eu” parece partir da conclusão de “A noiva estava de preto”. A mesma prisão de localização indeterminada onde Julie Kohler, apesar de encarcerada, conclui o seu plano de vingança, assemelha-se à instituição onde Camille foi detida por um crime que jura não ter cometido. Mulher de indomável espírito independente, Camille é (ainda que inconscientemente) fruto da segunda onda feminista que eclodiu na França durante o Maio de 1968, advinda da insatisfação com o sistema social vigente, e que culminou no radical Movimento de Libertação das Mulheres (MLF) de 1970, o qual buscava, inclusive, a liberdade do corpo em um sentido amplo, por meio do controle sobre a própria fertilidade, da legalização do aborto e do direito ao próprio prazer com a liberação sexual. Ao lado de Simone de Beauvoir, Catherine Deneuve (protagonista de “A sereia do Mississippi”) esteve ligada ao MLF e, por mais que François Truffaut não se declarasse publicamente feminista, é bem provável que tenha sido influenciado pela posição da atriz, sua parceira conjugal na época. Embora tenha chegado aos cinemas em 1972, “Uma jovem tão bela quanto eu” era um projeto em preparação cerca de dois anos antes, quando Truffaut, ao ler o último romance escrito pelo americano Henry Farrell, lançado em 1967, se animou a adaptá-lo.

Enquanto o estilo de Farrell tendia para o thriller, Truffaut optou por transmutar o tom da história para uma comédia de humor negro com perfil sarcástico semelhante à protagonista que, bastante pragmática, está mais preocupada em garantir sua sobrevivência no mundo material do que qualquer outra coisa. Tal reserva quanto ao romantismo funciona como espécie de inversão de um dos tradicionais motifs Truffautianos. Ao contrário da maioria dos protagonistas tímidos e formais de diversos filmes do autor, Camille não possui a necessidade de provar que é digna de ser amada; pelo contrário, ela manipula a infindável carência sexual dos homens à sua volta para obter o que deseja, uma vez que suas tentativas de galgar uma equidade profissional são frequentemente barradas, ainda que de forma indireta. Se ela é construída como uma quase anti-heroína, é devido a um franco reconhecimento da ocasião: ela ascende com as armas que tem. Todavia, tal exercício estilístico não opera de maneira desconexa do universo de Truffaut: a relação entre Camille e o sociólogo Stanislas Prévine (André Dussollier), fio-condutor do enredo, é reflexo da relação entre o menino Victor e o Dr. Itard em “O garoto selvagem” (1969). Enquanto o efetivo processo de integração social do médico confunde-se com uma relação paternal em relação ao garoto, aqui o sociólogo, perdido em racionalizações vazias e clichês psicanalíticos que tentam explicar o comportamento de Camille, põe a perder sua própria tese sobre mulheres criminosas ao se apaixonar platonicamente pela jovem, assim como os demais homens que cruzaram o seu caminho.

A labiríntica trajetória de Camille é narrada retrospectivamente por meio da série de entrevistas que ela cede a Stanislas, incialmente empenhado em fomentar a sua tese. De origem pobre e órfã de mãe, ela cresceu no reformatório por estar envolvida com a morte do pai, de quem sofria abusos físicos, mas fugiu de lá quando adolescente. Casou-se com o mecânico alcóolatra Clovis (Philippe Léotard) por puro golpe de sorte (em seus relatos, Camille constantemente faz referência à Joana d‘Arc dizendo que, como ela, sempre ouve a voz do destino). Acaba se envolvendo com o chauvinista Sam Golden (Guy Marchand), cantor de bar, mas, quando o caos se arma junto ao marido, ela se esconde na caminhonete do exterminador de pragas Arthur (Charles Denner), que estava estacionada ali por perto. O oportunismo é a base da relação que se desenvolve entre Camille e Arthur, católico sexualmente reprimido, enquanto ela recorre aos favores do advogado Murène (Claude Brasseur), que surge empenhado em ajudá-la na confusão criada junto a Sam e Clovis… desde que a jovem não se oponha a retribui-lo na cama. Quando Arthur descobre que Camille tentou matar o amante e o marido após ter sido enganada pelo advogado, o católico insiste para que eles cometam um duplo suicídio, saltando da torre da catedral, a fim de extinguir seus pecados. Ao literalmente dar as costas para Arthur, ela recusa o que seria o derradeiro enquadramento moral, mas, como o rapaz não desiste da ideia e não há testemunhas no local, ela não consegue escapar do julgamento social. Camille é presa, acusada de assassinato.

Apesar das tragédias do enredo, o humor vem tanto do ritmo veloz e urgente da narrativa, composta por reviravoltas absurdas e até momentos fantásticos, quanto da encenação de Truffaut, que é centralizada na agilidade física e performática de Bernadette Lafont, responsável por caracterizar a personagem com uma debochada joie-de-vivre. São fatores que revelam a influência da comicidade das clássicas comédias americanas de Billy Wilder e Ernst Lubitsch, impressa visualmente pelo realizador na escolha em fotografar “Uma jovem tão bela quanto eu” na relação de aspecto (a razão entre a largura e a altura do quadro) de 1,33:1, conhecido como o formato padrão da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, que reinou nos longas produzidos entre os anos 1930 até meados dos 1950.

Acreditando na versão de Camille sobre o ocorrido na torre da catedral, Stanislas, com o auxílio de sua datilógrafa Hélène (Anne Kreis), busca uma prova para a inocência da moça em diversas lojas de revelação fotográfica das redondezas. Ele acredita haver algum registro feito por turistas no dia do crime. Contudo, a evidência estará nas mãos do pequeno cineasta amador Michou (Jérôme Zucca): o menino possui um filme em 8mm da torre, feito no exato momento da fatalidade. Apesar da reticência do jovem artista já temperamental, que não quer ceder o rolo porque seu filme ainda não está concluído, a película, unida às gravações de Stanislas, se torna a prova audiovisual que libertará Camille da prisão. O cinema (e as artes em geral) costumam funcionar como um momentâneo refúgio emocional e físico na filmografia de Truffaut, ajudando os protagonistas a atravessar momentos difíceis; em “Uma jovem tão bela quanto eu” este motivo atinge um ápice literal ao devolver a liberdade à Camille Bliss — liberdade esta que, custe o que custar, ela nunca mais deixará escapar novamente.

No auge do sucesso, Camille precisa lidar com as ilusões românticas de Stanislas e o conveniente retorno de seu marido à cena. Comprometida com sua necessidade de emancipação, ela engendra um plano que será a inversão genérica tanto do clichê da mulher passional criminosa quanto do cerceamento moral na sociedade; os sexos são deslocados e a conclusão do filme opõe-se ao seu início. A intensa busca de Camille por liberdade moral e material ensejava um romance ao invés de uma tese (ou uma comédia de absurdos ao invés de um ensaio, como sua própria perspectiva desproblematizada em relação aos flashbacks da trajetória nos aponta), já que as explicações teóricas do sociólogo sobre o seu comportamento a entediavam. Em “O garoto selvagem” a narrativa do processo de reintegração social era intermediada pelos diários de Dr. Itard. Aqui, Camille reclama por seu lugar de fala, pega o microfone e registra suas próprias experiências no gravador de Stanislas, ainda que suscite-se o benefício da dúvida quanto à veracidade, como qualquer relato. A lente da câmera de François Truffaut não idealiza uma forte protagonista feminina por meio de sua beleza e poder de magnetismo, mas se coloca sob o mesmo ponto de vista do que ela, unindo-se à narrativa. Se o romance de Henry Farrell focava Stanislas e os demais homens como vítimas de Camille, Truffaut enxergou os anseios feministas da personagem em meio ao zeitgeist progressista daquele momento, utilizando a via cômica como forma indireta de ironizar as perspectivas chauvinistas em relação ao movimento, reafirmando que a consciência discursiva mais precisa sobre o assunto provém da própria mulher.

“A personagem de Bernadette não representa as mulheres tal qual elas deveriam ser, mas a vida real, com seu estímulo e sobretudo com o que chamamos hoje em dia de senso da sobrevivência (…) fico muito impressionado quando vêm me dizer que ela é uma mulher desagradável. Fico pensando que essas pessoas não assistiram direito ao filme” (François Truffaut)