Projeto Truffaut XIII: “A noite americana”
“La Nuit américaine”. FR/1973. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard…
“La Nuit américaine”. FR/1973. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Jean-Louis Richard, Suzanne Schiffman. Fotografia: Pierre-William Glenn. Música: Georges Delerue. Montagem: Martine Barraquè-Curie, Yann Dedet. Elenco: François Truffaut, Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Léaud, Valentina Cortese, Jean-Pierre Aumont, Dani, Nathalie Baye, Jean Champion, Alexandra Stewart, Nike Arrighi.
“Eis por que sou o mais feliz dos homens:
realizo meus sonhos e sou pago para isso, sou diretor de cinema”.
(François Truffaut, revista “Squire”, 1969)

A cena introdutória de “A noite americana” desenvolve-se em uma praça parisiense, onde a câmera segue um rapaz dentre os passantes. O tom corriqueiro é interrompido quando, ao confrontar um homem mais velho, ele se detém e, sem trocar uma palavra, o jovem deflagra um violento tapa em seu rosto. O sobressalto é ainda maior porque, no exato momento em que a mão de um encosta a face do outro, ouvimos alguém dizer: “corta!”. O fluxo foi interrompido pela intrusão de François Truffaut em cena — ou melhor, do diretor de cinema Ferrand, personagem que está a filmar o seu mais novo longa, intitulado “Je vous presenté Pamela” (Quero apresentar-lhes Pamela). Em sua constituição imagética e interior, Ferrand, interpretado pelo próprio Truffaut, assume-se como reflexo do realizador de “A noite americana”.
O que François Truffaut nos apresenta aqui é uma dedicatória à arte, escrita sob a perspectiva prática de um artesão apaixonado por seu ofício de fazer “cinema”, arte que conjuga em si própria outras diversas. Ao registrar as gravações do filme ficcional realizado por Ferrand, o roteiro de “A noite americana”, escrito por Truffaut em colaboração com Suzanne Schiffman e Jean-Louis Richard, investiga essa paixão por meio do árduo caminho da desmistificação, expondo os detalhes da produção de um longa-metragem de forma bastante fiel à realidade de um set de filmagens. Em seu 14º longa-metragem, o autodidata Truffaut, que iniciou a carreira numa época em que o cinema ainda não dispunha de uma formação acadêmica, já estava bastante familiarizado com a rotina de uma produção. Através de “Je vous presenté Pamela”, “A noite americana” afirma que este é um processo caracterizado pela intensa dinâmica entre os membros de uma numerosa equipe e guiado pela responsabilidade do diretor, que, em sua função, dá a palavra final para infinitas decisões estratégicas.
A produção de “Je vous presenté Pamela” se dá nos Studios de la Victorine, situado em Nice, ao sul da França. Ainda em atividade, este estúdio cinematográfico foi construído na era dos filmes mudos, com o objetivo de importar o modo de produção hollywoodiano para a Riviera Francesa. Ao fincar as cenas do “filme dentro do filme” como pólos que desenvolvem a narrativa de “A noite americana”, mostrando como as mesmas são rodadas e o esforço de equipe que elas mobilizam, François Truffaut converge, tanto espacialmente quanto temporalmente, todas as ações da trama sobre os bastidores para o mesmo local e período das filmagens de “Je vous presenté Pamela”. Diante disso, assim como a equipe técnica está integralmente dedicada à produção enquanto durar o cronograma de trabalho, nós, espectadores, ficamos restritos aos Studios de la Victorine e ao hotel que os acomodam durante quase toda a projeção de “A noite americana” (a exceção está em dois momentos em que acompanhamos o percurso de atores ao aeroporto). Caracterizada por uma inquieta câmera na mão e uma decupagem acelerada, a linguagem adotada em “A noite americana” busca espreitar as demandas simultâneas do set. Nossa cumplicidade é cara a Truffaut: a proximidade da câmera, que observa tanto o processo de trabalho quanto as interrelações entre Ferrand e sua equipe, solicita que compartilhemos desta dedicação coletiva ao cinema.




Após a ordem de Ferrand que interrompe o fluxo de “Je vous presenté Pamela”, um encadeamento de diversos planos rápidos vem apresentar os membros principais da equipe técnica. A comparação entre o plano longo inicial e esta decupagem acelerada já sinaliza a diferença entre as unidades estilísticas que caracterizam a realidade proposta por François Truffaut e o “filme dentro do filme”. Capitaneada por Ferrand, a equipe é formada pela script-girl Joëlle (Nathalie Baye), a estagiária Liliane (Dani), o contrarregra Bernard (Bernard Menez) e a maquiadora Odile (Nike Arrighi), todos sob os olhares atentos dos produtores Bertrand (Jean Champion) e Lajoie (Gaston Joly), o último, sempre acompanhado da esposa ciumenta, a dona-de-casa Mme. Lajoie (Zénaïde Rossi). Introduzida a trupe, um novo take da mesma cena introdutória é feito, só que, desta vez, temos acesso às ordens de Ferrand para a equipe, por meio da voz-off. A numerosa quantidade de micro-detalhes gerenciados esvaem o aspecto banal da cena: uma preparação dispendiosa é necessária para rodar um simples plano que dura pouco mais do que um minuto e, caso o resultado não seja o almejado, é necessário repetir todo o trabalho (conforme apontado pela claquete mostrada em tela, revelando que este já é o quarto take rodado da mesma cena). O paralelo entre esforço e resultado será reafirmado por “A noite americana” em diversas sequências.
Enquanto François Truffaut adota uma linguagem de estilo direto para abordar os bastidores do “filme dentro do filme”, inserindo o espectador como um membro adicional da equipe de filmagens, “Je vous presenté Pamela” é um melodrama de encenação clássica, mais rígida, ancorada na marcação dos atores pelo cenário, sem espaço para improvisações. Seu elenco é formado pelo jovem ator francês Alphonse (Jean-Pierre Léaud), par romântico da personagem-título vivida pela starlet inglesa Julie Baker (Jacqueline Bisset), além dos figurões experientes Séverine (Valentina Cortese) e Alexandre (Jean-Pierre Aumont) interpretando os pais do personagem de Alphonse. Trasladando a ficção, a escalação de “A noite americana” para o elenco de “Je vous presenté Pamela” vem propor uma reflexividade indireta. Basta considerar o status destes atores em 1972, ano que o filme de Truffaut foi rodado: Jean-Pierre Aumont já era um ator popular na França antes mesmo da Segunda Guerra Mundial; Valentina Cortese fora dirigida por Franco Zeffirelli e Michelangelo Antonioni, além de ter feito par romântico com Spencer Tracy e James Stewart em Hollywood; Jacqueline Bisset, em franca ascensão midiática, ganhou o Globo de Ouro de Nova Estrela apenas quatro anos antes; e Jean-Pierre Léaud, ator descoberto ainda garoto por Truffaut, que o escalou como o protagonista de “Os incompreendidos” (1959), começava a se estabelecer na indústria por meio de trabalhos bem-sucedidos com Jean-Luc Godard e Bernardo Bertolucci. “A noite americana” promove a amálgama destes atores já conhecidos do público com rostos estreantes escalados para representar a equipe técnica, que, adicionalmente, congrega em si diversos profissionais representando a si mesmos (como por exemplo, o assistente de direção Jean-François Stévenin e os montadores Yann Dedet e Martine Barraqué).
O roteiro de Truffaut não impõe uma hierarquia entre os membros da equipe; pelo contrário, todos possuem uma função indispensável, além de compartilhar uma afinada sintonia de convivência que é calcada na paixão pelo “cinematográfico” (ou seja, tanto pela produção quanto pela fruição do cinema como prazer — afinal, nos raros momentos de descanso, a forma de lazer favorita do grupo é frequentar alguma sala de exibição nas proximidades). Até o produtor, comumente a figura que enxerga tudo exclusivamente sob a perspectiva financeira do negócio, afirma que permanece no ramo do cinema por amor, já que a indústria imobiliária seria mais rentável. Os técnicos de “Je vous presenté Pamela” se portam como uma verdadeira trupe e, apesar da longa jornada de trabalho diária, o clima é predominantemente de colônia de férias. Somente um fator externo gravíssimo como a morte seria capaz de afastar um membro dos Studios de la Victorine. François Truffaut alude aí a um modus operandi característico do cinema francês desde os tempos do pioneiro realizador Louis Feuillade que, no início do século XX, possuía uma equipe técnica e uma companhia de atores fixas, gerenciando-os de maneira paternal, passando, literalmente, o dia inteiro filmando juntos.

A trama de “Je vous presenté Pamela” é tão simples quanto melodramática. O par romântico formado pela protagonista, interpretada por Julie Baker, e o personagem vivido por Alphonse, passa um fim de semana com os pais dele (interpretados por Alexandre e Séverine). Durante a estadia, Pamela e o sogro se apaixonam e planejam fugir juntos; a ocorrência de uma fatalidade irá separar o casal (trata-se de uma sinopse similar ao filme que Louis Malle viria dirigir exatos 20 anos depois, “Perdas e danos”, com Juliette Binoche e Jeremy Irons). Contudo, “A noite americana” parece relativizar esse aspecto genérico ao apontar que as experiências de vida e de arte se retroalimentam, máxima que o roteirista Truffaut sempre considerou em seus projetos. Afinal, conflitos amorosos proliferam na “realidade” dos bastidores que circundam a produção de “Je vous presenté Pamela”: Alphonse é dispensado por sua parceira, a estagiária Liliane, que foge com um ator-dublê; Julie é casada com um homem bem mais velho, o psicanalista Dr. Nelson, que abandonou sua antiga família por ela; Alphonse e Julie têm uma aventura sexual, mas, apesar dele se apaixonar, ela retorna para o marido; Alexandre envolve-se com o jovem tenista Christian, mas uma tragédia automobilística os separa.
O contraste entre a encenação clássica de “Je vous presentè Pamela” e a abordagem imediata utilizada por Truffaut em “A noite americana” (que, ao eliminar a invisibilidade do espaço “secreto” da criação cinematográfica, já desintegra a operação da dramaturgia clássica) é um tropo para o conceito técnico fotográfico que batiza o longa-metragem. “La nuit américaine”, conhecido em inglês como “day for night”, é um procedimento de manipulação visual onde as cenas noturnas previstas no roteiro são rodadas durante o dia, filmadas com um filtro especial na lente da câmera para dar a falsa impressão da noite. O que o realizador nos propõe em “A noite americana” é ultrapassar a aura do objeto fílmico, revelar que há um mundo existente além dos limites do quadro da câmera que engendram o resultado usufruído por nós, espectadores, na tela do cinema. Ao ater “A noite americana” ao período das filmagens, excluindo as etapas de pré e pós-produção e de lançamento de “Je vous presenté Pamela”, Truffaut desmistifica também a romantização popular de que o artista está vinculado unicamente a uma energia criativa guiada pela inspiração para obter um grande sucesso, trazendo à tona o esforço físico necessário para gerar uma obra de arte. Não caberia ao cineasta tomar o atalho de produzir o making-of de qualquer um de seus filmes anteriores — uma vez que ele já era um membro arraigado na cultura pop cinematográfica, seus longas se tornam indissociáveis das etapas de criação e de recepção do público. Cabe salientar que François Truffaut não quer obliterar o objeto fílmico, por isso, para desvendar o “filme dentro do filme”, constrói a “realidade” que é proposta na ficção de “A noite americana”, por sua vez baseada em diversas experiências reais vividas ao longo de sua carreira. A quem questiona se o fato de estudar cinema gera a eliminação da fantasia característica ao meio, Truffaut garante que não: ele acredita na existência de uma aura própria ao ofício de “fazer cinema” que é tão lírica e emocionante quanto o resultado final.
É curioso o fato da técnica presente no título não ser literalmente posta em prática nem no “filme dentro do filme”, nem fora dele. Todavia, como o filtro na lente da câmera que se interpõe entre a encenação e o registro na película, o próprio olhar de “A noite americana” intervém de maneira proposital durante as cenas em rodagem de “Je vous presenté Pamela”. Isto é feito majoritariamente de duas maneiras: por meio de cortes secos que transferem o ponto-de-vista da lente da câmera que está filmando tal cena para mostrar ela própria em funcionamento, sendo operada pela equipe técnica através das ordens de Ferrand, ou por meio de crane shots (o movimento de câmera efetuado verticalmente através de uma grua) de baixo para cima, a partir da cena em produção, até englobar a equipe técnica que a opera. Ou seja, o estabelecimento do “ponto-de-vista” é o mecanismo principal adotado por François Truffaut para subsidiar uma cosmologia estética que o permita transitar visualmente entre os dois mundos. Apesar de adotar uma linguagem direta e uma decupagem bastante objetiva, sem espaço para divagações criativas ou estilizações, Truffaut exige que seu filme não seja um mero retrato burocrático do dia-a-dia em um set de filmagens. Para que possamos nos entreter com o processo de feitura das cenas de “Je vous presenté Pamela”, o investimento dramático do roteiro de “A noite americana” se põe no fora-de-campo do “filme dentro do filme”; por isso, os efeitos dramatúrgicos das cenas filmadas pela equipe técnica não se concretizam internamente.
A hegemonia do enredo de “A noite americana” sobre a trama de “Je vous presenté Pamela” é evidente na sequência em que a atriz Séverine, contracenando com Alexandre, tem dificuldades em acertar suas marcações de cena. Mais importante do que a séria discussão entre o casal de personagens prevista no roteiro, a inconstância do desempenho de Séverine é a verdadeira tensão dramática da sequência: toda a equipe técnica de “Je vous presenté Pamela” está operando em função de sua performance. Os efeitos do alcoolismo afetam a memória de Séverine e ela tem dificuldade de lembrar tanto das falas quanto da porta correta a ser aberta na conclusão da cena, o que exige diversos novos takes. Constrangida, Séverine joga a culpa de sua ineficiência na presença da maquiadora Odile, que participa da cena como figurante, alegando que a dupla função da outra atrapalha sua concentração. Por ser o membro que opera na transformação física de atores em personagens, Odile será um dos elementos principais na narrativa de Truffaut. Sua presença na mise-en-scène vem sinalizar momentos em que se dissipam as fronteiras entre a ficção de “Je vous presenté Pamela”, a “realidade” fenomenológica proposta em “A noite americana” e as influências advindas da filmografia do realizador francês.



Por ser um filme que trata do meio cinematográfico pela estratégia anti-ilusionista do “filme dentro do filme”, “A noite americana” é exemplificador de uma estrutura denominada “construção em abismo” ou “mise-en-abyme”. François Truffaut opera esta estrutura por meio de duas reflexividades: a metacinematográfica (uma vez que “A noite americana” concentra-se nas filmagens per se de “Je vous presenté Pamela”, revelando os dispositivos fílmico e profissional que tornam possíveis a ilusão cinematográfica) e a fílmica (devido à inclusão de parâmetros estilísticos e técnicas narrativas autorreferentes, tanto de seus filmes anteriores, quanto da experiência do cineasta francês durante a produção dos mesmos). Através de ambas, Truffaut cristaliza o tema de sua obra, que é a própria devoção pelo ofício de “fazer” cinema.
Excluindo tanto a pré quanto a pós-produção de “Je vous presenté Pamela” do trajeto narrativo de “A noite americana”, o filme de Truffaut se diferencia de “8 e ½” (de Federico Fellini), também uma “construção em abismo” cinematográfica, mas restrita à etapa embrionária da criação de uma obra de arte, cuja ausência de inspiração a torna desgastante para seu protagonista, o diretor de cinema Guido Anselmi, vivido por Marcello Mastroianni. Entretanto, Truffaut se aproxima estruturalmente ao filme de Fellini por arquitetar uma espécie de dupla construção em abismo: “Je vous presenté Pamela”, à primeira vista um melodrama clássico formalmente distante das realizações anteriores do cineasta francês, contém, além das referências que ensejam a reflexividade fílmica, uma série de espelhamentos que dialogam com a própria trama que o cerca — isto é, a de “A noite americana”. Isto possibilita enxergamos “Je vous presenté Pamela” como um reflexo de “A noite americana”, além de ambos espelharem concomitantemente a filmografia de François Truffaut, concretizando assim um desdobramento da mise-en-abyme.
Por agregar diversas autorreferências, “A noite americana” se propõe fiel ao movimento de redução das barreiras entre a “realidade” fenomenológica proposta, a “ficção” que se constrói dentro dela e a filmografia de François Truffaut. Não à toa, é possível segmentar essas autorreferências em dois grupos: aquelas que citam a saga de filmes protagonizados por Antoine Doinel, o alter-ego de Truffaut (todos com roteiro original escrito pelo próprio diretor) e as que se referenciam aos demais longas realizados pelo cineasta francês até então (baseados em obras literárias ou fontes verídicas, como por exemplo “Jules e Jim” e “Um só pecado”, respectivamente). Este último grupo é mencionado com frequência no interior de “Je vous presenté Pamela”, enquanto o primeiro é majoritariamente citado na parte da narrativa dedicada a representar a realidade de um set de filmagens. Além disto, os motivos visuais característicos da estilística de Truffaut estão presentes em ambos, como o surgimento inesperado do fogo, carícias na face que são o prelúdio de um beijo, livros que funcionam como representações iconográficas, cenas que se estruturam na comunicação de dois personagens entre janelas, etc.



Citações a outros realizadores também é uma constante nos filmes de François Truffaut. No fundo, é um traço em comum na geração de cineastas contemporâneos a ele, cuja formação cultural foi calcada no consumo do cinema clássico hollywoodiano, que teve seu auge até a década de 1950. Em “A noite americana”, contudo, Truffaut não utiliza este tipo de citação como significantes que expandem a narrativa do filme para além de si mesmo ao aludir às obras dos outros, mas as assume como guias para o ofício de Ferrand. Na cena em que o diretor tenta, ao mesmo, resolver um imbróglio junto ao produtor Bertrand e analisar o tema musical composto por Georges Delerue para “Je vous presenté Pamela” (que, inexoravelmente, se torna a trilha de “A noite americana”), um pacote lhe é entregue por sua secretária. Interrompendo brevemente a tensão do momento, a câmera se detém a esmiuçar o conteúdo do pacote: uma série de monografias dedicadas a cineastas. Após o breve ínterim, Ferrand, mais assertivo, convence o produtor de seu ponto-de-vista e aprova a música de Delerue. Em suma: as citações servem menos para o ato de mimetizar como forma de admiração (por meio da possível inserção de uma cena em “Je vous presenté Pamela” que evocasse o trabalho anterior de algum desses cineastas, por exemplo), do que para manifestar a influência da oeuvre dos realizadores na formação artística de Ferrand. Uma influência que, adicionalmente, tem a capacidade de evocar no personagem a confiança necessária para desempenhar sua função da maneira que crê ser a melhor possível.



Apesar da pressão, é necessário que o artista-artesão se atenha ao que é genuíno. Somando-se à citação dos realizadores, os sonhos do diretor de “Je vous presenté Pamela” ecoam a origem da cinefilia em sua vida. Mais uma vez, os limites entre Ferrand e François Truffaut são abreviados. Introduzidos pela lembrança dos questionamentos feitos por um visitante ao set (“por que você não faz filmes políticos, não faz filmes eróticos?”, mesma cobrança efetuada a Truffaut pelos jornalistas no início dos anos 1970), os sonhos sempre recaem na projeção de um púbere Ferrand que, vagando sozinho pela madrugada, detém-se à fachada de um cinema e rouba as fotos promocionais de “Cidadão Kane” (1941), o incontestável clássico noir de Orson Welles. O ato de roubar as fotografias aponta para um viés fetichista da descoberta da cinefilia (definida como a experiência estética oriunda do amor pela arte cinematográfica). Assistir a um filme e encantar-se ou divertir-se com ele não é o bastante; é preciso ter para si um fragmento possível, perante a inviabilidade de possuir o objeto fílmico completo. Se Orson Welles não aparece dentre as monografias da sequência anterior, para ser acenado por meio de “Cidadão Kane”, é para frisar aqui a fascinação pelo cinema hollywoodiano em sua transição do período clássico para o moderno como motivo do despertar da cinefilia. Recém-nascido graças às atualizações estilísticas promovidas por Welles em sua obra, este estágio evolutivo do filme norte-americano maturou analiticamente Truffaut e seus futuros colegas críticos na revista especializada Cahiers du Cinéma, possibilitando a descoberta do cinema para além de seu papel como entretenimento.



Durante os créditos iniciais de “A noite americana”, ouvimos o maestro Georges Delerue conduzindo a orquestra no momento em que grava o tema musical que será avaliado por Ferrand posteriormente, na já comentada cena em que ele recebe o pacote de livros sobre cineastas. Ao lado dos créditos, vemos uma simulação das faixas sonoras laterais da película, que registram o áudio do filme. Esta construção visual vem fazer a ponte entre Delerue e Ferrand/Truffaut: em comum, eles dirigem um grupo de artistas que precisa estar em plena sintonia para dar a luz à obra almejada. Ao expor as ordens de Delerue durante a preparação da trilha e a parte da película que não vemos no decorrer da projeção no cinema, Truffaut já apresenta a lógica que rege o universo interno de “A noite americana”: traçar o percurso entre produção e resultado na imagem, introduzindo o fora-de-campo (lugar de enunciação da criação cinematográfica) e promovendo a dissipação das fronteiras entre a obra de ficção interior e as “realidades” que a circundam, tanto a fenomenológica criada pelo cineasta francês, quanto aquela que penetra seu próprio filme. Escalar a si mesmo para o papel de um cineasta em um filme sobre a produção de uma obra cinematográfica é o maior exemplo desta dissipação. As narrações de Ferrand durante a produção de “Je vous presenté Pamela”, além de reforçar a linguagem direta que aproxima o espectador da equipe técnica, também soam como uma confissão particular do realizador. “Um diretor de cinema é alguém que responde a todos os tipos de perguntas, mas nem sempre sabe as respostas corretas”, Ferrand nos desabafa em voz-off, durante um plano longo bastante dinâmico pela instabilidade da câmera na mão, onde o personagem é interpelado por uma série de membros da equipe que solicitam uma definição a respeito de figurinos, locações e cenários, ao mesmo tempo em que é pressionado pelos produtores a concluir as filmagens antes do prazo inicialmente pactuado. Diferenciando-se do protagonista em crise de “8 e ½”, Ferrand não se esquiva das solicitações dos colegas, por mais que não esteja totalmente seguro de sua resposta. Truffaut poderia ter utilizado a voz-off para evocar uma retórica de teor mítico, que pusesse o cineasta em uma posição de autor privilegiado por uma inspiração singular, mas, fiel ao conceito de desvelamento de “A noite americana”, o papel do diretor é definido através de seu laboro prático e rotineiro. Os diversos crane-shots, que efetuam o movimento de descida da câmera a partir de uma distanciada visão superior do set de filmagens até o nível térreo, onde se infiltra em meio a equipe técnica, visualmente destituem o cineasta do pedestal autorista. Contudo, não se deve deduzir que Ferrand é um mero funcionário dessa indústria que movimenta milhões: ele tem seus questionamentos internos (como a sequência do sonho nos revela) e, apesar da devoção exclusiva às filmagens de “Je vous presenté Pamela”, permanece inseguro em relação ao resultado final. Segundo Ferrand/Truffaut nos confessa, “Fazer um filme é como uma viagem de diligência pelo Velho Oeste: você começa torcendo por uma viagem tranquila, mas depois só quer saber quando finalmente vai chegar ao destino”.




Além da camisa azul e do casaco de cabedal preto (pertencentes ao próprio guarda-roupa de François Truffaut), a caracterização de Ferrand inclui um aparelho para surdez no ouvido esquerdo. Alphonse conta à Liliane que Ferrand perdeu a audição durante o serviço militar, onde atuou na artilharia. Além de ser mais uma referência que conecta o personagem a Truffaut, uma vez que ele próprio era surdo pelo mesmo motivo, a inserção deste detalhe na caracterização aponta para um motivo constante nos filmes do realizador francês: o valor da comunicação através da linguagem. Certas obras trazem isso no bojo de seus temas, como “Fahrenheit 451” (1966), que trata sobre a interdição à palavra escrita em uma sociedade totalitária, ou “O garoto selvagem” (1970), que aborda a educação como ferramenta para a ressocialização de uma criança; já outras refletem sobre tal questão tangencialmente, como as cartas que expõem os sentimentos do triângulo amoroso em “As duas inglesas e o amor” (1971) ou a protagonista que se reapropria do seu direito de fala para recuperar a liberdade em “Uma jovem tão bela quanto eu” (1972). Acoplado ao diretor Ferrand, o aparelho de surdez indica um anseio pela comunicação mais limpa e eficaz possível perante os diversos questionamentos de sua equipe, distanciando-o do estereótipo do líder tirânico e intransigente. Embora consciente de sua posição gerencial em relação aos demais membros técnicos da produção de “Je vous presenté Pamela”, a postura de Ferrand é sempre gentil e compreensiva.
Se a esta altura já é clara a simbiose entre Ferrand e Truffaut, cabe frisar que ela se conecta à reflexividade que interliga Jean-Pierre Léaud ao seu personagem-ator, Alphonse. Esta conexão é revelada através da decupagem de “A noite americana” no plano em que a maquiadora Odile, que antes confundira Séverine por atuar como figurante, opera na mise-en-scène como ponte visual entre Ferrand e Alphonse. Após três longas — “Os incompreendidos” (1959), “Beijos proibidos” (1968) e “Domicílio Conjugal” (1970) — e um curta-metragem — “Antoine e Colette” (1962) — onde Jean-Pierre Léaud encarnou Antoine Doinel, o personagem alter-ego de Truffaut, as imagens do ator e do diretor já são conexas no subconsciente cinematográfico espectatorial. O roteiro, ao inserir referências desses três longa-metragens no entorno de Alphonse e Ferrand, embaraça qualquer tentativa de dissociação. Enquanto “Os incompreendidos” está nos sonhos de Ferrand, a parceira de Alphonse nos bastidores do set, Liliane, dá o prognóstico de sua carência emocional dizendo as mesmas palavras que a esposa de Antoine Doinel utiliza para o protagonista de “Domicílio conjugal”. Ora, se em 1972, Léaud é um jovem ator que começa a se estabelecer na indústria assim como Alphonse, personagem que evoca Doinel, espelho de Truffaut, que por sua vez compõe também Ferrand, então as fronteiras da imagem continuam a ser trasladadas, da “realidade dos bastidores” proposta em “A noite americana” para a vida real. Cabe ressaltar que, posteriormente, François Truffaut fará questão de confirmar o vínculo entre Alphonse e Doinel em “O amor em fuga” (1979), longa que encerra a saga de seu alter-ego, ao incluir cenas de “A noite americana” como se fossem flashbacks do protagonista.


Na ausência de Alphonse no set, é o próprio Ferrand quem dita as falas para sua colega de cena, a atriz Julie Baker. Inclusive, como Truffaut, Ferrand acumula a função de roteirista e tem por hábito entregar as falas para os atores apenas na noite anterior à rodagem da cena. Tanto em “A noite americana” como em seus demais filmes, uma vez que continuamente escreveu os roteiros que filmava, François Truffaut buscava espontaneidade nos diálogos e estava sempre aberto às improvisações; entregá-los à sua equipe em cima da hora era um método de transformar as falas em um meio-termo entre o seu vocabulário e o dos atores, deixando-as assim mais espontâneas. Improvisar, para ele, incluía até um certo atrevimento: determinadas falas da personagem Catherine de “Jules e Jim” (1962) são confidências de bastidores ditas pela atriz, Jeanne Moreau, que enfrentava conflitos sentimentais durante a produção do filme. Isto é citado em “A noite americana” quando a personagem-título de “Je vous presenté Pamela” ganha falas que replicam reflexões íntimas compartilhadas minutos antes por Julie Baker a Ferrand. Julie espanta-se com o atrevimento de Ferrand — principalmente porque o conflito amoroso em que ela se encontrava envolvia tanto o seu par romântico em cena, Alphonse, quanto o marido, Dr. Nelson, que visitava os Studios de la Victorine. Apesar disso, a atriz não se recusa a seguir o script que lhe é trazido pela maquiadora Odile (mais uma vez, peça visual atuante na dissolução das barreiras da mise-en-abyme).

Referindo-se à Julie Baker, Ferrand esclarece que é a primeira vez que escala uma atriz que não conhecera pessoalmente antes; o mesmo sucede com François Truffaut em relação à sua intérprete, Jacqueline Bisset. Inclusive, o que poderia ser encarado como um descuido de enquadramento se torna um motivo que sublinha o desvendamento anti-ilusionista proposto pelo realizador em “A noite americana”. Quando Ferrand avalia o book fotográfico de Julie, a câmera assume seu ponto-de-vista e observamos o nome de Jacqueline Bisset na parte inferior de um dos retratos. Isto, somado ao comentário do desempenho de Julie Baker em um filme famoso por suas cenas de perseguições de carros (evidente referência ao longa de Peter Yates, “Bullit”, famoso pelas inovadoras sequências de ação em San Francisco e que catapultou Bisset à fama), dissipa os perímetros no efeito de duplicação da “atriz que interpreta uma atriz”. A peruca curta usada na caracterização de Pamela remete ao artifício sugerido por Julie Christie na composição de Clarisse, uma de suas personagens em “Fahrenheit 451” (1966); ambas inglesas e então recém-lançadas ao estrelato, Christie e a personagem-atriz de Truffaut compartilham mais do que o primeiro nome.
Cabe ao ator dispor seu corpo para o personagem que interpreta. Como o filtro na lente da câmera que permite a transformação do dia em noite no efeito imagético que batiza “A noite americana”, o corpo do ator é o meio em que se opera a sublimação de consciência que permite a ele abdicar momentaneamente de sua personalidade para encarnar o que o roteiro lhe solicita. Devido à necessidade de preparação prévia da mise-en-scène para o registro da câmera, no cinema a história é encenada de maneira fragmentada, e muitas vezes, pela mesma razão, rodada fora da ordem em que ela sucede no roteiro. Por consequência, o ato de entrar e sair do personagem é, ao mesmo tempo, mais fugaz e repetitório para o seu intérprete, se comparado à apresentação de uma peça de teatro. Findo os créditos iniciais de “A noite americana”, um insert assinado por François Truffaut dedica seu filme às irmãs Lilian e Dorothy Gish, celebradas como as duas primeiras verdadeiras atrizes de cinema. Elas foram descobertas pelo pioneiro cineasta americano D.W. Griffith, famoso por suas técnicas narrativas que sedimentaram a linguagem cinematográfica de Hollywood, e o trio fez juntos uma série de êxitos entre as duas primeiras décadas do século XX. Não há hierarquia interna na equipe comandada por Ferrand, o que reflete o universo da própria produção do filme de Truffaut, onde intérpretes consagrados se misturam com atores iniciantes que fazem o papel de técnicos e com os verdadeiros técnicos que atuam como si mesmos. Entretanto, apesar do protagonista ser o próprio “filme dentro do filme” uma vez que tudo gira em torno dele, boa parte do investimento dramatúrgico da trama de “A noite americana” está no comportamento dos atores no set de filmagens, algo que põe Ferrand e seus companheiros em situações delicadas. São exemplos disso: o colapso nervoso de Julie; a imaturidade emocional de Alphonse; a gravidez ocultada por Stacey; a falta de memória de Severine; e até mesmo o gato que se recusa veementemente a obedecer o que lhe é ordenado. Renunciando a um olhar a partir da velha mitificação ilusória das stars, Truffaut não se opõe à fama egocêntrica que ronda os atores, afinal, há cenas em que três intérpretes diferentes deliberadamente alteram o foco da trama de “Je vous presenté Pamela” ao narrar a sinopse a partir da perspectiva de seu próprio personagem. Entretanto, os contratempos de Ferrand com os atores são atenuados pela compreensão do próprio Truffaut, que insere uma justificativa no roteiro de “A noite americana” através do personagem Dr. Nelson, terapeuta casado com Julie (ou seja, um “porta-voz” de credibilidade psicológica na história, uma vez que a atriz era sua paciente antes do enlace). Em uma conversa com Alexandre, Dr. Nelson declara que é normal os atores serem tão vulneráveis, uma vez que estão constantemente na mira do julgamento alheio, seja profissionalmente ou em suas vidas privadas, e nenhum ser humano gosta de ser julgado. Alexandre concorda e adiciona que a constante necessidade de uma via-dupla de demonstrações de afeto a qual todos os artistas compartilham é fruto dessa incessante cobrança que os cerca.
Como o desenrolar da trama nos mostra, somente a morte é capaz de afastar um membro da equipe dos Studios de la Victorine antes de seu trabalho ter sido concluído. Uma exceção foge à regra: a estagiária Liliane, namorada de Alphonse. Assumindo que não tem aptidão para trabalhar no cinema e impaciente com a carência afetiva de seu parceiro, ela foge no carro do ator-dublê de Julie, que parte após concluir a filmagem do acidente de carro que vitimiza a personagem-título de “Je vous presenté Pamela”. Ou seja, Truffaut reprova Liliane no estágio justamente por ela não dar conta daquilo que lhe é mais importante durante a produção de um filme: a capacidade de lidar com a sensibilidade dos atores de maneira efetiva. O sumiço de Liliane, minutos antes de registrarem a fotografia da equipe técnica, causa um desentendimento que provoca um interstício nas filmagens. Desolado, Alphonse ameaça abandonar as filmagens; tentando evitar sua deserção, Julie dorme com ele. O ato vem evocar “Beijos proibidos” (1968), segundo longa-metragem da saga Antoine Doinel, onde a experiente Mme. Tabard transa com o protagonista como tentativa de desconstruir sua romantização exagerada pelo sexo feminino. Alphonse busca exatamente a mesma questão de Doinel: “As mulheres são mágicas?”. Como Mme. Tabard, Julie almeja fazê-lo enxergar que todos os seres humanos são comuns, aquém de qualquer mistificação. Mas, ao contrário de sua antecessora, o choque de realidade promovido pela atriz é ineficaz e Alphonse se apaixona por ela, a ponto de telefonar para Dr. Nelson e contar toda a situação. Julie tem um colapso nervoso, se tranca no camarim, e, apesar dos esforços de Ferrand, só a chegada apaziguadora de seu marido é capaz de fazê-la retornar ao set de filmagens.
As gravações são novamente interrompidas, desta vez por uma tragédia: o ator Alexandre sofre um acidente automobilístico fatal quando retornava do aeroporto de Nice. É o grande turning point em “A noite americana”, representado visualmente pela decupagem de François Truffaut. Estamos atento à tensão que ronda o reencontro de Julie e Alphonse depois de toda a confusão ocorrida, onde, na gravação de uma cena romântica, ela terá que repetir as confidências que fizera a Ferrand, graças às improvisações que o diretor-roteirista inseriu nas falas de Pamela. Paralelamente a isso, o produtor Bertrand invade o estúdio. A equipe se esforça em silenciá-lo, para não interromper o fluxo da gravação, e o take é concluído. Bertrand, então, anuncia o falecimento de Alexandre para toda a equipe. A decupagem da sequência é formatada por meio de uma montagem em paralelo, revezando entre o ponto de vista das cenas captadas pela câmera de “Je vous presenté Pamela” e a perspectiva de “A noite americana”, que registra sua produção. Propiciando a tensão da performance entre Alphonse e Julie, os planos do “filme dentro do filme” são mais extensos, entrecortados pelos planos curtos da equipe técnica em ação. Pela primeira vez, ouvimos a música-tema de Georges Delerue como parte integrante da mise-en-scène de “Je vous presenté Pamela” (é a mesma música que Ferrand/Truffaut avaliou durante a cena em que abria o pacote de livros sobre cineastas). Contudo, uma vez que o tema musical de “Je vous presenté Pamela” é, indissociavelmente, o mesmo de “A noite americana”, o retorno deste elemento híbrido opera como o prenúncio de que a “vida real”, ou melhor, a realidade fenomenológica proposta por Truffaut, penetra a ficção de Ferrand para interrompê-la.





O acidente de Alexandre foi exatamente o mesmo ocorrido à jovem atriz Françoise Dorléac. Morta precocemente em 1967, ela era amiga de Truffaut, com quem rodou “Um só pecado” três anos antes e planejava fazer outros projetos. Enquanto a câmera faz uma panorâmica pelo desolado set vazio, a voz-off de Ferrand retorna e nos confidencia: “A era dos filmes de estúdio morreu junto com Alexandre. Os filmes serão rodados nas ruas, sem estrelas, sem roteiros”. A conclusão de Ferrand é que não há mais espaço para filmes formatados no estilo do cinema-padrão hollywoodiano; a demanda atual é por um cinema mais franco em relação ao “real”, no sentido de uma linguagem menos ilustrativa do que objetiva. Ferrand vem aqui confirmar um statement defendido por François Truffaut ainda na época de crítico da Cahiers du Cinéma: os realizadores mais jovens devem se desvincular das estruturas do cinema clássico para ter a oportunidade de fazer um cinema acessível, livre das amarras financeiras dos grandes estúdios, com possibilidade criativa para expor o seu próprio discurso sem intermediadores. A postura do personagem Alexandre, que construiu uma carreira de galã em cima do arquétipo do “Amante Continental” e agora, próximo à velhice, não quer mais esconder sua homossexualidade, optando por transitar naturalmente com o seu parceiro nos bastidores de “Je vous presenté Pamela”, já sugeria a posição arcaica dessa indústria. A bandeira levantada pelo (crítico) Truffaut, que depois se materializou no movimento da Nouvelle Vague, donde o (diretor-roteirista) Truffaut foi o membro pioneiro, não é reafirmado somente nas falas de Ferrand, mas também na própria estrutura de “A noite americana”, cuja linguagem direta aliada à câmera colada nos personagens utiliza os Studios de la Victorine como um território a ser desvendado, não uma fábrica ilusionista — exatamente o oposto da mise-en-scène de “Je vous presenté Pamela”. O ato de filmar com três ou quatro câmeras ao mesmo tempo, obtendo pontos-de-vista alternativos do mesmo take e obliterando a repetição de tomadas, prova que Truffaut buscava a maior espontaneidade possível com o mínimo de estilização para simular o frenesi do dia-a-dia de uma produção. Se o realizador não faz juízo de valor em relação ao objeto fílmico, uma vez que ele não se propõe a discutir o impacto de se produzir um filme “bom” ou “ruim”, “comercial” ou “artístico”, é porque seu interesse está concentrado na linguagem do cinema. Os sonhos de Ferrand revelam que, apesar de inserido na indústria, ele permanece conectado (no mínimo, inconscientemente) aos motivos que o despertaram para a cinefilia. Na feitura de “A noite americana”, François Truffaut se mantém fiel aos mesmos princípios do ínicio de sua carreira e os utiliza com a finalidade de ampliar a aura do fílmico para além de seu objeto, construindo uma obra que desvenda a complexidade de uma produção cinematográfica (independente do rótulo que será atribuído posteriormente ao resultado) para reafirmar sua própria devoção ao ofício de se fazer arte. A repetição de parâmetros estilísticos, situações visuais e técnicas narrativas por meio das autorreferências, passam a atuar, então, como pequenos signos evolutivos da experiência de Truffaut como cineasta, consolidadas neste panorama que esvai as fronteiras entre a vida real, seu filme e a obra em progresso ali contida, para obter o transbordamento de uma aura que vem se apossar do que está no fora-de-quadro através da estrutura da dupla construção em abismo.
A produção de “Je vous presenté Pamela” é retomada. Sem condições financeiras de refilmar as cenas de Alexandre com outro ator, a solução é encurtar o roteiro, reduzir o cronograma de filmagens e contratar um dublê para concluir o filme. O desfecho do personagem de Alexandre, encenado na neve (artificial), remete ao de filmes anteriores de François Truffaut, como “Atire sobre o pianista” (1960) e “A sereia do Mississipi” (1969). Antes do prosseguimento das filmagens, contudo, assistimos à projeção do copião que contém a última cena de Alexandre filmada. Ao pausar a projeção no momento em que Alexandre está brincando com as colegas de cena Séverine e Julie, Truffaut enfatiza que, apesar dos fatores exteriores serem capazes de interferir na produção de um filme, a película tem o poder de driblar a morte ao eternizar a figura do ator. Com isso, além de apostar na cumplicidade dos espectadores de “A noite americana”, o cineasta francês conta também com a nossa empatia. Quando Mme. Lajoie, membro-apêndice da equipe técnica que está no set apenas para vigiar o comportamento de seu marido, aponta para câmera, quebra a quarta-parede e diz que detesta o cinema porque é um ramo depravado e mentiroso, Truffaut espera que enxerguemos o ridículo da situação e que qualquer preconceito conservador contra o meio cinematográfico já tenha sido eliminado.


Uma vez que nos despedimos da equipe técnica de “Je vous presenté Pamela” ao mesmo tempo que “A noite americana” termina, ficamos sem saber qual foi a recepção de público e crítica para o longa de Ferrand. Já o filme de François Truffaut foi um sucesso. Ganhou diversos prêmios (como o BAFTA de Melhor Filme e Diretor, além do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, sendo Truffaut também indicado pela Academia de Hollywood às estatuetas de Roteiro e Direção) e, aclamado por críticos como Roger Ebert, Vincent Canby e Gene Siskel, tornou-se um clássico dentre os filmes que tratam do próprio “fazer cinema”. O diretor Jacques Rivette, escrevendo sobre o primeiro longa de Truffaut, evidenciou: “Falando de si, parece que ele fala também de nós”. Catorze anos depois, subsiste a relação franca entre o realizador francês e seu público: mais do que compartilhar sua paixão pelo cinema, Truffaut nos oferece a perspectiva de um cinéfilo que cruzou a fronteira espectatorial e esteve inserido na produção por mais de uma década. Ao colocar-nos como um membro de sua equipe técnica, ele possibilita a investigação do nosso próprio encanto pelo filme para, no fim de tudo, garantir que a beleza daquilo que é retido pela câmera transborda para fora-do-quadro. Ferrand consola o ator Alphonse dizendo: “Os filmes são mais harmoniosos do que a vida, não há engarrafamentos, não há vazios, nem tempos mortos”. Que bom sempre podermos contar com eles.