Projeto Truffaut XIV: “A história de Adèle H.”
“L’histoire d’Adèle H.”. FR/1975. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault, Suzanne…
“L’histoire d’Adèle H.”. FR/1975. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault, Suzanne Schiffman, Frances Vernor Guille, baseado nos diários de Adèle Hugo. Fotografia: Nestor Almendros. Música: Maurice Jaubert. Montagem: Yann Dedet. Elenco: Isabelle Adjani, Bruce Robinson, Sylvia Marriott, Joseph Blatchley, Ivry Gitlis.
Uma jovem assiste, compenetrada, a apresentação de um mágico. Ele hipnotiza um soldado. Através da sequência das cenas, concluímos que ela planeja fazer o mesmo com um rapaz que observa na platéia. Espetáculo concluído, a moça ruma até o camarim do prestidigitador. Ela deseja saber se é possível hipnotizar alguém a ponto de casar-se; ele acredita que sim, mas avisa que custará muito. Dinheiro não é problema, a jovem garante, mas, diante da incerteza do showman, ela revela que pode obtê-lo por meio de seu pai; esta confissão — ele jamais poderia supor — é o maior sacrifício que a moça cometeria a fim de obter o que deseja. Ela chama-se Adèle e é filha do cânone francês Victor Hugo, autor de clássicos como “Os miseráveis” e “O corcunda de Notre Dame”. Apesar da conveniência financeira, esta filiação incute-lhe um peso colossal, do qual ela está fazendo de tudo para se libertar.

Baseado nos diários reais de sua protagonista, “A história de Adèle H.” é comumente identificado como uma das mais trágicas love-story do cinema. Há uma aura ultra-romântica, de tons góticos a la irmãs Brontë, impregnada neste que é o 14º longa-metragem de François Truffaut. Realizado após “A noite americana” (1973), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, este aqui opõe-se totalmente à leveza da estrutura anedótica daquele exercício metalinguístico sobre o cinema, centrando-se na pesada carga emocional que norteia Adèle. A tragédia, contudo, não se detém a um amor não-concretizado: ela ronda o amadurecimento de uma mulher que, em pleno século XIX, peleja estabelecer uma identidade própria — e, nisto, Adèle se distancia de outras protagonistas femininas Truffautianas tipicamente sedutoras e aproxima-se do personagem-título de “O garoto selvagem” (1970) e de Antoine Doinel, o popular alterego do cineasta. Alinhada à personagem-título, a própria narrativa de “A história de Adèle H.” busca estabelecer uma figura própria para Adèle — e, por isso, ao invés de titular-se “A vida de Adèle Hugo” (na abrangência biográfica do termo), ainda subtrai seu célebre sobrenome.

Truffaut faz questão de frisar a grandiosidade de Victor Hugo por meio de definições atribuídas por outros personagens como: “um gênio comparado a Shakespeare e Homero”, “o homem mais famoso do mundo”, “um idealista que arriscou sua própria vida pelo fim da República francesa”. A imponência do escritor assume um aspecto de entidade: durante a projeção, nunca o vemos em cena, apenas ouvimos sua voz através de respostas às cartas remetidas por Adèle. Especificamente no período em que o filme se situa, a figura de Victor Hugo está relacionada a uma tragédia. Aos 19 anos, Léopoldine, sua filha mais velha, morreu em um acidente; o marido, na impossibilidade de salvá-la, optou por afogar-se junto dela. A dificuldade de superação de Victor Hugo é refletida tanto nos inúmeros poemas dedicados à finada, quanto no memorial construído em casa: o vestido de noiva de Léopoldine permanece exposto para os visitantes. Adèle também sente o peso da ausência de Léopoldine, através de frequentes pesadelos em que vê a irmã (ou a si mesma) afogar-se — nestas cenas, Truffaut engendra uma literal sobreposição de planos onde uma, se afogando, se funde com a outra, em febre noturna. Filmando ambas as cenas com a mesma atriz, o cineasta estreita a semelhança física entre as duas e expõe uma dificuldade de dissociação que a protagonista enfrenta, não só perante os outros, mas sobretudo acerca de si mesma. Questionada se sofreu muito com a morte da irmã, Adèle, em meio a uma reação esquiva, deixa escapar um ressentimento à sua interlocutora: “você não sabe como é afortunada por ser filha única”.

No auge da Guerra Civil, Adèle (Isabelle Adjani) desembarca sozinha em Halifax, na Nova Escócia. Seu objetivo é localizar o tenente inglês Albert Pinson (Bruce Robinson), cuja tropa está instalada ali. A narração em off nos alerta para uma espécie de febre e inquietação que reina na província, dado que serve de prenúncio para o que ocorrerá com a saúde mental de Adèle. Desde os primeiros cinco minutos de “A história de Adèle H.”, a encenação ressalta a forma espectral como a protagonista é estilizada: sua face pálida, com enormes olhos azuis melancólicos, flutua na escuridão da noite, ora envolta por uma névoa. O diretor de fotografia Nestor Almendros adota uma paleta dessaturada, calcada em tons terrosos monocromáticos, ressaltando o rosto alvo de Isabelle Adjani, que possui feições inocentes, mas uma profunda sentimentalidade. A lacuna corpórea de um fantasma implica na ausência de uma subjetividade, espelhando a auto-investigação de Adèle.

Curiosamente, ela passa “despercebida” pelas autoridades e burla a fila de imigração. Chegando na hospedagem, se identifica como Adèle Lewly e parte logo para encontrar o Tabelião público. Conta que tem uma sobrinha muito querida, mas de personalidade extremamente romântica, que se apaixonou pelo tenente Pinson durante uma visita à Inglaterra; o casal, apesar do desejo de matrimônio, estaria separado devido aos desdobramentos da Guerra que trouxeram o soldado para Halifax. É uma breve sequência que revela bastante sobre as querelas internas da jovem. Ela não mente apenas o seu sobrenome, como também transfere o envolvimento amoroso para um personagem fictício. A verdade é que, Adèle, cedendo aos galanteios do belo tenente, alega ter se entregado a Pinson durante o exílio político de Victor Hugo em Guernsey, e optou por abandonar tudo, “atravessando sozinha o mar e partindo do velho para o novo mundo para unir-se ao seu amante”, como ela mesma declara ao longo do filme. Sabe-se que, no século XIX, a liberdade feminina era um direito de parco usufruto, ainda mais quando se procede de uma família nobre com inúmeras responsabilidades sociais. Tornar-se Mrs. Pinson é para Adèle uma possibilidade de anular Mlle. Hugo, desassociando-se de tudo aquilo que sua família transmite. Enquanto tecia a farsa para o Tabelião, Adèle deixa escapulir um desabafo: “O tenente Pinson me é totalmente indiferente… só me preocupa a felicidade de minha sobrinha” (de maneira lógica, sob o véu da transferência, a sua própria felicidade).
O desenrolar da trama frisa dois pontos na relação entre Adèle e Pinson: a veemente recusa do tenente inglês em ser recíproco às investidas da jovem e o anseio dela pelo casamento, mais até do que pelo relacionamento amoroso propriamente dito. Adèle não demonstra ciúmes (pelo contrário, incentiva encontros sexuais de Pinson com prostitutas), nem se importa de bancar os vícios dele em apostas; por outro lado, lança mão de sua beleza, seu título e seu dinheiro, em vãs tentativas de atraí-lo. Adquirir uma nova identidade social é de extrema importância para Adèle, por isso a exigência do rito civil com aquele para quem, por iludi-la, se entregou. Nas cenas do casal, a decupagem evoca novamente a presença espectral de Adèle. Truffaut transforma os quadros em “espaços pessoais” dos personagens: quando Pinson é o elemento central do plano, Adèle surge e tenta agarrar-se a ele, como que magnetizada por sua presença, mas o tenente foge do enquadramento da câmera; já quando Adèle é o elemento central, Pinson atravessa o plano, sem o menor interesse. É uma mise-en-scène que será repetida a cada encontro dos dois — exceto no último. De maneira consonante, as diversas cenas em que Adèle secretamente vigia o tenente através dos vidros de janelas, sugerem sua incapacidade tangível em alcançar a materialidade de seu alvo. As constantes negativas de Pinson revelam-se um gatilho emocional em Adèle, relacionado com a conflituosa assimilação da morte de sua irmã mais velha. Ela expressa o desejo de estar casada com o tenente até a morte, mas, ao contrário de Leópoldine, cujo marido optou por morrer ao seu lado como derradeira declaração de amor (e de quem o vestido de noiva é mantido como memorabilia pelo pai), este destino é cada vez mais improvável para Adèle.



Adèle “Lewly” varia, progressivamente, a narrativa de seu envolvimento com Pinson de acordo com o interlocutor de Halifax: para a dona da pousada, diz que o tenente inglês é um primo apaixonado por ela desde a infância; para o livreiro, afirma que ele é o cunhado de sua irmã (ou seja, seu marido, uma vez que Victor Hugo só tivera duas filhas). Em “A história de Adèle H.”, tudo é focado na perspectiva da personagem-título, centrada em um objetivo que evolui para obsessão e termina em loucura. François Truffaut não só constrói planos claustrofóbicos (mesmo em locações externas) para focá-la, como rejeita um distanciamento psicológico que possibilite esmiuçar, de forma psiquiátrica, sua patologia. Inclusive para o espectador, a verdade tarda a ultrapassar a fantasia de Adèle, vindo à tona apenas na metade do primeiro ato do roteiro. Seu posicionamento de frente para a câmera, mas sem quebrar a quarta parede, sugere o que seria um momento de desabafo, sem intermediações. No primeiro de vários momentos diegéticos de escrita, vemos Adèle comunicando a Albert Pinson sua chegada a Halifax, reafirmando seus sentimentos a ele. Com o desenrolar da trama, observa-se que, nas cartas para o pai, que alternam entre a esperança, a obstinação e o delírio, Adèle ultrapassa a razão e narra os fatos da maneira que ela gostaria que tivessem ocorrido; já nos diários, temos acesso direto às atribulações mentais da protagonista. Cartas e diários são dois motivos narrativos e visuais constantes na filmografia de François Truffaut: como ocorre em “As duas inglesas e o amor” (1971), um curto movimento de tilt da câmera torna o ato da escrita uma extensão física do corpo e da mente de Adèle H.


De forma indireta, é através de Léopoldine que a farsa de Adèle “Lewly” é desmascarada. Ao ver uma carta pronta para ser entregue a Victor Hugo, a coincidência em relação ao acidente fatal da irmã intui o médico que consulta Adèle a questionar sobre a verdadeira identidade da jovem. Para a província, imediatamente “Adèle” torna-se “a filha de Victor Hugo”, e nem a dona da pensão, Mrs. Saunders (Sylvia Marriott), pretende importuná-la em relação a isso, afinal, “deve haver um motivo para a filha de alguém tão nobre agir assim”. Após implorar em suas cartas, Adèle obtém o consentimento de seu célebre pai para um matrimônio que jamais ocorrerá. O desejo se torna uma obsessão para a moça, que passa a, literalmente, adorar Pinson, a ponto de construir um altar para ele. Quanto mais a realidade de Adèle se distancia de suas vontades, mais a personagem se dedica à escrita — tanto dos seus diários, quanto de cartas ao pai, uma vez que, assim como sua mente, suas situações econômica e física começam a deteriorar-se. Dentre os pedidos a Victor Hugo, observamos um ressentimento de Adèle por ele nunca ter publicado seu livreto musical. Sua aptidão para música como compositora sugere uma tentativa de distanciamento em relação ao pai, mas o progressivo direcionamento para a escrita à medida em que ela vai perdendo a razão, atesta que a herança genética é mais forte do que poderia impedir-se.

Adèle remete uma nova carta para os pais, garantindo que o casamento ocorreu. Mas, assim como a magia do prestidigitador a quem Adèle recorreu no intuito de hipnotizar Albert Pinson, o matrimônio é falso: o “soldado” que participava do espetáculo do mágico (Ivry Gitlis) era apenas um ajudante contratado e o “marido” desejado é cada vez mais veemente em suas recusas de união. O objetivo de desvencilhamento familiar começa a surtir o efeito contrário, afinal, a identidade de Adèle não é mais segredo em Halifax e Victor Hugo exige que a filha retorne para o lar. Para expor o esgotamento mental da personagem, a caracterização física dispensa uma maquiagem pesada, mas adota um óculos, seus cabelos passam a ficar permanentemente soltos e o figurino sofre uma gradativa degradação — elementos que reforçam a construção imagética de Adèle como uma entidade do romantismo gótico. Quando Albert Pinson fica noivo da filha de um juiz, ele comete aquilo que seria inaceitável para Adèle: dar o seu sobrenome a uma outra mulher, impedindo-a de separar-se definitivamente do legado da família Hugo. No limiar da loucura, Adèle declara para si mesma que é filha de pai desconhecido e protege os diários em que reflete sobre a sua trajetória, ainda que majoritariamente sob a cortina da alucinação, como o único bem que lhe resta.

Peregrinando de forma inconsciente atrás do regimento de Albert Pinson, Adèle parte para Barbados. Impossibilitada de estabelecer com uma personalidade própria como Adèle Hugo ou de ser a verdadeira Mrs. Pinson, ela tem o sujeito impedido de ser (re)constituído, sendo fatalmente aniquilado. Adèle se torna um vulto, flutuando de vestido negro nas ruas. Informado por um colega de regimento, o tenente inglês a procura. Neste, que é o último encontro entre Adèle e Pinson, a mecânica de encenação de François Truffaut se repete, mas o “elemento magnético” é invertido: Pinson persegue Adèle, mas ela caminha alheia pelas esquinas. Por mais que ele se estabeleça em seu enquadramento, Adèle não o percebe porque a figura do tenente se tornou, enfim, algo indiferente (como ela houvera inconscientemente pressuposto na farsa contada ao Tabelião público, ao desembarcar em Halifax). Como o vulto soturno em que se transfigurou, Adèle não possui mais identidade e é vazia de memórias e desejos.
O filme é trágico, menos pelo amor não-correspondido do tenente Pinson do que pelo fracasso da jovem Adèle em estabelecer uma identidade própria, o que a leva à loucura. Depois de viver 40 anos internada, ela morre sem constituir um indivíduo para si; é sepultada ao lado de sua mãe, que também se chamava Adèle, permanecendo para sempre vinculada à família Hugo. Mas, como Truffaut frisa na abertura do filme, “A história de Adèle H. é autêntica”. Superando a questão de “A história de Adèle H.” ser objetivamente verídico por basear-se em acontecimentos e personagens reais, a trajetória de Adèle é autônoma e substancialmente peculiar pela coragem em partir sozinha em busca daquilo que acreditava lhe proporcionar uma individualidade, a ponto de, como o próprio realizador denuncia por meio de sua obra, podermos reduzir seu altivo sobrenome a uma mera sigla.

“O ponto de partida narrativo de “Adèle H.” também era contar a história de um rosto. É possível fazer um filme inteiramente focado em um rosto? É possível contar uma história de amor em que o parceiro não é importante? Deu certo graças ao enredo, graças a Isabelle Adjani, que é uma atriz interessante e graças também a música de Maurice Jaubert” (François Truffaut)