Projeto Truffaut XV: “Na idade da inocência”
“L’Argent de poche”. FR/1976. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Suzanne Schiffman…
“L’Argent de poche”. FR/1976. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert. Roteiro: François Truffaut, Suzanne Schiffman. Fotografia: Pierre-William Glenn. Música: Maurice Jaubert. Montagem: Yann Dedet, Martine Barraqué-Curie. Elenco: Jean-François Stévenin, Virginie Thévenet, Philippe Goldmann, Geory Desmouceaux, Sylvie Grezel, Laurent Devlaeminck, Bruno Staab.
Georges Bernanos, em seu romance “Diário de um pároco de aldeia” (1936), compreendeu que “a juventude é uma idade bendita — que é um risco a correr — mas que mesmo o próprio risco é abençoado”. François Truffaut compartilha dessa visão em “Na idade da inocência” (1976), seu 15º longa-metragem, que pode ser visto como um ensaio sobre a passagem pela infância. Abordando desde o nascimento até o despertar da adolescência, o roteiro de estrutura anedótica escrito pelo próprio cineasta abstém-se de focar em apenas um protagonista. O universo constituído por Truffaut elege o coletivo infantil como o verdadeiro elemento central da história (onde, inversamente ao mundo real, os adultos é quem são relegados a segundo plano), cujas múltiplas linhas narrativas vão, aos poucos, se entrecruzando de maneira eficaz.


O cartão-postal remetido pela pequena Martine (Pascale Bruchon), que passeia com o pai em Paris, a seu primo, ainda no prólogo de “Na idade da inocência”, é o elemento que nos transporta a esse universo infantil, localizado em Thiers, uma pequena vila em Auvergne, bem distante do agito urbano. Infância, para Truffaut, está diretamente conectada à pureza, e isso justifica o fato de boa parte do enredo se situar no colégio masculino da vila, no último trimestre antes deste tornar-se um ambiente misto. Há um senso de irmandade gazeteira entre os meninos e a presença do feminino, no filme, está majoritariamente conectada ao ingresso na adolescência por meio do despertar amoroso — frise-se “amoroso”, uma vez que um diálogo entre os professores aborda as brincadeiras sexuais entre os meninos como algo normal nesta fase de descobertas. Mas, embora não haja proporcionalidade de gênero no grupo de crianças enfocado por Truffaut, uma das sequências mais marcantes do filme é protagonizada por Sylvie (Sylvie Grezel) que, deixada de castigo em casa por seus pais que foram ao restaurante, grita pela janela pedindo comida aos vizinhos. Sylvie e Martine, apesar de serem as únicas meninas do grupo, possuem em comum o traço de uma independência precoce: seja por comida, no caso da menor, que inclusive foi posta de castigo por rebelar-se, seja na atitude amorosa, como a outra, que toma a iniciativa no encontro com o tímido Patrick (Geory Desmouceaux), cujo primeiro beijo é o ato-símbolo do fim da infância. Ou seja, o colégio se tornará misto logo em breve para abrigar meninas que buscam sua autonomia.

O próprio Truffaut faz uma brevíssima aparição como pai de Martine, mas sua presença dura mais do que os dois segundos de seu único plano. Mesmo observando superficialmente sua filmografia, fica claro que a infância é um elemento caro ao realizador e muito de sua autobiografia se confunde aos seus roteiros, especialmente nesses momentos. Situando dois filmes em que o amadurecimento infantil é o assunto central, em 1959, o “incompreendido” Antoine Doinel era o personagem-espelho de François Truffaut e em 1969, Dr. Itard, o médico que assume a figura paterna do protagonista de “O garoto selvagem” (1969), era vivido pelo próprio cineasta. Em “Na idade da inocência”, seu alterego é o professor Jean-François Richet (Jean-François Stévenin), que dentre os adultos em segundo plano, é aquele com maior destaque. Figura que une as crianças na sala de aula, é por meio dele que Truffaut verbaliza diversas reflexões sobre a infância. Inclusive, no meio da narrativa, Jean-François torna-se pai pela primeira vez (jogo de papéis que espelha a troca de perspectiva do próprio cineasta em relação aos filmes anteriores citados), o que vai apurar ainda mais a sensibilidade do olhar do professor quanto às crianças ao longo do filme. Uma vez que Truffaut assume esse papel de mestre, mesmo que subentendido, torna-se curioso observar como diversas referências de sua própria filmografia são incluídas em sequências protagonizadas pelas crianças fora da escola, como se fossem dever-de-casa: o gatinho irrequieto de “A noite americana” (1973), que é perseguido por Gregory no parapeito do prédio; as enormes escadas que ligam os apartamentos de “Domicílio conjugal” (1971), funcionando como ambiente de interação entre os personagens do prédio; a idealização amorosa de um jovem por uma mulher madura de “Beijos proibidos” (1969), aqui, revivida por Patrick em relação à mãe de seu colega de sala. Contudo, as cenas com Jean-François são os raros momentos de “Na idade da inocência” em que o olhar de Truffaut se retira do universo das crianças para observá-las.

A montagem fragmentada e o colorido vivo das cenas dão um aspecto cartunesco à estética do filme, inclusive pelo fato de cada personagem mirim vestir sempre o mesmo tom de cor. Os créditos iniciais se dão em meio às crianças correndo animadas pela vila, rumo ao colégio. Ao contrário do retratado em “Os incompreendidos” (e até mesmo em “O garoto selvagem”, uma vez que o colégio é substituído alí pela educação particular), a instituição escolar em “Na idade da inocência” é retratada como um ambiente positivo, com professores que realmente se preocupam com o desenvolvimento dos alunos, que estimula as expressões particulares das crianças e serve até mesmo de abrigo, como no caso do recém-chegado Julien (Philippe Goldmann), que sofre maus tratos em casa. Ao mesmo tempo em que o roteiro retrata os professores fora da escola, vivendo o cotidiano como qualquer comum, a decupagem do filme usa o campo-contracampo para, durante as aulas, situar as crianças na mesma direção do olhar dos professores, promovendo uma atualização da relação de autoridade, presente de forma tão repressiva em “Os incompreendidos”. Já a sala de cinema, sempre um ponto de refúgio dos personagens Truffautianos, torna-se aqui o ponto de encontro oficial da comunidade de Thiers: pais/professores e filhos/alunos se reúnem nas sessões de filmes e, sentados, assumem a mesma posição de aprendizes.

Contudo, o universo infantil de Truffaut não é meramente frívolo. É justamente em casa que a atmosfera se torna um pouco severa: os personagens se veem confrontados com situações delicadas, que ensejam diversos níveis de responsabilidade. Ainda assim, as crianças em “L’Argent de poche” (o título original do filme é um termo francês equivalente à “mesada”) não são resignadas; pelo contrário, mesmo que, de forma sutil — e natural — anseiem por afeto, elas almejam principalmente sua independência e têm em comum um senso de autonomia, obtendo as soluções necessárias por conta própria. Do grupo de crianças, dois personagens têm o arco de desenvolvimento mais extenso: Julien e Patrick. Logo no início do filme, a câmera perscruta o recém-chegado Julien, introduzido no colégio como um caso que enseja maior atenção. A aparência descuidada e a atitude rebelde de Julien lembra a do personagem-título de “O garoto selvagem” — enquanto esse fora abandonado na floresta quando bebê, aquele é vítima de maus tratos da mãe alcoólatra. Patrick, por sua vez, tem traços do romântico incurável Antoine Doinel de “Os incompreendidos” — inclusive, é através de seu envolvimento com Martine, a filha de Truffaut no filme, que se dará a conclusão do longa-metragem. Em diversas cenas, os caminhos de Julien e Patrick se cruzam. Por meio desse jogo de referências, é como se Truffaut atualizasse seus antigos personagens para o universo colorido, mas agridoce, de “Na idade da inocência”. Fugindo de uma idealização pura (e, portanto, falsa) da infância, o realizador assume a difícil tarefa de elaborar uma atmosfera de tom sereno que, ao mesmo tempo, é entrecortada por momentos de maior seriedade e crê, de forma promissora, em um cenário mais receptivo.

Tanto que a situação inóspita de Julien tem um fim. A gravidade do momento em que os abusos sofridos pelo menino são descobertos pelos professores é traduzida pela maturidade expressiva do cineasta. Sintetizando a perspectiva agridoce da temática do filme, a atmosfera da cena varia gradativamente da galhofa dos colegas de Julian, por sua recusa em tirar a camisa na frente de todos, para o choque dos professores no momento em que o médico da escola percebe os machucados e queimaduras em seu corpo. É uma sequência engendrada por cenas longas, interligadas por rápidos movimentos de panorâmica da câmera, que observa à espreita, sem esmiuçar o quadro para não olhar de perto o corpo de Julien, como se a revelação da violência sofrida por ele fosse, para Truffaut, tão pesada quanto é para seus professores. Na sequência, a mãe é presa pela polícia e perde a guarda do menino.

“Na idade da inocência” é construído menos em função dos planos do que das sequências das cenas. Nos episódios protagonizados pelas crianças há um clima assumido de improvisação e Truffaut é perspicaz em deixar as crianças livres pela mise-en-scène para, a partir disso, construir o universo de seu filme. Cabe aqui retornar ao momento em que o diretor assina o filme inserindo sua própria imagem na película, naquele curtíssimo plano alocado antes dos créditos iniciais: sentado no carro, com as mãos no volante, Truffaut discretamente observa Martine e dá-lhe um aceno positivo com a cabeça após a menina escrever o seu postal e olhar para ele, como que pedindo uma anuência. Há algo raro em Truffaut, que é a capacidade de integrar seu olhar ao universo infantil. Isto não apenas evita um retrato complacente e piegas, como propicia que o espectador seja também incluído nesse universo, não só por um viés nostálgico, que inevitavelmente bate após a projeção, mas como se, durante aquele momento, também fossemos crianças. Ele aborda a infância não através de uma psicanálise; seria algo como uma espécie de regressão efetiva. Truffaut é rápido em suas cenas, não dispensa muito tempo para reflexão, e isso nos deixa mais imersos na experiência. Ele capta a inocência do gesto das crianças em frente à câmera justamente porque mantém a inocência em seu olhar, algo que é fruto de uma flexibilidade artística disposta a captar a naturalidade por meio de métodos como: a encenação livre de marcações, a abertura para intervenções, a câmera que espera o momento certo para registrar, os momentos em que a mesa de montagem dispensou uma decupagem tecnicamente correta para não enjaula-los. Isso vem da influência de cineastas como Jean Vigo, Roberto Rossellini e Jean Renoir, que já possuíam essa aptidão artística descentralizada, mas François Truffaut não faz disso um simulacro de referências. Ele absorve tais meios, para, a partir disso, elaborar sua própria perspectiva.

Próximo à conclusão do filme, ainda sob o impacto da denúncia de Julien, a narrativa estabelece aquele que é o maior intervalo da imersão no universo infantil. Trata-se do discurso proferido pelo professor (e recém-pai) Jean-François a seus alunos em prol das crianças — um raro momento sócio-político de tom incisivo na filmografia de Truffaut, ainda que regido pela emoção, reduzindo assim um possível viés panfletário. Aqui, a eficácia do olhar do cineasta assume um nível soberbo: após nos integrar diversas vezes à perspectiva dos personagens infantis, ele nos retira abruptamente para frisar a responsabilidade incutida nesse distanciamento, como se o fizesse para lembrar também a si mesmo, tal qual o adulto que é. “Por meio de um estranho equilíbrio, os que tiveram uma infância difícil estão melhor preparados para enfrentar a vida do que aqueles que foram muito amados e protegidos”, diz Jean-François. O enredo de “Na idade da inocência” possui pontuações fantásticas e líricas que atribuem às crianças um senso de proteção divina, talvez um fruto compensatório pela inocência inata em um mundo governado por adultos. Estes, por sua vez, são retratados como apartados dessa proteção: os personagens maduros são, físico ou emocionalmente, mais frágeis do que as crianças. É do estranho equilíbrio que rege tanto protegidos e desamparados quanto adultos e crianças, que se trata o risco abençoado mencionado por Georges Bernanos e que François Truffaut busca respaldar sempre que aborda a infância, e, principalmente, em “Na idade da inocência”.

“Muita gente criticou a gentileza do filme. Mas acho que ela era um pouco necessária, pois as crianças viviam em volta da câmera, queriam saber como funcionava, estavam interessadas pela maquinaria (…) Pouco a pouco, envolveram-se tanto com o filme que senti que aquilo se tornara um pouco o filme delas, e que eu o realizava para elas” (François Truffaut)