Projeto Truffaut XVII: “O quarto verde”
“La chambre verte”. FR/1978. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert, François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Jean…
“La chambre verte”. FR/1978. Direção: François Truffaut. Produção: Marcel Berbert, François Truffaut. Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Maurice Jaubert. Montagem: Martine Barraqué-Curie. Elenco: François Truffaut, Nathalie Baye, Jean Dasté, Jeanne Lobre, Patrick Maléon.
Os dois longas anteriores de François Truffaut, ‘Na idade da inocência’ (1976) e ‘O homem que amava as mulheres’ (1977), lidavam com a impossibilidade do perpétuo em um mundo naturalmente instável. O primeiro se passa no último ano de um colégio só para meninos, antes da implementação do regime de gêneros misto. O outro, é iniciado com o enterro do próprio personagem-título, que “volta” à vida para narrar em off sua trajetória de vida. Baseado em um conto de Henry James, ‘O quarto verde’, por sua vez, é protagonizado pela recusa ao esquecimento como consequência da morte.
Os créditos iniciais já nos introduzem a figura de Julien Davenne (interpretado pelo próprio Truffaut), vestido de soldado, sobreposta às imagens (reais) de arquivo da Primeira Guerra Mundial. Aqui, Julien assume a função mista de espectador e participante da cena: é o protagonista inserido em seu cinema-mental particular, em contato com as lembranças do conflito bélico no qual participara, evento causador de milhões de mortes — inclusive, a de diversos amigos seus. Anos depois, Julien ainda tem dificuldades em aceitar o fato de ter sido um dos pouquíssimos rapazes a retornar à sua província natal são e salvo, não-tutelado pela alcunha de mártir heroico.
Esta sobreposição imagética é passível de ser refletida para toda a obra em um nível temático: François Truffaut, diretor, roteirista e ator-protagonista de ‘O quarto verde’ se insere na própria imagem que assiste, artista que se coloca materialmente na zona limítrofe entre o ato da criação e o resultado obtido. Enquanto Julien Davenne não consegue romper com os traumas da Guerra, Truffaut assume um elo vital particular perante o cinema. Ao longo da narrativa, será possível perceber que esta conexão se dará por uma referência tanto à cinefilia quanto ao ofício de realizador.
Ainda que seja somente nos créditos iniciais que há de fato uma película em projeção em ‘O quarto verde’, esta sequência lida com o extra-fílmico, caracterizando-se ontologicamente pela inserção de elementos documentais na ficção. As imagens em movimento da Guerra são instituídas no tema do enredo como o símbolo máximo da memória, registros reais de vidas perdidas. Partindo desta introdução e considerando o desenvolvimento do longa, é como se François Truffaut declarasse fé na propriedade da imagem como um ícone e um índice daquilo que ela representa. Nisto, Truffaut alude à teoria realista proposta por seu mestre formativo, André Bazin, a qual aponta o vínculo ontológico entre a matéria e o seu registro fotográfico, uma vez que ele testemunha a sua existência e imprime a sua imagem na película através de leis químicas naturais. Quando reproduz e fixa o objeto, a fotografia o devolve à nossa atenção e ao nosso conhecimento. Por conseguinte, o cinema (como 24 fotogramas em movimento por segundo), além de reproduzir uma aparência do real, é capaz de constituir um mundo “à imagem do real”, como diria Bazin.
‘O quarto verde’ busca atribuir o mesmo status conceitual da memória projetada na abertura aos lutos pessoais de seu protagonista. Primeiro, Julien, no escuro, projeta slides dos corpos de seus colegas soldados-vítimas ao menino surdo-mudo Georges, curioso em assistí-los. Depois, a figura de Julie, esposa falecida de Julien, nos é introduzida por um tracking-shot que segue suas fotografias dispostas pelo cômodo, como se desejasse pô-las em movimento. Nesta sequência, inclusive, um plano-detalhe congelado de um modelo de gesso da mão de Julie, feito para portar seu antigo anel (com o sugestivo formato de infinito, ∞), faz uma alusão imagética aos slides anteriormente vistos. Por fim, já no terceiro ato, a imagem de um velho amigo de Julien, o recém-falecido Paul Massigny, nos é apresentada através da mesma decupagem. Ambos os proto-slides são acompanhados por uma trilha musical na banda sonora, de maneira semelhante aos créditos iniciais.
Julien é cenicamente situado numa atmosfera de purgatório, algo entre os vivos e os mortos. Sua caracterização sugere que ele está sempre de luto (trajando ternos escuros); sua profissão é escrever obituários para um jornal antigo (tão obsoleto que a maioria dos assinantes já faleceu) e seu fiel escudeiro é Georges, órfão com quem se comunica de maneira visual, transcendendo a linguagem verbal. O protagonista se auto-define como um “espectador da vida”, pondo-se em um nível distinto da maioria das pessoas, que estaria mais preocupada em fazer da existência uma forma de competição. Os demais habitantes da província, por sua vez, definem Julien como alguém que é raramente visto e ouvido; não à toa, por diversas vezes sua aparição em cena é intermediada através do reflexo em espelhos e da interposição de vidros. A decupagem de Truffaut volta-e-meia conclui as cenas em que o protagonista interage com os demais personagens através de um plano destes espantados (por algo que Julien fizera ou dissera), sem um contracampo. São imagens-afecções que especificam a qualidade da falta: o fade-out impede que nós vejamos novamente Julien, ou seja, que confirmamos a razão do espanto por aquilo que os outros personagens julgam enxergar.
A partir deste léxico visual, a composição fantasmagórica de Julien Davenne encontrará um reflexo narrativo quando surge no enredo Cecilia (Nathalie Baye), detentora de um brechó cujos produtos são pertences de pessoas já falecidas. As duas cenas que se desenrolam nesta locação aludem a uma atmosfera espectral: na primeira, a mise-en-scène é composta por figurantes de preto, flanando pelos planos de um lado ao outro. Em seguida, estátuas e pinturas estão dispostas no quadro como se perscrutassem a interação entre Julien e Cecilia. Para a surpresa do protagonista, a moça revela que ambos se conheceram há muitos anos e que, desde então, ela constantemente desejava revê-lo. Julien possui o mesmo nome de seu pai, de quem Cecilia teve uma impressionante visão antes do seu falecimento, mesmo estando fisicamente distante (uma espécie de aparição de despedida). Uma premonição similar ocorreu entre Julien e sua esposa logo antes dela morrer, um episódio que se tornou lenda na cidadezinha.
A própria disposição da arquitetura da residência de Julien (no andar debaixo é projetado as fotos dos soldados; no andar de cima está localizado o relicário dedicado à esposa) sugere o quão o protagonista flutua entre tais perdas. Se em ambos os cômodos Julien assume a posição de espectador, no mausoléu particular que construirá no cemitério, o protagonista irá se transferir para a posição de realizador, dispondo a mise-en-scène ao seu gosto, de maneira que o reflexo da luz das inúmeras velas adorne a foto de cada ente querido já falecido — em suma, tentando elaborar uma imagem viva através da “chama da vida”, como o próprio personagem se refere às incandescências. Agora, o tracking-shot segue a voz de Julien e não mais os seus olhos, como ocorrera nas cenas em que as figuras de Julie e Massigny nos foram apresentadas.
Considerando que o filósofo Gilles Deleuze, a partir de Henri Bergson, afirma que a imagem é movimento assim como a matéria é luz (logo, o plano de imanência das imagens está fundado no quádruplo imagem=movimento=matéria=luz), os três momentos de ‘O quarto verde’ em que a câmera de Truffaut propõe movimento às imagens fotográficas, significados a partir da concepção de Julien Davenne acerca de seu mausoléu, nos levam a deduzir que ‘O quarto verde’, em sua natureza, se refere à cinefilia para aproximar-se do desejo de fazer cinema, através do intuito de seu protagonista. Ou seja, um paralelo autoral à trajetória profissional do próprio Truffaut, que antes de cineasta, era crítico da revista Cahiers du Cinéma.
Construído no cemitério da província após o cômodo reservado à memória de Julie ter sido destruído em um incêndio, o mausoléu abriga não apenas a esposa, mas todos os entes queridos que passaram pela vida de Julien Davenne. Tanto a presença de Julie quanto a de Paul Massigny são constantes na narrativa, embora tais personagens nunca se materializem, nem mesmo na instância do flashback. A fotografia de Néstor Almendros realça a abundância das chamas das velas e traz para a imagem um brilho animador que revela a força da presença dos mortos no universo de Julien — ou ainda, o caráter de permanência de sua própria memória em relação a eles. O altar é composto pela fotografia de cada um deles: é aqui que surge a referência à cinefilia, através da iconografia fetichista. Na inviabilidade de possuir o objeto completo, tem-se o fragmento possível.
A mudança de função de Julien Davenne de espectador para encenador é reforçada por uma autocitação de Truffaut. A fotografia do ator Oskar Werner no set de ‘Jules e Jim’ (1962) surge no momento em que o protagonista apresenta o recinto à Cecilia. “Eu o matei durante a guerra, era um soldado (…) olhando-o assim, difícil pensar nele como um inimigo”, descreve Julien. Apesar de Werner ainda estar vivo durante as filmagens de ‘O quarto verde’, a relação de amizade entre Truffaut e o ator austríaco estava rompida devido à uma difícil convivência durante a produção de ‘Fahrenheit 451’ (1966).
“Não é por os outros estarem mortos que a nossa afeição por eles diminui, mas porque nós mesmos morremos”, disse Marcel Proust. Em ‘O quarto verde’, manter os entes queridos vivos através da lembrança é um desejo diretamente ligado ao caráter da fidelidade. Afinal, o zelo de Julien perante os amigos e a mulher mortos (ele se recusa a substituí-los por outras pessoas) dialoga também com a tendência realista do registro da imagem fotográfica perante o material que testemunha. Nisto, é curioso como Julien, na elaboração de seu altar, demonstra sua crença unívoca na fidelidade da imagem, chegando a recusar um manequim que fora construído à semelhança de sua esposa. Ele o destrói por evidenciar, em seu próprio material, a falsificação resultante do ato de mimetizar.
Esta fidelidade incorruptível é um ímpeto que traduz com veemência o desejo impossível pelo definitivo, uma questão que permeia boa parte da filmografia de François Truffaut. Julie Kohler em ‘A noiva estava de preto’ (1968); Louis Mahé em ‘A sereia do Mississippi’ (1969); a filha de Victor Hugo em ‘A história de Àdele H.’ (1975): diversos protagonistas truffautianos buscam frequentemente soluções para contornar o relativo, significando a aceitação do provisório como uma árdua tarefa para a condição da própria existência. ‘O quarto verde’ assume-se também como o culto a um sentimento que recusa a substituição, que crê na presença do amado como algo absoluto e inestimável.
Aqui a morte não é abordada sob um viés metafísico; Truffaut busca tratá-la de maneira direta. O velório que situa a sequência posterior aos créditos iniciais é bastante reveladora de suas intenções perante o tema. Há um expresso distanciamento da fé católica: recusa-se a possibilidade da ressurreição eterna, do encontro de almas, da prece como meio de contato extraterreno (Julien Davenne chega a expulsar o padre da cerimônia). Tal esforço só seria cabível se pusessem seus corpos de volta à vida antes de serem enterrados, como o milagre apresentado em ‘A palavra’ (1955), filme de Carl Theodor Dreyer. Ademais, Julien não é um ser vivo querendo adentrar o plano dos mortos, mas sim alguém que questiona a tragédia, tentando mantê-los, da maneira possível, na esfera onde vive. Daí toda a sugestão espectral ligado à sua figura atingir a encenação como se fosse a contaminasse -e não o contrário -, da mesma forma que os únicos eventos narrativos ligados à alguma possível atmosfera de suspense advém de intervenções naturais como chuvas e relâmpagos.
Transmutação da existência. Se, na abertura, Julien (re)via/(re)vivia suas memórias de guerra, agora, antes de morrer, ele tem a visão de sua câmara particular, uma visão iluminada pelas dezenas de velas que a habitam, uma visão posta em movimento graças aos efeitos ópticos introduzidos esteticamente por Truffaut. Novamente, uma sobreposição que institui um elo: o protagonista está prestes a integrar-se ao mausoléu, sendo ele mesmo a vela derradeira, o elemento que faltava para a completude do arranjo que criou. Julien está pronto não só para Julie e para Paul Massigny, mas para aderir à forma alternativa de existência que ele mesmo elaborou, como um cineasta elabora uma realidade em sua encenação, da maneira como um artista (Truffaut) insere-se em sua própria obra (o filme).
Se os sentimentos evocados pelas lembranças indeléveis de Julien mantiveram Julie e Massigny presentes ao longo do filme, é o amor de Cecilia, a espectadora fiel, que possibilitará sua permanência e, consequentemente, a coexistência de todos aqueles que compõem o altar do protagonista. 39 anos depois da morte de François Truffaut, ‘O quarto verde’, tão quanto ou até mais do que as evidências da mise-en-abyme de ‘A noite americana’ (1973), resta como o registro filosófico da imanência de uma arte a partir do desejo de seu criador.
“Aqui, celebro as pessoas que me foram importantes. É como se fosse uma declaração de amor. Não é deprimente, nem mórbido, nem triste (…) Não devemos nos desligar das coisas e pessoas sobre as quais não se fala mais, mas continuar a viver com elas, se as amamos. Recuso-me a esquecer.” (François Truffaut)