“La Femme d’à côté”. FR/1981. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Armand Barbault. Roteiro: François Truffaut, Suzanne Schiffman, Jean Aurel. Fotografia: William Lubtchansky. Música: Georges Delerue. Montagem: Martine Barraqué-Curie. Elenco: Gérard Depardieu (Bernard Coudray), Fanny Ardant (Mathilde Bouchard), Henri Garcin (Philippe Bouchard), Michèle Baumgartner (Arlette Coudray), Véronique Silver (Mme. Odile Jouve), etc.
“Au bout du téléphone, il y a votre voix/
Et il y a les mots que je ne dirai pas/
Tous ces mots qui font peur quand ils ne font pas rire/
Qui sont dans trop de films, de chansons et de livres/
Je voudrais vous les dire/
Et je voudrais les vivre/
Je ne le ferai pas/
Je veux, je ne peux pas/
Je suis seule à crever, et je sais où vous êtes/
J’arrive, attendez-moi, nous allons nous connaître/
Préparez votre temps, pour vous j’ai tout le mien”
(‘Message personnel’, Michel Berger/Françoise Hardy)
Capaz de estabelecer a atmosfera do filme ressaltando o íntimo dos personagens perante a fábula e a encenação, a câmera de François Truffaut muda de ares, reduz o espectro, mas mantém o alcance. Depois do coletivo teatral na Paris da II Guerra Mundial de ‘O último metrô’ (1980), sua lente detém-se no par Bernard Coudray e Mathilde Bouchard, espécie de ‘Tristão e Isolda’ contemporâneos, situados numa pacata província ao sul da França. Dois antigos amantes, agora casados com outras pessoas, que por um lance do destino se tornam vizinhos. Um reencontro que desperta em si os laços emocionais, indo da fascinação (no entorpecer de um beijo) à obsessão (o orgasmo fatal), paroxismos movidos pelos apelos contidos nos abismos interiores da paixão. É o ‘l’amour fou’ que governa A MULHER DO LADO: o amor louco, vívido, carnal, tão passional quanto sublime (conforme descrito por André Breton), concentrando em suas cenas um engajamento emocional dilatado pelo páthos que o tema requisita.

“É preciso saber como ser amado”
Essa vertigem romântica atua pela ordem do desejo residido na profundidade discursiva do cinema clássico. Através da transparência do desenvolvimento da ação no espaço, François Truffaut tensiona Bernard e Mathilde entre o caos irracional da paixão e a normalidade estável, presente na rotina junto aos seus respectivos cônjuges. Negando o sadismo, a urgência emocional ganha ares de purgação. Eis aqui a cristalização de um vestígio classicista que sempre rondou a escritura de Truffaut, uma estrutura que surge não mais de maneira referencial ou alusiva, mas como alavanca para a criação. A MULHER DO LADO se estabelece na filmografia do realizador como um dos exemplares mais eficazes perante a organicidade capaz de homogeneizar um mundo de maneira fluida, donde se conjugam a composição translúcida da mise-en-scène, a articulação interna e externa dos planos e a dinâmica da história perante a construção da trama. O equilíbrio entre a pertinência da cena e a sustentação concisa dos prolongamentos proporciona uma representação do interior dos protagonistas que não trai as formas do mundo sensível onde se situam.
É uma ação ativa mas sutil, que recorre a detalhes e gestos para fundamentar os aspectos psicológicos do enredo. Um olhar possessivo de Bernard, que de tão incisivo “agarra” Mathilde pelo vestido mesmo à distância; a espontaneidade de um movimento que levanta rapidamente a camisa, seduzindo Bernard e a lente da câmera ao deixar entrever um seio de Mathilde; o repetitivo som da bola de tênis na quadra do clube, transmitindo uma agonia interna; a pintura localizada próxima ao telefone, dando indícios do violento entrevero que sucederá na festa de despedida do casal Bouchard; a confirmação da memória apaixonada acerca de um gesto proferido pelo outro; a pausa suspeita numa fala, que sugere insegurança; uma confissão blindada pelo toque do piano diegético; o reflexo esmaecido do amante quando uma lembrança a dois vem à tona.

“Ele me diz, ‘você deveria virar a página’… mas ela pesa uma tonelada”
Em meio ao regime clássico, entretanto, há uma interferência moderna, prevista na narração onisciente da personagem Mme. Odile Jouve. Sua consciência da câmera a permite interpelar diretamente o espectador. Esse distanciamento intervém no filme através de um formato que se assemelha ao formato jornalístico televisivo, adiantando o final trágico do casal protagonista.

Proprietária do clube esportivo que situa boa parte dos eventos da trama, Mme. Jouve é o ponto nevrálgico da narrativa de A MULHER DO LADO. Na juventude, foi abandonada pelo amante e, desesperada, atirou-se da janela, sendo salva pelo choque contra uma porta de vidro. Uma prótese na perna direita restou como sequela. Sendo o evento trágico, mas não fatal, Mme. Jouve optou por impedir que o rapaz soubesse de sua desgraça. Esta é uma perspectiva que circunda o filme: o subsequente desfalecer de Mathilde em resposta ao primeiro beijo de Bernard após o reencontro é o indício de que, aqui, o romantismo está irremediavelmente atrelado ao lúgubre.
Afinal, Truffaut reconhece em Mathilde a mesma tendência de Mme. Jouve. A senhora passa a ser um objeto de fixação, como exemplo vivo do l’amour fou; tal qual a fuga disparatada da senhora ao descobrir o retorno de seu antigo amor espelha a (frustrada) tentativa de dissimulação do desejo em Bernard em meio as insistências de reaproximação da ex-namorada. A sublimação surge como uma espécie de alternativa ao adultério, opção esta que Bernard e Mathilde são, no fim das contas, incapazes de aderir. A experiência de Mme. Jouve também exerce fascínio sobre François Truffaut, como se o diretor admirasse com distanciamento a maturidade que lhe dá sabedoria e prudência e que é impossível ao seu casal principal.
“Nós tínhamos o dom de ferir um ao outro”
A rendição total ao desejo se dá na intimidade de um quarto de hotel, mas só após superarem a insistência de uma pelejada convicção que, mutuamente, manteve a linha telefônica de Bernard e Mathilde ocupada por um bom tempo. A intensidade, todavia, não tarda em transferir o sentimento para uma zona obsessiva: Bernard volta a ser o rapaz compulsivo e controlador de outrora. Em meio a uma festa dada por Mathilde e seu marido como despedida para uma viagem do casal, seu amante perde absolutamente o controle ao perceber que ela optou por continuar ao lado do outro. O olhar de Truffaut deixa brotar uma pulsão de origem hitchcockiana que emerge como incontrolável: a distância entre a câmera e a matéria proporciona um ritmo interno capaz de organizar a força e concentrar o tom da intensidade dramática.

A partir disso, é como se A MULHER DO LADO entrasse numa outra esfera, onde Bernard cumpre aquilo que Mathilde esperava (e temia) e vice-versa, uma vez que o motivo do rompimento inicial foi a instabilidade reativa, fruto do temperamento bruto do então rapaz. Se a distância dos anos não aniquila a paixão, também não contorna as previsões. Abalada com o ataque de Bernard, uma forte crise nervosa acentua-se gravemente em Mathilde. O colapso em público durante o lançamento de seu livro sinaliza que a paixão dominou sua existência, sobrepondo-se até à realização profissional. Crendo que uma tragédia é questão de tempo, Mme. Jouve intervém e pede a Bernard, então já resignado e conformado com a rotina junto a esposa, que a visite no hospital o mais rápido possível. Alheia à frieza dele, Mathilde, entretanto, não pretende cometer o mesmo erro de Mme. Jouve de ater-se ao trágico. Ela anseia pelo fatal.
“Sei que não vou ajudar tendo ciúmes do seu sofrimento”
Na mise-en-scène de A MULHER DO LADO há uma impressão de contiguidade que ocasiona um transbordamento do espaço cinemático, permitindo que a cena se prolongue pelas imediações do campo para além dos limites do quadro. Tanto as residências vizinhas quanto a intermediação entre elas adquirem um propósito discursivo que perdura ao longo das sequências. François Truffaut recorre a portas e janelas para canalizar a comunicação entre os personagens, não só instituindo a observação do outro como forma de contemplação voyeurística, mas também materializando os diferentes níveis de aproximação entre eles. Isso permite que a decupagem se dê através de longos planos onde o movimento de câmera panorâmico valoriza a cena através do fluxo espacial dos corpos.
Deriva daí um aspecto natural do registro cotidiano dos personagens, reforçado pela imagem de paletas frias do diretor de fotografia William Lubtchansky, frequente colaborador de Jean-Luc Godard e Jacques Rivette. Essa textura remete à uma realidade doméstica, ainda que a incidência de um tom azulado venha cobrir os personagens conforme o desenrolar da trama, remetendo à lassidão de uma banalidade corriqueira que, aos poucos, revela-se uma angústia silenciosa. Afinal, é no desabrochar dos rompantes carregados de lirismo em meio aos detalhes triviais e corriqueiros que reside a idiossincrasia artística de Truffaut.

O forte apego à motivação carnal impede o realizador de objetivar a subjetividade de seus personagens. Assim como praticamente toda a obra de Truffaut, A MULHER DO LADO é, essencialmente, um ensaio sobre a singularidade que pauta as relações amorosas. A estabilidade presente nas tranquilas residências caracteriza a relação conjugal dos Coudray e dos Bauchard, mas é negada aos amantes Bernard e Mathilde — ela tenta alugar, por um mês, o quarto de hotel onde se dão os encontros fortuitos, o que não é permitido pela gerente.
Isso não quer dizer, todavia, que a significação de Truffaut perante os relacionamentos aceda à significação simplista. Há prós e contras tanto no equilíbrio de uma parceria matrimonial quanto no ímpeto avassalador da paixão, mas tais questões são incapazes de permutarem-se. A fugaz e fulgurante intensidade passional que se recusa a ser sublimada pelo social impede os protagonistas de, ao mesmo tempo, serem apenas bons amigos ou de atingir a mesma constância presente na união com os seus respectivos cônjuges. Por outro lado, tais casamentos não possuem a mesma voltagem sexual e emocional do adultério. Seus marido e esposa, inclusive, parecem ter plena ciência disso: vide a compreensão com que abordam Mathilde e Bernard após o infortúnio ocorrido durante a festa — e, principalmente, as consequências que daí derivam. Enquanto os Coudray engravidam do segundo filho, o marido de Mathilde se dedica fielmente ao tratamento psiquiátrico de seu colapso nervoso, atitudes que reafirmam suas identificações com o aspecto definitivo do casamento.
“Escuto as canções porque elas falam a verdade. Quanto mais estúpidas, mais verdadeiras. Logo, não são estúpidas”
Na narrativa de A MULHER DO LADO não há cenas de flashback: o passado do casal é relatado no presente, pelo diálogo. Verifica-se aqui um apelo ao storytelling similar ao de ‘Duas inglesas e o amor’ (1971) e ‘O amor em fuga’ (1979): o cineasta sugere o sentimento através do que é dito, propondo ao espectador que visualize as imagens para completar o filme e experimentar a realidade dos personagens. Inclusive, em meio às acusações trocadas entre a dupla (Mathilde diz que Bernard só se apaixonou por ela, mas ele afirma que a amou; ele insiste que foi abandonado por Mathilde e ela retruca dizendo que o fez devido à sua infidelidade), Truffaut não está preocupado em estabelecer a veracidade dos acontecimentos. A única certeza é a intensidade passional que norteia o envolvimento dos protagonistas. De acordo com a visão de A MULHER DO LADO, o sentimento é uma característica imutável, blindado contra o passar dos anos. Ao repetir os erros de outrora sob a máscara do exagero, Mathilde e Bernard atestam que o amor passional nunca se torna démodé.

Fanny Ardant, até mais do que Gérard Depardieu, compreende as oscilações dessa forte carga dramática que envolve os personagens tanto na volúpia quanto no desespero. Ela amplia as confissões que residem nos diálogos ultrarromânticos do roteiro, entremeando-as com pausas ávidas, retidas em suas feições salientes, efígie singular de uma paixão jamais cicatrizada. Ardant corresponde plenamente à atração perpetrada pela câmera de Truffaut, costumeiramente hipnotizada pelos personagens femininos dinâmicos e ativos que orientam a narrativa de seus filmes.
Esse fascínio deixa escapar que o zelo irrestrito pela quimera romântica é, no fundo, a moral de A MULHER DO LADO. Não à toa, o longa se sobressai em sua obra como aquele de atmosfera mais erótica. É a primeira vez que o tesão entre os personagens ultrapassa a desconfiança astuta do autor, dando vazão a um erotismo que não é cínico, mas sensório. As diversas cenas dos protagonistas ao telefone sublinha que o exercício do desejo se dá por uma via táctil; afinal, no regime romântico truffautiano, a carícia na face em resposta à convocação pelo nome é a confirmação da presença física do ser amado.
“Todas as histórias de amor precisam ter um início, um meio e um fim”
Ao promover a aproximação total entre desejo e horror no deslinde da trama, François Truffaut permanece em ativo contato com as entranhas do cinema clássico. Na sequência, Mathilde ressurge como uma fantasmagoria: a insistência do bater da porta na residência ao lado interfere como um som hipnótico a atrair Bernard pela madrugada. A atmosfera se torna tão negra que o filme transfere-se para o registro do suspense. Este momento envolve uma profusão de fetiches: Bernard possui Mathilde na casa vizinha onde ela residia com o marido, correspondendo à antiga curiosidade de uma possível união matrimonial; Mathilde exerce finalmente a sua fantasia de unir paixão e morte. A fatalidade surge como a única possibilidade do orgasmo em uníssono (la petite mort), uma vez que a intensidade de Mathilde e Bernard parece operar majoritariamente em pólos opostos — a recorrência do “Attendez-moi” (“Me espere”), trocado entre ambos ao longo da trama, parece completar aqui o seu sentido.

Determinismo do trágico, lapsos transformados em revelações e o flerte com o expressionismo e sua própria negação: sob tais aspectos, A MULHER DO LADO dialoga com o período americano do diretor alemão Fritz Lang. É curioso que, em pleno início da década de 1980, no estabelecimento de uma tendência estética de cinema maneirista (ou, na versão francesa, o cinéma du look), que preza pela autoconsciente envergadura do artifício, Truffaut se volte para o clássico sob uma chave afetiva-conceitual de aparência naturalista. É como se o debate entre o instável apelo sensorial das paixões e a estabilidade de uma relação conjugal saltasse para a imanência da forma: uma arquitetura que opera momento-a-momento de maneira insolúvel e indissociável, buscando aproximar-se da profundidade das pulsões incontroláveis através de uma estrutura racional, pautada pelo equilíbrio particular. O que seria, afinal, uma outra compreensão do cinema clássico além daquela promovida pela Nouvelle Vague, aproximando-se mais do elogio à mise-en-scène pura que almeja uma apreensão mais direta do mundo, tal qual propagada pela ideologia Macmahonista da revista Presénce du Cinéma (a alternativa à Cahiers du Cinéma). Não é necessário subverter para compreender; é possível fazê-lo por seu interior.
É óbvio, não cabe aqui ser ‘clássico’ já que o distanciamento temporal não possibilita. Assim como a tentativa de ressuscitar uma antiga paixão leva ao ocaso dos corpos físicos, A MULHER DO LADO, em sua última cena, recorre novamente ao distanciamento através da intervenção de Mme. Jouve, a narradora consciente, de frente para o espectador. É ela quem atribui o verdadeiro epitáfio de Bernard e Mathilde, que é também o do próprio filme: “Nem com você, nem sem você”.
