“Vivement dimanche!”. FR/1983. Direção: François Truffaut. Produção: François Truffaut, Armand Barbault. Roteiro: François Truffaut, Suzanne Schiffman, Jean Aurel. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Georges Delerue. Montagem: Martine Barraqué-Curie. Elenco: Fanny Ardant (Barbara Becker), Jean-Louis Trintignant (Julien Vercel), Philippe Laudenbach (Maître Clément), Philippe Morier-Genoud (Superintendent Santelli), Xavier Saint-Macary (Bertrand Fabre), Caroline Sihol (Marie-Christine Vercel), Anik Belaubre (Paula Delbecq), etc.
Ainda que sua fatura seja bem distinta, DE REPENTE, NUM DOMINGO parece prolongar a atmosfera noir que dá fim à “A mulher do lado” (1981). Se ali o espírito do l’amour fou preenche o longa ao mesmo tempo que contamina corpo e mente de Mathilde, protagonista vivida por Fanny Ardant, agora se trata de uma outra redenção. É a lente da câmera que se entrega completamente à figura da atriz principal, orientando um regime onde a superfície das aparências, através do ato de representar, se torna o eixo central entre conteúdo, tema e forma.
Dando o falso indício de uma comédia de costumes, DE REPENTE, NUM DOMINGO desponta com uma atmosfera leve em seus créditos iniciais, introduzindo a figura da secretária Barbara Becker (novamente Fanny Ardant) enquanto caminha feliz pela cidade, acompanhada de um cachorrinho, embalada pelo buliçoso tema musical de Georges Delerue [figura 1]. Basta um fade-out e o clima se altera de forma súbita. Noutra locação, a câmera silenciosamente se revela à espreita de um assassinato no campo. É ali que somos apresentados ao imobiliário de meia-idade Julien Vercel, patrão de Barbara, que está praticando caça na mesma hora e local. Pela coincidência dos fatos, a polícia aponta Julien como o principal suspeito pela morte de Claude Massoulier [figura 2]. À medida que surgem outros corpos conectados à investigação, caberá à jovem secretária salvar seu chefe, já que é a única que crê em sua inocência.
Nas narrativas de Truffaut é comum os personagens coabitarem um presente assombrado pela sugestão nostálgica, isto quando já não estão situados no passado. DE REPENTE, NUM DOMINGO promove um exercício de ambientação que é similar à exceção absoluta de sua obra neste quesito (o futurismo de “Fahrenheit 451” (1966), marcado pela profusão de signos de vários períodos). A fotografia em preto-e-branco, aliada à temática thriller e aos arquétipos criminais, promove uma identificação imediata com a plasticidade do imaginário noir do cinema estadunidense dos anos 1940 [figura 3], enquanto a cenografia e o figurino vêm contemporaneizar a história em uma cidade francesa não especificada, onde aparelhos como telex e orelhões marcam presença [figura 4]. Ao optar por uma lógica estética atemporal e geograficamente incerta, Truffaut propõe uma densidade particular da ligação entre passado e presente.
A cinefilia inerente do realizador faz com que a nostalgia permeie a trama em sua faceta mais pura, como uma visão do passado incapaz de materializar-se completamente, distanciando assim de um idealismo saudosista. Ao mesmo tempo, ela não é interrompida por uma estilização de envergadura e distorção formal, tal qual o artifício maneirista na plasticidade neon-noir de filmes do mesmo período como “Gigolô americano”, de Paul Schrader (1980), “Diva — Paixão perigosa”, de Jean-Jacques Beineix (1981) e “Corpos ardentes”, de Lawrence Kasdan (1981).
DE REPENTE, NUM DOMINGO parte de uma cosmologia cuja visão de mundo é também uma visão “do cinema”, a qual dialoga com um repertório de referências que integram um imaginário cinematográfico específico. Detecta-se neste longa um envolvimento libidinal autocentrado, em parte alusivo — pois dialoga com citações externas, atinentes à memória afetiva de François Truffaut como cinéfilo — , e, ao mesmo tempo, reflexivo — porque mira a própria obra do diretor ao reincidir em motivos temáticos e aludir imageticamente cenas anteriores, promovendo assim contornos de uma autofagia metalinguística. Este exercício não macula o equilíbrio entre construção e cosmética do espaço, até porque a narrativa em torvelinho prioriza os vetores emocionais da trama. Afinal, Truffaut sempre privilegiou a humanidade dos personagens em prol da forma.
Através de um ritmo ágil onde as situações entrecortam-se e interrompem entre si, o diretor-roteirista emprega elementos típicos como personagens-tipo e situações-clichê tanto do thriller quanto do cinema noir e da screwball comedy, em graus variados de proximidade com suas convenções originais. Da mesma maneira, recorre a estilos e temas localizáveis em exemplares destes gêneros: a fotografia de luz muito direta com sombras marcadas nos filmes noir de Josef von Sternberg, Billy Wilder e Raoul Walsh; a intuição de um humor negro derivativo do tensionamento dos personagens e o calculado alinhamento sequencial de cenas prevendo a reação do espectador, marcas do suspense hollywoodiano de Alfred Hitchcock; o ritmo intensificado palpado pela tensão sexual e pelos diálogos urgentes, como nas comédias de Ernst Lubitsch e Howard Hawks, respectivamente. Truffaut promove então um cruzamento entre costumes de gêneros de ordem (noir) e gêneros de integração (screwball comedy). O protagonismo heróico, geralmente masculino no primeiro caso, aqui é atribuído à mulher; o cenário alterna entre o ideologicamente instável e o estável; a resolução dos conflitos externos promove a estabilidade emocional das intempéries particulares.
Graças às atmosferas naturalmente distintas, ambos os gêneros estão em um permanente choque de forças aparentes: a comédia atravessando o thriller até que seja substituída pelo romance, enquanto aquele volta e meia adquire a roupagem noir [figuras 5 e 6]. Ainda que o cerne do enredo seja a investigação criminal, há uma organicidade rítmica que permite a intervenção cômica, mesmo que de maneira brusca e superficial — exemplo disso são as sequências ocorridas na delegacia, interrompidas por rápidas gags que dinamitam a tentativa de seriedade nos inquéritos dos policiais, os quais estão sempre retidos em evidências e atrasados perante as novas pistas da investigação [figuras 7 e 8].
Encerrada a atividade administrativa, uma vez que Julien a demite minutos antes da chegada da polícia em seu escritório, Barbara, que é atriz amadora nas horas vagas, concentra-se então nos preparativos para a peça que entrará em cartaz no próximo domingo. Durante a sequência do ensaio, a mise-en-scène estabelece sua figura em um duplo enquadramento por meio da sobreposição de duas portas (a cenográfica e aquela que permite a entrada no palco) [figura 9]. A ex-secretária ainda não sabe, mas está prestes a assumir um novo papel, o de detetive. Julien ressurge, solicitando que ela o ajude a comprovar sua inocência. Eis um motivo cênico reiterado ao longo de DE REPENTE, NUM DOMINGO: atravessar uma porta implica em assumir uma outra aparência [figuras 10, 11 e 12]. Cabe ao personagem optar em fazê-lo ou não.
Proativa, de personalidade extrovertida e pensamento rápido, a protagonista Barbara Becker é uma espécie de lacuna funcional, tão disponível quanto apta para assumir as diversas responsabilidades que a narrativa introduz em sua trajetória. Ao despedi-la, Julien indiretamente não só a tornou disponível como, em seguida, ofereceu uma oportunidade para que a atriz-amadora estivesse em pleno movimento, descobrindo novos papéis que surgem durante a “performance” investigativa. Ela os aceita com ânimo, como se fossem distintas partes em um espetáculo, que ensejam mudanças de figurino, de atmosfera e até locação. Seu poder de conhecimento a poderia estabelecer facilmente como uma femme fatale vingativa, mas Barbara subverte a função e orienta a narrativa com o intuito de proteger Julien. Ao mesmo tempo, sua autoconfiança jovial, movida por um espírito libertário, refere-se ao arquétipo estabelecido por Katharine Hepburn nas comédias dos anos 1930. A própria composição de Barbara reflete em si o choque estrutural de gêneros do roteiro.
Apesar do macguffin inicial, tudo gira em torno da personagem de Fanny Ardant. Mesmo que as coincidências da trama enredem Julien nos assassinatos que vão surgindo, a instância narrativa, que não põe em dúvida sua inocência, torce principalmente pela capacidade de Barbara em desatar o falso culpado. É ela quem afronta os antagonistas, uma típica protagonista feminina Truffautiana moldada pela vitalidade e dotada de um alto poder de persuasão. O que justifica o entusiasmo como a câmera atribui contornos dramáticos ao seu percurso, decupando, integrando e locomovendo-se em relação à sua figura como se por ela fosse seduzida. François Truffaut centraliza a encenação em Barbara Becker, como quem abre espaço para o contínuo agenciamento da personagem. A beleza da busca se sobressai à chave do enigma — até porque os crimes que cruzam o seu caminho não trazem consigo a resolução do mistério, mas o ampliam. Contudo, pela codificação dos pontos-de-vista que se firma em Barbara e posiciona Julien como observador, o cineasta promove a passagem do espectador de voyeur a investigador.
À medida que Truffaut evoca autorreferências para sedimentar o mundo no qual Barbara é inserida graças ao pedido de Julien, é como se o diretor emergisse Fanny Ardant no seu universo particular. DE REPENTE, NUM DOMINGO seria, mais profundamente, uma espécie de declaração de amor fílmica à atriz, sua parceira amorosa na vida real. O longa se defronta então com um mistério cinematográfico: como todos esses eixos temáticos poderiam ser renovados sob um novo olhar? O último longa-metragem de François Truffaut torna-se, involuntariamente, o seu filme-síntese.








As reflexivas citações imagéticas surgem a partir do segundo ato, quando Barbara dá início à investigação no Hotel Garibaldi: o cartão da agência de detetives La Blanche remete visualmente à “Beijos proibidos” (1969), no qual o alter-ego Antoine Doinel trabalhou na mesma função [figuras 13 e 14]; a mecânica do jogo de sedução no elevador do Hotel alude ao mesmo evento ocorrido entre os protagonistas de “Um só pecado” (1964) [figuras 15 e 16]; reitera-se a passividade doméstica do homem foragido que depende da ação corajosa da mulher apaixonada, como na relação principal de “O último metrô” (1981); a pulsão fetichista por pernas femininas em movimento está em Julien, tal qual o personagem-título em “O homem que amava as mulheres” (1977); a tensão do ciúme, extravasada em crimes passionais decorrentes do uso de armas de fogo, retoma o mesmo apelo de “Um só pecado”; retorna a missão suicida de invadir o último andar de um prédio através das janelas, façanha devedora do imaginário Hitchcockiano, como em “A sereia do Mississippi”; maior monumento fálico da Europa, a Torre Eiffel, ícone que reflete o espírito livre de Antoine Doinel em “Os incompreendidos” (1959) e “Beijos proibidos”, e que ressurge em “O homem que amava as mulheres”, “O amor em fuga” (1979) e “O último metrô”, é aqui uma escultura da qual Barbara se apossa e utiliza como arma para proteger Julien de um ataque violento [figuras 17 e 18]; o frame do momento em que Barbara se aproxima da pista principal se assemelha àquele em que a personagem de Brigitte Fossey está prestes a salvar a carreira literária d’ “O homem que amava as mulheres” [figuras 19 e 20]. Que tais ações, retomadas em DE REPENTE, NUM DOMINGO e identificáveis visualmente com suas origens, se dão em situações que levam a um resultado frustrante, é um dado a se guardar para o desfecho deste longa-metragem.
O filme dá continuidade à uma linhagem de relação do universo romântico Truffautiano com o noir, composta por “Atirem no pianista!” (1960), “A noiva estava de preto” (1968) e “A sereia do Mississippi”. Tal qual o musicista Charlie, protagonista do primeiro, Barbara é inserida numa trama criminal ilustrada pela iconografia do gênero noir — ambos os roteiros foram inspirados em antigos pulp fictions norte-americanos de David Goodis e Charles Williams, respectivamente. Enquanto Charlie era perseguido, agora é Barbara quem conduz a investigação. O pianista necessitava de um auxílio feminino (providenciado pela personagem Léna); o intuito primordial de Barbara é fazer com que Julien possa comprovar sua inculpabilidade. Em ambos os casos, o compromisso se certifica a partir do desenvolvimento de uma atração amorosa, cuja sedimentação proporciona uma crença tão solitária quanto fidedigna no depoimento do acusado, este irremediavelmente vulnerável. Barbara e Léna assumem um papel proativo em suas respectivas tramas, mas só aqui a figura feminina ganha o protagonismo (não à toa, ela se apossa do indefectível sobretudo de Julien ao dar início à averiguação).
Há sempre uma ansiedade latente na narrativa fílmica de François Truffaut, como se ele tentasse inibir qualquer intervalo entre aquilo que julga ser essencial. É como se a imagem em movimento fosse muito frutífera para se deter em enlevos sugestivos e a aptidão natural da câmera fosse tão excitantemente fugidía para investir em tempos mortos. O que revela no cineasta menos um prazer pela arregimentação do fino encadeamento de sequências do que a urgência pela construção de uma cena e sua imediata captura. O acúmulo que em “Atirem no pianista!” dava à narração uma aparência disparatada, 23 anos depois retorna autocentrado, definido e assentado.
Apesar da engenharia ligeira, há em DE REPENTE, NUM DOMINGO uma encenação pautada pela precisão límpida e discreta, a qual proporciona o registro econômico de planos objetivamente mais curtos, que vem atender ao ritmo febril com que o realizador almeja conduzir a trama. É nesse mesmo desembaraço que o Truffaut-roteirista constrói psicologicamente os personagens e os insere na ação para que rapidamente se desenvolvam.
O que promove a ponte entre thriller/noir e comédia/romance de forma súbita é o humor negro, por onde DE REPENTE, NUM DOMINGO trafega fugaz do pacato ao sádico, do sensível ao cético e do sexual ao proscrito. Movimento transicional que está contido na própria cenografia: o escritório de Julien Vercel, planejado com uma porta externa que permite a locomoção dos personagens pelo extracampo, aos poucos adquire o aspecto de lar quando convenientemente se torna a residência dele junto a Barbara [figura 21]; assim como a passagem secreta contida no salão esteticista da esposa do imobiliário, Marie-Christine, que o conecta ao escritório do advogado Clement, facilita uma disposição íntima entre esses dois que se mostrará diretamente conectada à solução do mistério [figura 22]. Na narrativa, aliás, metamorfoseia-se do profissional ao afetivo-particular — e vice-versa — com facilidade (não só Julien e Barbara, mas também ela e seu colega de teatro amador, o fotógrafo jornalístico Bernard e, como será revelado posteriormente, o serial killer e uma de suas vítimas).
O envolvimento amoroso que brota entre Barbara e Julien é consequência da tentativa de superar a tensão nervosa e a impaciência hostil que derivam de suas diferenças. Tal mecânica narrativa de esforço mútuo alude aos celebrados casais hollywoodianos das screwball comedies (Katherine Hepburn & Cary Grant; Barbara Stanwyck & Henry Fonda; William Powell & Carole Lombard). Ademais, o primeiro beijo dos dois se dá por meio de um subterfúgio um tanto sintomático: para ocultar-se dos olhos da polícia, o casal se agarra no canto de uma marquise. “Aprendi isto no cinema”, justifica Julien à moça. É a partir daí que a comédia dá lugar ao romance. À medida que a resolução do mistério sobre a identidade real do assassino se aproxima, todavia, o afunilamento da trama faz com que o desenvolvimento amoroso fique um tanto achatado perante as prioridades do enredo.
Como perfazem Jacqueline Bisset em “A noite americana” (1973) e Catherine Deneuve em “O último metrô”, no projeto de Truffaut a sedução e a consequente relação sexual são ferramentas que a inteligência feminina utiliza com o intuito de angariar e garantir a presença do homem. O dom de iludir visa sempre uma causa maior que o raciocínio masculino é incapaz de compreender e/ou vislumbrar naquele momento, ainda que ele mesmo seja peça fundamental da engrenagem (Jean-Pierre Léaud e a conclusão das filmagens, no primeiro filme; Gérard Depardieu e a sobrevivência do Teatro Montmartre, no outro). É assim que Barbara impede a fuga precipitada de Julien em um momento de desespero, uma vez que tal atitude detonaria o êxito de sua investigação amadora — ou, especificamente, o seu desempenho perante a polícia, estratégia da qual o falso culpado ainda não tem conhecimento. Para o seu próprio bem, é necessário que o homem aja pela ignorância, mesmo que isto custe o esforço feminino. No caso de Barbara, valerá também o seu sofrimento.




‘Tenho pressa porque é domingo!’. É no dia do descanso comum que se dará a grande performance da protagonista. Apesar da coincidência de ser a data de estreia da peça para a qual a atriz amadora se preparava no início do filme, Barbara agora tem um outro texto em mãos, aquele que implica na comprovação definitiva da inocência de Julien. De todas as elaborações que Barbara participou ao longo da trama, esta é a de engenharia mais emocionalmente complexa. Ela precisa representar para o ex-chefe e agora amante, manipulando-o através de uma falsa decepção — minimamente planejada, ilusória, mas ainda assim uma traição.
Se até ali, deslumbrado por sua protagonista/atriz, Truffaut inseriu-a numa espécie de inventário diegético de sua própria filmografia, possibilitando um desdobramento de mini-performances emolduradas em deslumbrantes close-up’s (verdadeiros elogios imagéticos onde o recorte do chiaroscuro na fotografia valoriza a fronte de Fanny Ardant como uma efígie de feições potencializadas [figuras 23, 24 e 25]), agora o diretor exige, tanto da personagem quanto da própria intérprete, o máximo de sua capacidade performática. De costas para Jean-Louis Trintignant (Julien), mas de frente para a lente da câmera (e para Truffaut), os olhos marejados de Ardant encaram o extracampo como se estivesse num proscênio [figura 26]. Afinal, todo o esquema armado entre Barbara e a polícia nos é também ocultado e só iremos descobri-lo ao mesmo tempo que o seu amado.
Essa sequência-clímax, pautada pelo logro, é dotada de um aspecto teatral [figuras 27, 28 e 29]: entradas e saídas de cena demarcadas, diálogos oposicionais, ausência de profundidade e planura dos fundos. Institui-se o espaço da delegacia como uma espécie de huis clos, onde tudo se resolve dentro de uma área confinada. Em um coup de theatre (virada espetacular de eventos), a inculpabilidade de Julien é finalmente corroborada graças aos dotes farsescos de Barbara, cuja maquinação introduz o verdadeiro autor dos assassinatos para a cena e, com o auxílio do policial Santelli, o impele a manifestar sua responsabilidade.
‘Tudo o que fiz, fiz pelas mulheres (…) As mulheres são mágicas’. Antes de ser alvejado em um cerco policial [figura 30], o serial killer confessa a mesma velha crença do jovem adulto Antoine Doinel, trazida à tona em “Beijos proibidos” mas continuamente discutida por François Truffaut ao longo de sua obra. No desfecho, DE REPENTE, NUM DOMINGO traz o fim de um dos motivos elementares de seu autor: o romantismo exacerbado, fruto do endeusamento da figura feminina, que consubstancia uma crise interna propulsora de compulsões e desencantos. É como se Truffaut desejasse continuamente corrigir essa impressão tão utópica quanto imatura. Primeiro, através do discurso realista de Mme. Tabard, que tenta trazer os pés de Doinel de volta para o chão em “Beijos proibidos”; depois, na conclusão de “O homem que amava as mulheres”, onde a tardia tentativa de auto-reflexão do protagonista de meia-idade resulta ineficaz, levando-o a um acidente fatal.
Agora, a mácula do ultrarromantismo é conduzida às últimas consequências, exagero que se dá de acordo com a estrutura verborrágica do filme: o personagem masculino pratica crimes em prol de seu delírio, tornando-se antagonista. A única reação possível é o seu absoluto extermínio, encurralando-o para pulverizá-lo. Truffaut destrói aqui — e definitivamente, pelo acaso do destino — uma de suas questões pessoais mais auto-debatidas. É uma dinâmica em consonância com os demais resultados frustrantes que os personagens obtêm quando inseridos em recriações visuais de filmes anteriores do diretor, conforme mencionado acima.
Se DE REPENTE, NUM DOMINGO abriga em sua forma uma estrutura dialética de desejo e culpa, o plano final revela que, para além da desintegração de si mesmo, o que sobra é a superação desses resquícios sob um tom jocoso, retornando àquela espirituosidade dos créditos iniciais. Na sequência em se dá a função derradeira de Barbara, como noiva (grávida) no altar, prestes a celebrar seu matrimônio [figura 31], o enquadramento é fechado na ação de coroinhas que, com os pés, se apossam da lente da câmera que Bertrand [figura 32] acidentalmente deixa cair ao chão, como se fosse um brinquedo [figuras 33 e 34]. É óbvio que se trata de uma piada com a ignorância do repórter-jornalístico. Bertrand passa o filme registrando os fatos, às vezes bem próximo das pistas do crime, assim como Barbara. Ao contrário dela, o rapaz permanece sem a menor noção da verdade que subjaz à superfície. Sob esse aspecto, a cena ainda sublinha que a observação passiva é inócua.
Por outro lado, é também a transfiguração daquele eixo temático típico já mencionado: a obsessão voyeurística por pernas femininas. Em DE REPENTE, NUM DOMINGO, ele surge três vezes ao longo da narrativa. Primeiro, antes da morte de Marie-Christine: a esposa de Julien o atiça com o sinuoso movimento de suas pernas entreabertas, induzindo-o a desistir do pedido de divórcio pelas suspeitas de adultério [figura 35]. Em seguida, camuflado no escritório, o imobiliário tem como distração assistir ao caminhar das transeuntes por meio de uma janela inferior [figuras 36 e 37]. Barbara, então, resolve manipulá-lo neste mesmo cenário: ela conscientemente atravessa o seu “cinema particular” por duas vezes, tornando-se a protagonista daquele espetáculo voyeur sem que a solitária audiência a reconheça [figura 38].
Já o final, desvinculado de qualquer fetiche, se concentra na inocência pueril que reconfigura aquele motivo por meio de um ímpeto indisciplinar. A obsessão reincidente do olhar se torna um mero dispositivo de distração, elemento de humor auto-irrisório por parte do próprio cineasta. É uma auto-reflexão anacrônica que ao mesmo tempo promove um tipo de remate à sua obra. A partir de uma traquinagem que poderia facilmente constar em alguma passagem do longa-metragem seminal “Os incompreendidos” (1959) ou ainda em seu primeiro curta, “Os pivetes” (1957) — ambos protagonizados por crianças entre o fim da infância e o início da adolescência — , Truffaut reconhece que as próximas gerações provavelmente estariam alheias aos seus complexos.




Em DE REPENTE, NUM DOMINGO, a postura reflexiva-citacional perante a arqueologia das imagens não almeja desfigurar a imantação do ícone esgarçando a forma aparente, mas opta por se identificar com ela numa chave afetiva. O pensamento cinematográfico de François Truffaut reconhece os prolongamentos históricos espectrais, mas requer a transparência mediadora da narrativa para operar sua dramaturgia, sem virtuosismo retórico ou distanciamento irônico. Há uma poética de fugas e retornos onde a imagem é o invólucro da ideia, mas que opera a partir da composição da própria personagem vivida por Fanny Ardant, a atriz-amadora que é inserida em um universo de aparências próprias do cinema de representação.
Se há alguma investigação do simulacro imagético do cinema clássico, ela se dá pela imersão absoluta, fazendo dele motor e engrenagem narrativa do próprio filme. Ao contrário da maioria de seus colegas da Nouvelle Vague, François Truffaut permaneceu orientando-se tanto pelas referências iniciais do cinema clássico quanto por um interesse continuamente renovado acerca de seus próprios questionamentos psicológicos individuais, perpetuando uma trajetória desvencilhada dos modismos de forma e conteúdo que desestabilizaram a cultura mundial entre as décadas de 1960 e 1980. Truffaut, afinal de contas, estabeleceu-se como um realizador fiel ao próprio gosto, consequentemente constituindo uma filmografia personalíssima, de valores atemporais.
É como se o artista repetisse em sua obra aquele famoso ato do seu alter-ego Antoine Doinel, em “Beijos proibidos”: perturbado perante as bifurcações emocionais do destino, o rapaz se põe de frente ao espelho e repete o seu nome para si mesmo, como quem afirma, apesar de tudo, a própria existência.
“A ambiguidade reside nisso: filmo finais otimistas que, ao mesmo tempo, respeitam a lei da vida. São fins que tentam respeitar tanto a lei do espetáculo quanto a lei da vida. Na verdade, o espetáculo luta contra a morte” (François Truffaut)