Ricky Stanicky + O Homem dos Sonhos + Matador de Aluguel + O Astronauta + Instinto Materno
filmes assistidos em março/2024 (2ª quinzena)
Ricky Stanicky
de Peter Farrelly (EUA)
disponível no streaming
A árdua tarefa de desatar certas ilusões da infância, preciosos vestígios que ainda servem como escape dos encargos adultos.
O que caracteriza essa quimera em RICKY STANICKY é o traquejo social da encenação, a máxima shakesperiana que vê o mundo como um palco onde todos exercem determinado papel. Parceiros de longa data, o trio vivido por Zac Efron/Jermaine Fowler/Andrew Santino busca burlar tal convenção através de um amigo imaginário em comum, que os “convoca” justamente em meio aos eventos mais fastidiosos do dia-a-dia. Uma desculpa tão imatura quanto eficaz, com validade próxima de expirar.
Aqui entra John Cena, o ator fracassado incumbido de dar músculos e rosto ao personagem-título. O method acting é então levado ao paroxismo, rapidamente evoluindo da imitação caricatural à personificação absoluta (“fake it until you make it”). Com charme e traquejo, Ricky obtém êxito perante os compromissos familiares e profissionais que os três amigos não sustentavam.
O melhor do filme está justamente na habilidade de Cena, uma vez que seus irresistíveis esforços cômicos encaram a representação da fantasia como uma possibilidade de reinventar socialmente a si mesmo. A sequência onde é exibida num telão a matéria jornalística que ressignifica a farsa do personagem em glória adquire uma inevitável metalinguagem sobre o ato de performar.
Enfim, toda essa descrição é para atestar que, como em grande parte da obra dos irmãos Farrelly (juntos ou separados), há aqui um drama subjacente à comédia de absurdos. Tal influência afeta discretamente as consequências do surreal, reconfigurando a compreensão do espectador sem se esquivar da consequência moral. RICKY STANICKY, todavia, não é um dos melhores exemplos deste contorno sensível. Por mais que haja cautela na curva de reparação, ela se dá à toque de caixa, sem o tempo devido.
É como se, mesmo no limite do desmantelamento da vida adulta, Peter Farrelly adiasse o rompimento da ilusão só para manter Ricky Stanicky o máximo possível. De fato, a presença de Cena é algo precioso: além de divertir, desanuvia o peso das responsabilidades. Superar o incidente incitante se torna o maior percalço do longa e é fácil compreender o porquê.
Dream Scenario/ O Homem dos Sonhos
de Kristofer Borgli (EUA)
em cartaz nos cinemas
Intencional ou não, é possível visualizar DREAM SCENARIO como uma sátira de ‘Tár’, onde a crise de meia idade do protagonista é confrontada com os valores millennials numa esfera regida pela influência das mídias digitais. Como consequência de tais propriedades manipuláveis, um meme é capaz de efeitos substanciais na existência do indivíduo.
Mas ao contrário do filme de Todd Field, aqui o discurso ridiculariza as transformações do personagem ao desprender-se da consciência individual para alcançar o painel da estrutura macro. Mais bruscas do que brutais, as analogias são tão calculadas que se tornam óbvias (como os incessantes movimentos de zoom que restringem Nicolas Cage ao invés de se aproximarem do seu dilema).
Percebe-se aí a deficiência de DREAM SCENARIO: embora queira se estabelecer no torvelinho psicológico do realismo fantástico, a narrativa apenas reitera especulações através de estilhaços factuais. O caos resultante é tão artificial quanto o paradigma que denuncia.
Na inviabilidade de equilibrar o filme apenas nas alegorias, o roteiro abdica aos poucos do humor negro. Recolhendo-se na paródia covarde, o absurdo é enfraquecido à medida que é necessário encarar o desfecho do protagonista. É um problema que se dá também no longa anterior de Borgli, ‘Sick to Myself’ - o qual, por sua vez, soa como um ‘The Worst Person in the World’ masoquista.
Habituado à neurose existencial, Nic Cage corresponde objetivamente ao fetiche metalinguístico da produção. Mas é inevitável pensar em John Travolta, o meme “confuso” mais popular da internet, como o ícone ideal para este rascunho de comentário sobre o mundo contemporâneo.
Road House/ Matador de Aluguel
de Doug Liman (EUA)
disponível no streaming
A energia anfetamínica de Liman prioriza menos a construção do espaço que a cosmética da imagem; nisto, a moldura mítica da trama se atrapalha com os próprios símbolos.
Fica a impressão de que o diretor está só fazendo hora até o grande clímax. É quando a urgência do resgate alia-se à gana pelo enfrentamento e finalmente os movimentos corporais adquirem uma dimensão sobre-humana ao serem correspondidos pela plasticidade dos elementos naturais. O embate entre o homem enviado por Deus e o mal latente que assombra o vilarejo costeiro alcança uma potência semi-apocalíptica.
O Western-gamer então se assenta numa unidade e deixa de soar como um esforço consumido pelas possibilidades. Até o ato final, este remake de ROAD HOUSE se desnorteava entre as convenções de um possível neo-Western, uma fábula de redenção com infindáveis auto-justificativas e uma tola percepção sensório-motor que recusa a verossimilhança só para emular um videogame.
Por isso a artificialidade irreverente de Conor McGregor soa mais inventiva do que as vacilações entre o instinto e a plenitude de Jake Gyllenhaal, ator categórico demais para lidar com tais ambiguidades (algo que a inocência apática do rosto de Patrick Swayze, o protagonista original de 1989, dava conta).
Spaceman/ O Astronauta
de Johan Renck (EUA)
disponível no streaming
Não lembro de outro filme com o Adam Sandler que deponha tanto contra ele mesmo. Aqui o protagonista não é encarado como “nada” (que nem nas comédias mais tolas do seu currículo), mas é reduzido a nada, moral e psicologicamente, enquanto a lógica do roteiro supõe elevar sua consciência com o intuito de se auto-vangloriar intelectualmente.
Ao contrário do que a Netflix divulga, este sci-fi dito existencialista pouco tem a ver com ‘Solaris’ e muito com Spike Jonze e o Terrence Malick do Século XXI.
Mothers' Instinct/ Instinto Materno
de Benoît Delhomme (EUA)
em cartaz nos cinemas
Um exemplo de quando o floral dress prevalece sobre o hysterical.
Delhomme poderia aplicar na dramaturgia pelo menos um terço da preocupação dedicada à estética (de nostalgia discutível, inclusive). Falta uma modulação que convoque a teia de responsabilidades para a essência cotidiana das personagens, amplificando a maneira como a supérflua perfeição suburbana é de fato maculada. A estrutura melodramática não adquire a potência necessária para alavancar nem a percepção de paranóia doméstica, nem a atmosfera traumática da tragédia familiar.
Na guinada para o suspense, a narrativa dispensa de vez a sensibilidade em prol da manipulação. O vínculo do título deixa de ser uma circunstância subjetiva para tornar-se a manutenção de um status moral. Quem mais sofre com isso é aquilo que o diretor elege como alicerce cênico: os desempenhos das atrizes. As limitações dramáticas de Anne Hathaway ficam mais evidentes e a fluência teatral de Jessica Chastain é anulada pela decupagem ansiosa.