Sang-soo; Sorrentino; Rasoulof; Assayas; LaBruce; Rankin; Alberdi
as novidades dos "auteurs" mobilizando a cinefilia, via Festival do Rio 2024
Assumo que diante da programação de um Festival o meu filtro inicial é por cineastas. As novidades de nomes já conhecidos acabam por direcionar a organização do cronograma. Alguns são selecionados com expectativa, outros, desconfiança, ou até insistência (na esperança daquele raio de genialidade de outrora cair no mesmo lugar…). Em comum, a curiosidade por aquilo que tais realizadores(as) tem a contar depois de um período de ausência.
Começo já me contradizendo, por um motivo digno. Desconhecia o único longa dirigido por Matthew Rankin antes deste aqui (“The 20th Century”, 2019) mas Linguagem Universal (“Universal Language”, Canadá, 2024) já é o suficiente para me manter atento a cada próximo passo dele.
São raros os filmes sobre a noção de amizade como a reciprocidade de afeição e simpatia entre dois indivíduos. A maioria está mais preocupada em frisar a garantia (ou a manutenção) deste elo específico, ao ponto de muitas vezes condensá-lo num modelo. O filme de Matthew Rankin, pelo contrário, está mais interessado na mutualidade em si - e este é um sentimento capaz de se dar entre dois estranhos, fortuitamente, mas não menos espontâneo. Assim, desta maneira, é possível brotar até mesmo entre o diretor e o espectador, por meio da obra.
Na estruturação das sequências, Rankin institui uma planimetria milimétrica, cuja precisão das construções visa não só a depuração narrativa mas também a reverberação de tais dados ao longo do desenvolvimento. O controle do diretor vai, aos poucos, superando as funções espaciais para adquirir uma intensidade especial: a da percepção do ponto-de-vista do verdadeiro protagonista desta trama tríptica, seu alter-ego também chamado Matthew. Essa imprecisão inicial, a qual se aplica inclusive ao tempo e à localização, é necessária para propor a temática do retorno às origens não como um “cartão-postal” mas uma experiência de reconhecimento. Se, na forma como relaciona os personagens ao meio onde vivem, Linguagem Universal remete ao método integrativo consciencioso de Abbas Kiarostami, os momentos contemplativos e o sarcasmo de certas interações improváveis remetem à dinâmica de Jim Jarmusch.
A peregrinação de Matthew é a do homem comum em meio à estranheza também comum do cotidiano. Nela, brota o fenômeno de uma teia de solidariedade bem específica dentre os personagens. Inicialmente conectada pelo diretor através de seu alter-ego, esse tecido passa a superá-lo, a fim de auxiliar na sua reconexão com aquilo mais sensível. A busca pela origem é também a solução para um vazio (e, principalmente, para o filme em si), da mesma forma que ela não prescinde do entorno maçante, reforçando a necessidade de sobrevivência apesar do marasmo, através dos encontros ali sucedidos.
As transformações consequentes não visam um apagamento das formas anteriores. A ideia é propor o acúmulo de percepções simultâneas através de um estabelecimento de relações à distância (a operação metonímica de Rankin não é 1 + 1 + 1 = 3, e sim 1 + 1 + 1 = 1 + 1 + 1). Com isso, as imagens de Linguagem Universal equilibram as nuances dos acasos, as texturas do transitório e a profundidade da inadequação.
O resultado é um exercício de partilha, ao mesmo tempo inteligente (no seu diálogo com o espectador) e enternecedor (no saldo que lhe propõe). “These eyes, are crying/ These eyes have seen a lot of love”. Nos créditos finais, quando a canção do Guess Who ressurge, não há dúvidas a quem ela se refere. Naquele momento, entretanto, poderia estar relacionada a mim também. E provavelmente à boa parcela do público em Cannes, que premiou Linguagem Universal como melhor filme na Quinzena dos Realizadores.
Em sua carta de amor à Nápoles, Paolo Sorrentino assume o comportamento dos demais homens que atravessam a trajetória da personagem-título, portando o mesmo véu da idealização sobre o olhar contemplativo.
Parthenope (Itália, 2024) é uma série de imagens refinadas a nos mirar de volta, menos para propor um diálogo do que vender um conceito. Enquanto o irmão da protagonista, de temperamento romântico, peca por confundir transitório com definitivo, Sorrentino embaralha estética e plasticidade.
Apesar do intuito antropológico, o empirismo do diretor acaba por se aproximar mais da publicidade. Não à toa os melhores momentos deste flow entorpecente estão localizados na primeira parte da narrativa (pré-“cólera”), onde o produto à venda é a nostalgia pela juventude e sua curiosidade frívola pelo mundo. Ou seja, aquém da pretensão filosófica de suas várias citações. Uma pena que para Parthenope a liberdade do espírito humano se contente com a afetação pouco assertiva de uma idealização inalcançável.
Considerando a guinada declinante do cineasta italiano após o Oscar de Melhor Filme Internacional para “A Grande Beleza” (2013), fico em dúvida se aquela aclamação não foi um delírio coletivo do qual eu mesmo fiz parte na época.
Olivier Assayas é um dos diretores franceses mais ecléticos em atividade, variando entre neo-noirs, comédias dramáticas, thrillers psicológicos e histórias de época. Após a série produzida para a HBO (“Irma Vep”, baseado no seu próprio filme homônimo de 1996), ele se volta para um projeto mais íntimo.
Há uma certa franqueza diante das idiossincrasias do próprio Assayas nesta espécie de filme-diário. Em meio às preocupações burguesas (representadas com certa ironia) e a vaidade cultural das inúmeras citações artísticas meio aleatórias (e nostálgicas), Tempo Suspenso (“Hors du Temps”, França, 2024) se assume não como mera cápsula dos tempos de confinamento por COVID-19 mas o registro de formas de comunicação tateadas naquele período. Ou, pelo menos, tentativas de se conectar com o outro, próximo ou distante (afetivamente, inclusive).
Claro, essas singularidades individuais só ganham vida através de Vincent Macaigne: é o carisma inquieto do ator que torna as ansiedades e a melancolia do autor em algo humanamente sensível. Já o interesse cinematográfico de Assayas diante da natureza e das relações ali desenvolvidas parecem buscar um reconhecimento impressionista a la Jean Renoir (um dos artistas parafraseados no filme). No entanto, o próprio Assayas consente com a impossibilidade desse intuito, seja pela pureza irreplicável do olhar ou até mesmo pela forma do registro em si.
Tempo Suspenso, contudo, não se inscreve num limbo de falências. Há a conquista da aceitação de uma estabilidade viável (um feito e tanto considerando a neurose do autor/alter-ego). A tão desejada utopia do tempo em suspensão, que se diverte com a possibilidade dos novos começos, é tida como inalcançável.
Isso abre espaço para a matéria fílmica propor um outro tipo de “congelamento”. Trata-se do registro de um intervalo no fluxo da vida cotidiana, o lockdown interno onde ingenuamente se foi possível sonhar com recomeços, acertos de contas e mudanças. Tamanha quimera é o verdadeiro objeto do filme de Assayas. O característico interesse do diretor pelo “duplo” da criação artística (o remake ou a reimaginação) direciona-se para o aspecto íntimo da autobiografia. O filme-confessional é, também, um espelho formal.
Velho habitué na programação do Festival do Rio, Bruce LaBruce é garantia de dedo-no-cool-e-gritaria. Seu mais novo longa propõe uma adaptação de um clássico de Pier Paolo Pasolini, realizador não menos polêmico.
A evolução do cinema como transgressão da representação sexual reveste as imagens de O Intruso (“The Visitor”, Reino Unido, 2024), onde o realismo experimental pasoliniano adquire o filtro surrealista-camp de John Waters. Ao reimaginar “Teorema” pela opacidade de um “techno-movie”, Bruce LaBruce torna explícito as noções lacanianas do filme original, ao ponto de gastá-las em seu próprio registro.
O resultado é um “pornô-ideológico”, onde o hiperrealismo das representações propõe uma dupla literalidade: a gráfica (do ato sexual não-simulado) e a discursiva (o grafismo irônico dos slogans progressistas atravessando as sequências pornográficas). É uma estética fundada na contraposição, contrariando o estímulo voyeurista do espectador ao mesmo tempo que o incita. Os antigos símbolos psicanalíticos aplainam-se na objetificação contemporânea das ideias e dos corpos.
O exercício de O Intruso é, sem dúvida, limitado pela (ainda incipiente) consciência cinematográfica de Bruce LaBruce. Por isso a construção recorre com demasiada reincidência às mesmas estratégias imersivas do filme-instalação. A inteligência de sua artimanha é, contudo, inegável: reduzir o longa à plataforma de um discurso ideológico é, ao mesmo tempo, tornar-se o objeto de sua crítica mais essencial.
Muita expectativa circundava o vencedor do Prêmio Especial e do FIPRESCI em Cannes The Seed of The Sacred Fig (“Danave anjir-e moabad”, Alemanha/França/Irã, 2024). O novo trabalho de Mohammad Rasoulof já desponta como um dos principais candidatos ao Oscar 2025. Atualmente em exílio na europa, o diretor iraniano fugiu de seu país após ter sido condenado a cinco anos de prisão e a receber chibatadas devido ao seu filme anterior, o denunciativo “Não Há Mal Algum” (2020).
O viés ideológico do discurso político e feminista de The Seed of The Sacred Fig se localiza menos na forma do que na representação. Em sua construção fílmica, o material ficcional é interrompido pela intervenção de registros verídicos de redes sociais, da mesma maneira como a estrutura familiar é atravessada pelas revoltas populares consequentes da morte impiedosa de Mahsa Amini. Por isso, o alcance mais efetivo de sua retórica reside na paranóia corrosiva que destrói a entidade do lar, provocando uma série de desconfianças e desvelando cada vez mais o macguffin da arma desaparecida.
O personagem-chave da trama, não à toa, é a matriarca vivida por Soheila Golestani (em uma atuação dilacerante). Ponto de atrito entre o peso da repressão (o marido juíz recém-promovido) e as influências progressistas (as questionadoras filhas adolescentes do casal), ela assume em si mesma o arco de transformação que é o âmago do filme. Seu esforço mediador perante o funcionamento da família é levado ao paroxismo. Consequentemente, o tecido social do Teerã deixa de ser um pano de fundo e se torna propriamente o tema do longa; o sentido passa a produzir consciência na/através da linguagem.
Mas quando Mohammad Rasoulof migra do noir familiar para o suspense de perseguição - recaindo na fórmula “politico-exploitation” a la Costa Gravas - o raio de sua força discursiva perde cobertura. A ausência de rigor no predomínio da exposição sobre a narração recai numa engenharia simplificada. Ainda assim, The Seed of The Sacred Fig é um testamento categórico em prol da expressão (no interior e no exterior das instituições) e em detrimento do totalitarismo.
A definição “prolífico” é inevitável ao se tratar de Hong Sang-soo. Nos últimos dez anos, o cineasta coreano filmou oito títulos. O mais recente, A Traveler’s Needs (Yeohaengjaui pilyo, Coreia do Sul, 2024), é sua terceira parceria junto ao ícone francês Isabelle Huppert, agora interpretando uma francesa que supera suas dificuldades financeiras ensinando francês na Coreia de maneira peculiar.
O plano onde a personagem de Huppert, no corredor do prédio no qual divide o apartamento com o seu jovem amigo, parece farejar o cheiro da comida preparada pela mãe dele do outro lado da porta, remete (pelo valor semântico de sua construção) a um plano anterior cuja aparente falta de motivo narrativo o fizera soar como mera pontuação.
Trata-se do movimento de zoom dado na cadela Nomi, momento imediatamente anterior à cena onde a protagonista faz um lanche junto à sua nova aluna de francês e o marido dela. É necessária a intervenção da filha adolescente do casal para que Nomi, circunscrita ao jardim do apartamento, seja alimentada. Tal responsabilidade parece não ter importância para os mais velhos.
Considerando que a mencionada cena de Isabelle Huppert se dá justamente após um inquérito feito pela mãe do rapaz acerca das intenções e da procedência da (amadora) professora de francês e, principalmente, que a protagonista é caracterizada pela disponibilidade para a experiência do momento presente, isso faz pensar em como A Traveler's Needs acaba por referir-se diretamente à simplicidade poética de Hong Sang-Soo. E não só isso: de certa maneira, questiona sua lógica.
A unidade do filme é pautada pela típica recorrência do cineasta ao instante dos acontecimentos, de acordo com uma diegese particularizada por longos planos fixos, pela integridade visual das ações e pela capacidade imersiva da atenção perante a fluidez natural dos diálogos. Neste rigor concentrado, onde o naturalismo da representação converge os efeitos das situações para o interior do quadro, estabelece-se um cotidiano ao mesmo tempo relacionável e fechado em si mesmo. Nele, o sonho se equipara à tradução; a expressão musical é o caminho para a reflexão mais íntima; os sentimentos equiparam indivíduos de vivências distintas; e a linguagem deve encontrar seus meios propícios de expressão a partir das emoções genuínas. Ou seja, a consequência precedendo os motivos através de conexões internas que promovem a estabilidade deste universo fílmico.
Por isso, o minimalismo de Sang-Soo não seria algo pueril do tipo bem-intencionado; antes um cinema da gentileza informal. Irremediavelmente a favor da abertura para o presente, A Traveler's Needs, embora mantenha uma convicção diante de suas próprias intenções, ao mesmo tempo se revela modesto em suas inseguranças particulares. A fragilidade contida no questionamento final de Huppert, proposto como o resultado de uma busca, parece direcionar-se ao próprio espectador. Ainda estaria ele disposto a se abrir para o imediatismo concreto do exercício de Hong Sang-soo, apesar das condições estabelecidas e assumidas pelo próprio diretor?
Após o elogiadíssimo documentário “La memoria infinita” (2023), a diretora chilena Maite Alberdi fez a sua estreia na ficção com No Lugar da Outra (“En lugar de la otra”, Chile, 2024), um crime-flick produzido pela Netflix.
A perspectiva de No Lugar da Outra foge do esquema usual dos filmes baseados em crimes reais. Seu conceito, de certa maneira, remete à famosa tese de Virginia Woolf sobre as condições básicas para uma mulher se tornar escritora (um teto todo seu, livre de interrupções, alheamento e desatenções, com tempo suficiente para se dedicar à escrita). No caso da protagonista interpretada por Elisa Zulueta, o exercício de criação se dá perante sua própria identidade e papel social, baseando-se literalmente na vida da célebre romancista María Carolina Geel (Francisca Lewin). Esta, por sua vez, acaba por encontrar “um teto todo seu” ao descobrir que a liberdade é capaz de transcender o cerceamento espacial.
Pena a direção de Maite Alberdi ser tão dependente das descrições e pouco autônoma nas idealizações, tornando a projeção da protagonista numa fábula anti-doméstica incapaz de ceder aos moldes para se agarrar à curiosidade pelo novo. O resultado fica aquém da personagem, dando um ar frívolo aos seus desejos. Ainda assim, Alberdi se mantém fiel ao seu ponto de vista até o fim.