Souleymane; A Fanfarra; Diamante Bruto; Truffaut - O Roteiro da Minha Vida
cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2024 | 3ª parte
Concluindo os trabalhos do Festival Varilux, textos sobre:
o vencedor do Prêmio do Júri na mostra Um Certo Olhar do último Festival de Cannes, A História de Souleymane (o protagonista Abou Sangare também foi laureado no mesmo evento);
A Fanfarra, comédia dramática de Emmanuel Courcol estreando mundialmente aqui no Varilux;
o coming-of-age em torno das ilusões dos influencers e dos reality-shows Diamante Bruto, outro longa exibido este ano em Cannes;
e um documentário sobre François Truffaut baseado em escritos inéditos do próprio cineasta, O Roteiro da Minha Vida, com narração de Louis Garrel.
O Roteiro da Minha Vida - François Truffaut/
Le Scénario de Ma Vie - François Truffaut
de David Teboul (2024)
Ao invés de se limitar a um mero panorama sobre a obra de François Truffaut, O Roteiro da Minha Vida recorre ao formato ensaístico para investigar a influência dos traumas de formação na produção do artista adulto.
O documentário reconhece Truffaut como alguém fascinado pelas imagens em movimento, vislumbrando nelas uma forma de encarar sua própria vida. A bússola de David Teboul é o autorismo de raízes cahieristas em seu anseio pela detecção da assinatura fantasmática do diretor. Ou seja, a cinefilia (no seu sentido empreendedor de obras e ideias culturais) serve de plataforma para um processo de escrita do self autobiográfico; a enunciação torna-se um método de compreender, desenvolver ou até mesmo cicatrizar a própria identidade.
O direcionamento íntimo no encadeamento dos trechos de arquivos, filmes e depoimentos é capaz de sugerir uma poética do cineasta como resultado desse estímulo da câmera-caneta, a partir da ênfase no storytelling - o qual, por sua vez, compõe um misto de projeções, reflexos e fantasias entre autor e obra. É pelo rigor formal dessa estrutura que Teboul não só propõe algo além do lugar-comum na caracterização da filmografia de Truffaut, mas também demonstra um olhar compreensivo, sem se entregar à complacência do afeto barato ou da idolatria.
A Fanfarra/ En Fanfare
de Emmanuel Courcol (2024)
No intuito de propor um crescendo emocional, A Fanfarra se esquiva do drama para sustentar a ironia e acelera a trama para contornar o peso do realismo social. Neste esquema menos fluido do que se pressupõe, o retrato da diferença econômica não escapa do esquematismo e a narrativa sincopada serve de artimanha para uma cômoda isenção. O roteiro aposta em demonstrar como o talento artístico é, na verdade, a possibilidade de desenvolver uma aptidão conforme as condições oferecidas pelo meio econômico onde se vive. Parcas condições geram chances escassas (e o contrário burguês também é válido) mas basta um pouco de solidariedade para amenizar as determinações.
Atravessando diagnósticos malignos, demissões inapropriadas e laços familiares desfeitos, tamanho otimismo pela regeneração vai encontrar o seu componente vital naquilo que de fato sustenta A Fanfarra: a química fraternal entre Benjamin Lavernhe e Pierre Lottin, um desses raros encontros de genialidades capaz de continuamente revitalizar o filme cena a cena. A interação entre os atores ultrapassa as improbabilidades e evolui para uma relação afetiva não só palpável como envolvente. A narrativa justifica a rápida reconexão entre os irmãos separados desde a primeira infância através da paixão em comum pelo jazz, mas é na dupla Lavernhe-Lottin que a câmera certifica seus méritos harmônicos.
A catarse no rosto de Lavernhe na sequência final, em meio ao tortuoso equilíbrio das lágrimas que se confundem entre a dor e a alegria, congrega todos valores intencionados anteriormente por outras vias. O resultado está menos para um crescendo do que para uma coda.
Diamante Bruto/ Diamant Brut
de Agathe Riedinger (2024)
Numa sucessão deslizante de realismo social, Diamante Bruto dispõe flashes e reels para propor um certo tipo de reality show. Trata-se da sobrevivência no capitalismo, protagonizado por jovens num ambiente de perspectivas econômicas desfavoráveis. Sendo tal lucidez distinta do formato popular televisivo idealizado pela protagonista Liane (Andréa Bescond), é na realidade desprovida onde ela vive que a equação “beleza + popularidade + influência = dinheiro” apregoada pela mídia ganha um peso ainda maior de atração. O estilo urgente adotado por Agathe Riedinger serve de justificativa pelo anseio da personagem por um outro tipo de realidade menos áspera, ainda que falsa e programada.
No discurso de Diamante Bruto o que está em jogo não é a artificialidade das aparências em si mas a ausência de possibilidades substancialmente palpáveis. Se no panorama atual tudo se estabelece numa relação entre sujeito e objeto, a saída possível seria o posicionamento estratégico.
Riedinger recorre a um método específico para cena na qual a protagonista faz o teste para o reality-show do tipo “Love Island”, cujo resultado poderá mudar seu destino: um longo plano com a câmera fixa, demarcado por um lento movimento de zoom. Nisto, a cena sofre uma dupla inscrição. A chance de um futuro para Liane é enquadrada em concomitância com a revelação das reais possibilidades limitadoras à sua espera nesta possível carreira como (sub)celebridade. Tornar-se um produto vazio seria menos doloroso do que a vivência na pobreza.
O estilo imersivo remete à instabilidade da diretora inglesa Andrea Arnold mas o olhar de Riedinger se diferencia pela precaução. Por mais que as ligações internas que sustentam a trama soem frívolas (na aclimatação das ânsias o adiamento se confunde com a espera), a perspectiva da cineasta francesa contorna a via do sensacionalismo e evita a idealização da ambição midiática como plataforma de êxito econômico. Isso sem despersonalizar a ambição motivacional de sua protagonista, reconhecida como um plano de fuga onde cada preparação estética ressignifica seu corpo como o de um soldado em preparação para a batalha.
Diamante Bruto não esquematiza nem as dificuldades, nem a tábua de salvação. Por consequência, assimila as contradições de um quadro mais amplo - econômico, social e existencial - e oferece a sensação agridoce da realização temporária, traço comum dentre outros tantos que caracterizam uma atualidade pautada por efemeridades.
A História de Souleymane/ L’histoire de Souleymane
de Boris Lojkine (2024)
À primeira vista pode parecer que, ao tornar a expectativa para a entrevista pelo asilo político em indutor do thriller, o próprio filme acabaria por formatar o drama pessoal de seu protagonista, tal qual os meandros burocráticos do sistema imigratório europeu incentivam a padronização de relatos individuais.
No fundo, o longa de Boris Lojkine é atento aos questionamentos subjetivos que provoca, nos aproximando da rotina vivida pelo imigrante guineense nas ruas parisienses sem perder de vista um senso de deslocamento em relação ao meio. A História de Souleymane assume um percurso sinuoso onde não só a cidadania está em suspenso (assim como os direitos e deveres relativos a ela), mas a própria memória do personagem-título como indivíduo é ameaçada pelos esquemas políticos, extralegais e sociais em torno da imigração clandestina.
Perante os riscos, a câmera de Lojkine jamais restringe o ator Abou Sangare. Seu olhar se esforça em acompanhá-lo, a fim de alcançar os breves intervalos na rotina instável do entregador de aplicativo. Em tais momentos, quando o ruído urbano é abafado e o personagem encontra um abrigo temporário nas locações impessoais, é possível descobrir a verdadeira identidade de Souleymane.
Os momentos de silêncio são pontuais ao longo da trama (a trilha musical, contudo, é nula). Na abertura, tal recurso parece solicitar uma atenção ao protagonista; no fim, torna-se o peso de uma vigilância onipresente, capaz de cercear as tentativas de espontaneidade. Independente da conclusão, o que se afirma perante o circuito limitador de estereótipos, narrativas pré-formatadas e perfis fantasmas em torno de Souleymane é o direito do ser humano em tomar posse do próprio relato.
Como arte narrativa, um filme também corre o risco de formatar a trajetória de seu personagem numa série de categorias dramáticas. A História de Souleymane, tão apegado ao nível representacional, não chega a se desvencilhar totalmente dessas armadilhas. Mesmo assim, busca meios de burlar certas convenções. Aqui, a catarse é um movimento para dentro, consequência de uma lógica do acúmulo; paradoxalmente, a desarticulação de Souleymane ao tentar definir a si próprio complementa os interstícios anteriores onde sua trajetória de vida nos é revelada.